'A expressão do corpo e de suas extremidades, as possibilidades expressivas do corpo, dos braços e das mãos, tudo isso faz parte de uma capacidade humana de transformar movimentos em informações para os demais' (V. Romano 1993:62).
A inauguração de um novo grupo de trabalho na COMPÓS sob o nome Comunicação e Cultura pode ser interpretada como uma alvissareira abertura para o tratamento de uma série de questões que estão diretamente imbricadas com o desenvolvimento da competência comunicativa nas culturas, mas que nem sempre são reconhecidas na academia como objetos válidos de pesquisa nessa área do conhecimento.
A questão dos gêneros é uma delas. Objeto polêmico, afeto à linguística, à sociologia, à antropologia (talvez) mas com certeza muito próximo da psicologia e bem íntimo da psicanálise, o sexo é, com certeza, uma das mais fundamentais fontes de expressividade dos seres vivos. Tratá-lo, entretanto, do ponto de vista da linguagem e, daí, do ponto de vista das possibilidades simbólicas geradas pela exploração dos códigos comunicativos pode representar algum avanço ou, por outro lado, uma inadequação forçada a um paradigma envergonhado.
Talvez 'envergonhado' não seja um termo totalmente descabido. Referimo-nos aqui não à sexualidade, mas ao sexo; não às preferências eróticas, mas à expressividade transviada e travestida que confunde os lugares marcados pelas tradições culturais para confortar as diferenças ... as diferenças de gênero ou de sexo.
'Génitum' é uma das formas de gígnis, gígnere e outras formas latinas para gerar, criar, produzir, parir, etc. Da mesma raíz de gênero - conjunto de elementos que têm a mesma origem ou característica essencial de espécie - temos, curiosamente, termos como geral (relativo a todos), generosidade (de bom gênero), genitais (que servem para gerar, procriar), genitor (aquele que gera ou gerou), gente (povo, nação, grupo social), gentios (estrangeiros, de outra raça ou gênero), genuíno (de origem, verdadeiro), ingênuo (quem é puro, inocente, cândido), benígno (bom por natureza), malígno (mau por natureza), indígena (gerado dentro do país), congênere (do mesmo gênero), degenerado (que nega a origem), regenereado (que recupera a origem), germe (origem, ponto inicial que prolifera), germinar ( florescer, prosperar), germano ( irmão do mesmo germe, do mesmo pai), Germania (uma nação que se orgulhou demais, num certo período, por ter um puro germe), dentre outros.
O gênero humano está divido entre masculino e feminino. As linguagens, resultados da competência simbólica do homem, ganham desinências, cores, gestos, sons, gostos e texturas diferenciadas para dividir atributos, identificar ações e dar sentido a idéias segundo sua natureza masculina ou feminina. As narrativas míticas, por seu turno, invariavelmente referem-se à origem do mundo e dos seres começando por por justificá-la - com fantasias peculiares - como macho e fêmea, homem e mulher. Provavelmente a mais popular, a narrativa bíblica enfatiza a primazia do masculino, de cujo corpo teria originado a mulher.
É no corpo que se inscreve a primeira das diferenças. Ivan Bystrina, estudioso dos fatos culturais e dos fenômenos da vida social e biológica postulou que as criações culturais depreendem-se da natureza biológica, ou, de outra forma, que a segunda realidade (das criações simbólicas) está atrelada e originalmente comprometida com a primeira realidade, a das trocas biológicas e sociais.
Essa conclusão está lastreada no estudo dos códigos, suporte material das linguagens que viabiliza o fenômeno da comunicação de célula a célula, de organismo a organismo, de uma mente a outra, de uma mente a uma máquina e de um poeta a um bancário, para iniciarmos essa apresentação com exemplos de alta credibilidade.
A Vida Biológica dos Gêneros
Os códigos que regem as trocas biológicas apontam para diferenças fundamentais entre masculino e feminino. Os genitais externos e internos sugerem encaixes e insinuam uma gramática bastante óbvia de relações. Mas para que eles possam dar visibilidade à diferença, outras regras se impõem, regendo as combinações cromossômicas: duas incógnitas (X e Y) se encontram para formar uma célula-ovo de sexo determinado pelo acaso, mas ainda invisível à tecnologia voyerista da curiosidade. Não há nada fora que dê a pista capaz de apaziguar a ansiedade da futura mãe que, até esse momento carrega apenas uma possibilidade imaginariamente tendenciosa.
