Algumas patologias levam algumas pessoas a sentirem-se extremamente bem por estarem demasiadamente mal. Descobrem, não sem muita dor, que a dor pode ser também um profícuo impulsionador de forças vitais adormecidas no bem-estar. Talvez porque ela nos lembre a morte, os atropelos, as indesejabilidades, as impossibilidades que geram frustrações.
Para essas pessoas, a dor é ruim quando não há possibilidade de reagir ao fato de que ela foi estigmatizada como um mal: pela cultura, pelo aprendizado e pela fatalidade do evolucionismo biológico. Porém, na literatura e na midia de vários países e de todos os tempos, fartos são os exemplos que nos mostram dores prazeirosas, malefícios inebriantes, evidenciando que pode haver felicidade na infelicidade, satisfação na agonia e alegria na melancolia.
Até o aparente absurdo dessas situações pode parecer plausível quando entendemos que 'o absurdo' não é outra coisa senão o mais implacável limite de saturação do suportável. Nesse sentido, tudo que pode parecer um absurdo pode também ser considerado absolutamente viável. E mesmo sendo comprovadamente um absurdo, é provável que aí resida o caminho mais seguro - porque totalmente desconhecido - da novidade.
Quem exerce a radicalidade entende que a vida existe nos extremos da morbidez e da saúde, do possível e do impossível, do ser e do não ser. Entretanto, o mais comum é trivial é que as pessoas prefiram caminhar pelos meios.
Tentemos, pois, nos despir dos preconceitos para examinar, ainda que rapidamente, o que há de virtude nos vícios e de vícios nas virtudes.
'Virtus in medium', já dizia Santo Tomás de Aquino. Vivemos entre o antes e o depois, o em cima e o embaixo, o lá fora e o aqui dentro, o a frente e o atrás, o direito e o esquerdo. Passamos toda nossa vida entre radicais porque nunca ousamos ser intolerantes com a situação mediadora que nos foi impingida. Condicionamos nossa percepção a esses limites e negamo-nos a ver as inúmeras possibilidades de progredir assimetricamente em direção aos opostos radicais.
Porém, a virtude parece não estar nos meios porque não é esse o lugar ocupado por quem pretende superar-se. Assim como os vícios, ela é radical. Levando um pouco mais a frente esse raciocínio, podemos dizer, então, que a mais absoluta virtude se equivale em densidade, valor e mérito ao mais execrável dos vícios. Basta que entendamos, como premissa, que o homem é, por essência e por definição, precário, incompleto, defeituoso ('jamais sereis como deuses!'). Assim, todas as tentativas de evoluir na direção do bem (que está acima) frustram e desmerecem a condição humana (que está abaixo).
As apologias do mérito da grandeza e da honradez, da probidade e dos bons propósitos, da caridade e da tolerância, da solidariedade e da liderança, todas elas têm como objetivo preciso a superação da imperfeição. Portanto, dirigem-se ao desumano, pois humano seria ser incompleto e imperfeito.
Assim entendida, a virtude torna-se inumana porque representa a derrocada da condição primeira da incompletude. E para manter a estrutura defeituosa do gênero humano é necessário que exista um mecanismo que não permite que as virtudes se perpetuem. Quando, porém, a virtude persiste - ainda que durante pouco tempo - temos necessidade de creditá-la aos santos, projetá-las em ícones veneráveis, petrificá-las em estátuas públicas e erigir monumentos de cobre e bronze em praças públicas. Tudo para que, paradoxalmente, continuemos a nutrir a convicção de que o ser humano é imprestável até que se torne virtuoso.
Estaremos enganados? Tentemos, no limite do impossível, voltar à empiria. É fácil constatar que os vícios produzem mais que as virtudes. Emocionam mais. Aproximam os imperfeitos. E a atuação viva dos vícios está na base daquele que é considerado o mais nobre dos sentimentos: o amor.
Já as virtudes não distinguem os humanos; iguala-os. O Bem (assim como o Belo) está situado num ponto virtual de pasteurização das diferenças, pois não suporta restrições e comparações, visto que, ambiciona o absoluto. Já os malefícios e as dores (assim como o feio e o sujo) podem ser graduados em infinitos patamares, todos eles distintos, porque o homem vê melhor aquilo que lhe é mais próprio, mais apropriado.
Os vícios, ao contrário, individualizam. Jamais são iguais. Em gênero, em número e em grau. As pessoas medíocres podem até acreditá-los consoantes às virtudes. Mas isso se deve ao fato de não ousarem explorar as sutis nuances de sentido do mau ( e do feio).