Uma série de transformações fisiológicas e bioquímicas começa a moldar os caracteres sexuais localizados e diluídos por todo o corpo a partir da sétima semana de gravidez, momento tido como definitivo para a composição sexual do feto. De fato, androgênio e estrogênio negociam suas participações no projeto do novo ser conversando sobre as quantidades que cada um deve fornecer ao hipotálamo. Este, por estar conectado ao sistema límbico, prepara-se para regular glandularmente questões subjetivas que irão determinar aproximações, afastamentos, momentos de ternura e de felicidade quando o novo ser tiver sido formado minimamente. O neocórtex, integrado nessa rede de massas, linfas e neurônios permite a imaginação, as sensações mais sutis e os exercícios mais árduos, distribuindo-os segundo diferentes dominâncias. E permite também a linguagem, competência social que nasce antes do nascimento para resolver os primeiros conflitos de uma série (ainda intra-uterinos) que, vida afora, irão caracterizar a relação mãe-filhos.
Gêneros Sociais
O âmbito social passa a coexistir com a dimensão biológica num eterno e nunca resolvido dilema de proporções por demais complexas para serem medidas ou comunicadas. As línguas naturais necessitam marcar o gênero de cada signo, ainda que para alguns - aqueles de ação, ligação e transição e outros aparentados - o sexo permaneça indiferente. Substantivos e adjetivos, responsáveis pela substância e pelo atributo dos sujeitos e seus complementos, esses só podem acontecer sexuadamente, seja na oralidade, seja na versão gráfica. O papel do artigo definido[2] e das desinências de gênero linguístico não difere basicamente dos aparelhos genitais externos, detalhes que indicializam relações e estabelecem lugares.
Segundo Berlitz, 'a maioria das línguas européias está imbuída de uma preocupação gramatical com o gênero dos substantivos que também influencia os adjetivos empregados com eles'. Embora o Latim admitisse o gênero neutro, todas as línguas neo-latinas aboliram essa prática, limitando-se à rigidez e (muitas vezes) à arbitrariedade da delimitação entre masculino e feminino. Já no alemão, no grego e nas línguas eslavas todos os substantivos são masculinos, femininos ou neutros.
Algumas curiosidades acerca das preferências explicitadas pelas gramáticas de algumas línguas ganham - do ponto de vista do estudo do gênero na cultura - importância maior que um efêmero sorriso de surpresa. No inglês, apenas os substantivos que se referem a pessoas e a grandes animais flexionam em gênero; todos os demais são neutros. O chinês possui pronomes pessoais assexuados. O italiano só contempla dois gêneros, mas oferece 11 variações de artigo definido para que masculino e feminino soem sexualmente diferentes a cada combinação com o gênero do susbstantivo. O alemão e o russo possuem gênero neutro, embora seja praticamente impossível determinar regras que confirmem alguma lógica histórica na categorização dos sexos dos objetos e dos fenômenos. Isso não impede que haja alguma unanimidade: sol é masculino e lua é feminino em quase todas as línguas conhecidas, com exceção do alemão onde as posições são invertidas; da mesma forma, dia segue a forma masculina enquanto a noite guarda mistérios femininos.
O alemão guarda algumas particularidades intrigantes no que se refere ao sexo das palavras: criança é um substantivo neutro, pelo menos enquanto a atividade sexual está, nela, aparentemente adormecida; depois disso, se a criança é moça ou menina (das Mädchen), permanece neutra, ao passo que sua correspondente masculina, garoto ou rapaz já adquire com vigor o gênero masculino. E se não bastasse a indiscriminação, a mulher casada, a esposa (das Weib), continua sem merecer destaque sexual: é neutra.
Mas também o francês nos surpreende ao referir-se à vagina com um solene artido definido masculino, le vagin. O masculino é, do mesmo modo, proeminente nas gramáticas neo-latinas: apenas um homem num grupamento de mulheres determina o gênero masculino para todos os demais substantivos e adjetivos que se referirem ao evento. E também o termo feminino é, paradoxalmente, um substantivo masculino.