Não fosse assim, como explicar o repugnante prazer que muitos sentem, mesmo sem admitir, ao comprar revistas e jornais que detalham os epsódios da morte dos 'mamonas assassinas' ou ao ler - para continuarmos no caminho da ficção duvidosa - os versos da 'dissertação do papa sobre o crime seguido de orgia', extraído de manuscritos do pecaminoso Marques de Sade:
'O assassinato é uma paixão, como o jogo, o vinhos, os rapazes e as mulheres. E jamais corrigida se a ela nos acostumarmos.
O crime é venerado e posto em uso por toda a terra. De um pólo ao outro se imolam vídas humanas.
Os selvagens da América matam sus velhos doentes. É uma obra de caridade por parte dos filhos.
Em Madagascar, todas as crianças nascidas às terças, quintas e sextas feiras são abandonadas aos animais ferozes.
Em Ilhas do Sul, mulheres são mortas como inúteis ao mundo quando não podem mais procriar.
Gengis Khan, quando apoderou-se da China, mandou degolar milhões de crianças a sua frente.
Os Quóias furam as costas das vítimas a pancadas e, em seguida, cortam o corpo em pedaços, obrigando a mulheres dos mortos a comê-los.
Os irlandeses esmagam as vítimas. Os Noruegueses perfuram-lhes o crânio. Os gauleses partem-lhes a bacia. Os Celtas lhes enfiam toda a espada pelo reto.
É possível, pois, entender - sem voltar tanto no tempo - porque as manchetes dos jornais preferem exploram o prazer que a natureza deficiente do humano constantemente nos oferece:
mortes violentas, descrição detalhada de acidentes de trânsito e de agressões, subornos, sequestros e corrupções, lutas de gangues e arrivismo social, embates e debates com humilhações e agressões recíprocas, críticas literárias, reclamações e denúncias, fatalidades, descontrole econômico, incongruências políticas, revelações assustadoras, neo-liberalismo, provocações explícitas e veladas, lutas tribo-político-partidárias, mentiras, desmentidos, anúncios publicitários
O prazer inconfessável e irrefreável que leva o humano a procurar no mal os deleites mais intensos e obscenos revela e comprova que não é nas virtudes que ele se encontra solidariamente coeso: é no reconhecimento profundo e individual de que os mais reprimidos ímpetos institivos caminham inelutavelmente na direção daqueles que são considerados os mais baixos (feios, imundos, reprováveis, abomináveis) sentimentos. Quem busca conhecer-se, necessariamente deverá trilhar tal caminho se é que pretende encontrar algum tipo de resposta capaz de libertá-lo da responsabilidade do Bem e do Belo, da síndrome da busca da perfeição e das tentativas (normalmente fracassadas) de superação do mal.
Como Nietzsche, somos levados a admitir que são demasiadamente humanos o sofrimento, os exageros, os paradoxos, as incrongruências, as aberrações, o pecado ( a gula, a avareza, a vaidade, o egoísmo, o ciúme, a inveja, a traição ). Emile Ciorán se pergunta se por acaso os mais intensos amores humanos vivem menos tais situações. E avançando nossas investigações chegaremos, talvez a afirmar: não é por acaso que as ideologias elegem valores anti-humanos para facilitar o aviltamento individual que conduz à subserviência. Não é também por acaso - mas por ignorância - que gastamos grande parte de nossas energias em culpa, pena, autorejeições e frustrações.
O ser humano está, pois, longe de assumir sua identidade, distanciando-se, pelo repúdio, daqueles anti-valores nos quais ele se reencontraria errado, defeituoso e maleficamente bem.
Por isso, não desenvolve seus limites de suportabilidade ao mal. Por isso, acredita-se mal, estando mal; acredita-se bem, esquecendo-se de preservar um estoque inaceitável de impossibilidades para motivá-lo no caminho da superação.
Os marginalizados, os discriminados, todos aqueles banidos do meio social que insufla a utopia das virtudes sabem muito bem que a condição humana só pode ser vivida em plenitude no centro oposto dos valores do bem-sucedido.
Sabem e vivem a mais perfeita e iretocável condição humana, condição possível a quem, por opção, ou por falta dela, descobre os encantos do desencanto, o supremo mau que sustenta a utopia do bem.
O demasiadamente humano será sempre o extremamente mau.
E para nos acreditarmos gente (humano-imperfeito) faz-se urgente admitirmos uma certa loucura cultural. O que, certamente nos custará o banimento do meio daqueles que se presumem bons, belos, limpos e virtuosos.