Para finalizar essas pequenas e instigantes curiosidades, é interessante citar que o russo parece compreender perfeitamente que só a experiência e a memória podem determinar o sexo: seus verbos flexionam em gênero, mas apenas nas formas do passado.
Afora as línguas 'naturais', os demais códigos e convenções sociais estão pautados pela firme e contrastada separação de atitudes e comportamentos entre o homem e a mulher. A história dos costumes relatada e analisada com humor e rigor por Norbert Elias no primeiro volume de ' O Processo Civilizador' não deixa dúvidas quanto à marcação vigorosa dos limites entre os sexos, seja à mesa, seja nos jogos, no asseio pessoal, ou nas relações amorosas. A 'educação dos meninos' e a 'educação das meninas', segundo padrões vigentes até o início deste século, seguiu rígidas discriminações de padrões e funções, severamente vigiadas especialmente no que diz respeito à limitação de manifestações do desejo ou do interesse sexual.
Socialmente, língua, costumes, convenções parecem reconhecer apenas a existência de dois poderosos e absolutos gêneros. A eventual neutralidade com relação a essa oposição apositiva não tem nome nem explicação: é como um limbo, um ponto de passagem ou um lugar de conveniência para acomodar o que incomoda ou perturba o sistema estabelecido. Ou, como no caso das línguas, uma função que serve (= pode ser útil) a ambos os gêneros.
O Gênero na Cultura
No âmbito dos códigos da cultura (segunda realidade), entretanto, a diversidade insiste em aflorar, atrapalhando a serenidade dual sócio-biológica da primeira realidade e levando para lá situações e impasses constrangedores, inibidores.
Referimo-nos aqui às variações possíveis entre os dois boxes que a ciência da biologia primeiro nos ensinou e que as leis sociais consolidaram como espaço permitido de convivência e conveniência. Não estamos nos referindo necessariamente às escolhas sexuais, ao investimento do desejo num corpo similar ou numa reflexividade narcísica. Tais articulações já estão por demais desenvolvidas no âmbito da psicologia e da psicanálise e não demandam, agora, complementação. O que nos interessa - isso sim - é pensar como algumas variações improváveis ou novas ritmizações com relação aos gêneros perturbam a pax clínico-terapêutica que trabalha no sentindo de apaziguar conflitos de toda ordem. Sabemos que a corda lógica e reticenciosa do insconsciente tende, quando bem assistida, ao caminho da resolução. Ainda bem, pois do contrário não haveria como aliviar o angustiante stress que a obsessão pela solução final provoca.
Os códigos culturais são, a princípio, obedientes e não discutem com suas determinações. Representam-nas com a grosseira fidelidade que a tradução permite. E só por isso podem livremente proliferar em associações pluridimensionais, como se autorizassem a repercussão do mandato que o primeiro signo lhes outorgou.
Homem e mulher ocupam, neste lugar, espaços inquestionavelmente delimitados mas freqüentemente transgredidos pela ansiedade combinatória embutida no rol das precariedades humanas.
Se a cultura copia a natura, não é por outra razão que entendemos, sem grande esforço, estarem associados ao masculino e ao feminino atributos que mantêm as marcas indeléveis das diferenças externas entre os sexos, refinadas nas sutilezas que se desdobram em seqüência.
A fisiologia genital masculino prima por ser exposta, explícita e expressa sem maiores sutilezas. A feminina é implícita, introvertida, embutida, sutil e misteriosa ao observador externo. E só isso é suficiente para fazer um grande barulho na cultura.
Os conceitos de dentro e fora foram analisados pelo semioticista e comunicador alemão Harry Pross como fundantes na experiência pré-predicativa do ser humano[3]. Para ele, a origem da força dessa díade oposta e complementar na percepção humana foi determinada pela aquisição da posição vertical: a criança se levanta do berço e o homem ganha a posição ereta quando sai da floresta e vai para a savana.
Na filogênese quanto na ontogênese, é a conquista da verticalidade[4] que traz o estímulo ao esquadrinhamento do espaço e à consciência da distância, conhecimentos que se desdobram nos conceitos de dentro e fora, acima e o abaixo, direita e o esquerda, frente e verso, etc.
Tais são as percepções fundamentais para que o ser humano saiba situar-se no espaço e no tempo e aprenda, a partir de então, a administrar o exercício da abstração, ou seja, a capacidade de entender algo em sua ausência, de operar com elementos cognitivos sem experimentar ou medir comportamentos, a competência de criar metalinguagem, de pensar o pensamento e, em última análise, de ter consciência da morte como fim, fato somente superado pelas criações simbólicas da segunda realidade (como as crenças na vida eterna).
Assim, fundadores de outras feixes perceptivos, a exposição ou a dissimulação dos genitais não só convoca a atenção primeira do homem para o outro (e reflexivamente para si mesmo) como também orientam todas as demais separações que ele, animal cultural e metalinguístico, desenvolveu para pontuar simbolicamente as fronteiras entre o que é (e deve ser) masculino e o que é (e deve ser) feminino.
Segundo tal premissa, poderíamos agrupar e separar atributos de acordo com a natureza genital de cada sexo, o que nos ofereceria um quadro - grosso modo - aproximadamente assim:
Masculino Feminino
Extroversão Introversão
Explicitação Ocultação
Exposição Introspecção
Exibição Inibição
Demonstração Dissimulação
o que já nos daria um panorama próximo do verossímel, se descontarmos o fato de que tal quadro proporciona uma visão de extremos polarizados por atributos radicais.
Refinando as relações de oposição e resguardados ainda os critérios genitais, teríamos, segundo a conformação dos sexos, divisões tais quais:
Masculino Feminino
Vigor Passividade
Força Fragilidade
Brutalidade Delicadeza
Agressividade Compreensão
Impacto Absorção
Iniciativa Recepção
Ação Reação
Ambição Submissão
Dedução Indução
Razão Emoção
Vazão Acolhimento
Revelação Mistério
Impulsividade Reflexividade
O fato de o órgão sexual masculino projetar-se e enrijecer-se quando estimulado explicaria, a princípio, os atributos culturais ligados ao campo semântico do vigor, da agressão, da extroversão e da iniciativa, ao passo que a concavidade do oco aparelho vaginal feminino[5] sugere recepção, preenchimento, afeto, recepção, introspecção. Novamente percebemos aí a vocação para o encaixe que completa, preenche e torna uno o que parece ter sido cindido desde a origem, em desvantagem mútua.
V.V. Ivanov vai mais longe ao relacionar cores e posições aos sexos polares: a cor rosa que caracteriza a feminilidade estaria associada ao sangue diluído do menstruo enquanto cores escuras como o azul e o preto estariam associados à pouca flexibilidade e rasa permeabilidade do homem. De outra forma, a homem ocupa sempre o lado direito, reservando à mulher o seu lado esquerdo. Essas posições são confirmadas desde tempos imemoriais pela observação de pinturas rupestres, inscrições em templos e lápides e, mantidas inexplicavelmente pela civilização moderna, como podemos verificar numa rápida passada de olhos nos manuais de etiqueta para a vida social.
Os Outros ... e as Outras
Comentando as teses de V.V. Ivanov, Bystrina nos fala dos universais da cultura - os elementos pouco variantes das culturas de todos os tempos e de todos os lugares - dos quais a binariedade, ou seja, a tendência a agrupar em dois elementos o fator primário de significação, é o maior e o mais eficiente dos ingredientes da cultura. Os dois sexos, colocados em oposição, são também polares e radicais, mas a relação entre eles seria impossível se o desejo, o interesse e a experiência não os aproximassem.
O fenômeno da comunicação humana, objeto do pensamento filosófico desde sua origem, busca estreitar relações entre sujeitos diferentes que procuram, de certa forma, afinidades em torno das quais possam compartilhar solidariedade. Porém, essa é também a ocasião de reencontrar diferenças que se quer esquecer ou das quais nunca se tenha tomado consciência. Bem vindas ou perturbadoras, a constatação das diferenças enriquece as relações na medida em que contribui para alargar perspetivas e projetando novas possibilidades de experimentação do mundo.
Portanto, a comunicação aproxima homem e mulher, levando-os à descobrirem a paz provisória e fugaz da complementação - enquanto buscam suprir carências mútuas - e sentimentos menos gratificantes como solidão, abandono, intolerância - enquanto constatam o enorme vácuo que os separam em diferenças inconciliáveis.
O acordo não nos parece possível na radicalização, senão na busca negociada - passo a passo - de posições intermediárias entre as balizas extremas da masculinidade e da feminilidade que a cultura pontua e o ser humano - animal cultural - preza, preserva e necessita lembrar para não perder suas especificidades.
É nesse sentido - no sentido da negociação dialogada - que ambos os sexos relativizam (porque o fazem tão-somente na relação) suas próprias referências sexuais, admitindo o consumo de referenciais simbólicos do sexo oposto, agora justaposto ou 'melhor posto'.
Temos de reconhecer que homem e mulher, imaginados na plenitude das peculiaridades que a cultura lhe imprime, não teriam como dialogar senão na satisfação egoica e fugaz de suas respectivas e radicalmente diferenciadas carências. Nos extremos, o homem/macho tenderia a uma brutalidade sem precedentes que inviabilizaria toda e qualquer susceptibilidade, ao passo que a mulher/fêmea, em sua nostálgica e inerte passividade, estaria aguardando, ad eternum, a boa vontade e o desejo do homem para, efemeramente, satisfazer-se. Uma relação impossível.
E é a partir de então que somos levados a admitir o quão complicado seria ao homem encontrar sua mulher e à mulher encontrar o seu homem, sem que ambos deixem de ser, respectivamente, tanto homem, tanto mulher. Daí é possível entender (não necessariamente justificar) a existência de percursos e cruzamentos múltiplos entre os opostos radicais, que embaçam a distinção inequívoca entre os sexos. E como não há maneira de limitar a priori o consumo de referenciais alheios, é bem possível que o repertório simbólico feminino venha a exercer sobre o um do sexo masculino imenso fascínio, dedicado ( e delicado) consumo.
A homossexualidade, assim como a heterosexualidade, não se dão, portanto, nos extremos nem com absoluta exclusividade. Ao contrário, são inclusivas porque reconhecem a troca, a mudança, a transferência negociada de valores capaz de sustentar a integridade de caráter, de personalidade, de identidade (e reconhecimento).
Neste sentido, os outros e as outras somos todos nós que não somos nem apenas um ... nem apenas outro.
O Dilema Homossexual: da autodiscriminação à discriminação da cultura
Nessa perspectiva, somente é possível pensar o homossexual como aquele ou aquela que - por graus variados de necessidade e contingências - chega a desejar e consumir dominantemente referenciais simbólicos do outro sexo, de tal forma que, identificando-se com ele, passe a desejar uma nova oposição: aquele que antes lhe era 'fantasticamente' igual.
É evidente que, munido de um arsenal biológico masculino, o homossexual sofra, inicialmente, a inadequação de seu equipamento. Os referenciais simbólicos femininos que ele consome e alimenta não são adequados ao seu corpo. Essa incompatibilidade gera imediata frustração e grande inconformismo, contornado apenas pela obsessão de não se deixar vencer por essa inevitabilidade bio-sócio-cultural.
Não nos propomos aqui a estabelecer hipóteses que expliquem ou justifiquem a opção ou a tendência irrefreável a uma sexualidade invertida. Interessa-nos, porém, traçar considerações sobre razões que levam as sociedades organizadas e as culturas institucionalizadas a não admitirem convivência pacífica com uma opção que transgride as regras da significação compartilhada em pólos binários e inequívocos.
O homossexual, seja ele ou ela, exige um espaço maior do que aquele previamente arranjado pelo contrato social, uma vez que circula de forma ambígua e paradoxal[6], de forma perversa e subversivamente anárquica, confundindo os lugares previamente pontuados para comportar esta ou aquela gama de atributos óbvios e triviais reservados ao masculino e ao feminino.
É nesse sentido que podemos entender o incômodo causado pelo homossexual: ele lembra, a todo momento, que a ordem é instável, que a subversão é iminente, que o mundo comporta mais categorias do que aquelas poucas comodidades preservadas para assegurar a tranqüilidade do sistema.
Visto como provocação e provocativo, o homossexual desperta a fúria e a reação, muitas vezes violenta, de quem mais se incomoda com a ameça que sua simples presença representa. E essa reação se dá, primeiramente, para quem se sente ameaçado e, posteriormente (e na visão do ameaçado), para toda a sociedade, com suas regras, normas e ordenações.
As instituições que estão no centro das culturas (notadamente a escola, a família, a religião, o exército, o Estado) não podem (e nunca puderam) suportar a diferença instaurada pela transgressão homossexual porque sua força destrutiva pode agir de forma devastadora sobre os frágeis (e inquestionados) alicerces que as sustentam. De sua parte, o homossexual deve comportar-se de forma dissimulada, como se hetero fosse, caso queira permanecer sem grandes conflitos nesses ambientes, o que não impede que nos corredores da informalidade o incômodo seja instaurado por fofocas, boatos, especulações de toda ordem.
Acuada ou recusada, a homossexualidade investe mais fortemente nos subterrâneos da cultura, nos espaços de passagem, nos locais ou tempos pouco ritualizados, nas zonas cinzentas (como diz Pross) que as fronteiras entre o permitido e o proibido criam para comportar provisoriamente a indefinição. Dessa forma instaurada, a homossexualidade encontrará outros companheiros ou companheiras rejeitadas pela vigília social e tenderá a estender a mão às demais atividades que só podem coexistir á margem da cultura. Estão por aí os artistas, os poetas, os viciados pelos prazeres radicais, os insatisfeitos e inadequados ao funcionamento da máquina social, defeituosos que prezam seus 'defeitos' ou que desistiram de consertá-los.
Evidentemente mais próximos e sensíveis ao diálogo com a não-cultura - aquelas criações simbólicas ainda não autorizados a penetraram o núcleo ou o acervo das novidades banidas de suas fronteiras - os sexualmente desviados da normalidade consensual terão maiores chances de ampliar seu repertório e contribuir, assim, para o arejamento do sistema nuclear das culturas. A duras penas, porém.
O dinamismo com que se dão os arranjos, dessaranjos e rearranjos do acervo simbólico é fator vital para a sobrevivência de qualquer cultura[7]. Portanto, não há como prescindir das trocas clandestinas instauradas pela transgressão, sob pena de o processo cultural estacionar num conservadorismo suicida que esclerosa e torna inoperantes seus mecanismos dialógicos de perpetuação.
Conformação e Confrontação
As posições de confronto ou conforto instauradas pelas escolhas ou contingências sexuais mais ou menos aproximadas dos extremos pontuados pelas culturas trarão, respectivamente, maior estabilidade ou instabilidade à produção simbólica de textos culturais. Referimo-nos aqui às atividades de caráter criativo-imaginativo (Bystrina), deixando de fora aquelas prescrições instrumentais que orientam o dia-a-dia e o fazer pragmático dos rituais do calendário (Pross).
Sabemos também que a obra de arte opera no nível da metalinguagem. É auto-referente, embora traduza, em signos sutis, os limites da qualidade de sentimento que intenta representar. Não há portanto, como deixar de veicular, ela mesma, elementos transgressivos que sugiram ou inaugurem novas maneiras de perceber e significar o mundo.
A reordenação lembrada e provocada pelas identidades de gênero sexual intermediárias ou cruzadas, assim como a arte, ao provocar estranhamento mobilizam as linguagens e impedem que a trivialidade, a linearidade e a previsibilidade se cristalizem, deteriorando a atualidade das culturas.
Na boa arte como nas demais contravenções culturais, o que mais pode contribuir para o adensamento e o enriquecimento das categorias de significação não é tanto a instauração da novidade quanto a pressão pela continuidade do movimento de leva-e-traz que as posições inconformistas estimulam, mesmo sem querer.
Nesse sentido - e com essas cores - a questão do inconciliável entre os gêneros transcende a rasa aspiração ao consentimento e à inclusão nas categorias sociais. O reconhecimento social corresponderia, assim, ao amordaçamento do prazer e da gratificação que só a trangressão pode instaurar. No sexo, como nas artes, como na ciência.
Bibliografia
Berlitz, C. (1988) - As Línguas do Mundo - 3. Ed. - Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
Bremmer, Jan (1991 ) Pederastia Grega e Homossexualismo Moderno, in De Safo a Sade - org. Jan Bremmer, Editora Papirus, Campinas SP
Bystrina, Ivan (1995) – Tópicos de Semiótica da Cultura (pré-print). São Paulo: CISC/PUC-SP.
Bystrina, Ivan (1989) – Semiotik der Kultur – Zeichen, Texte, Codes. Tubingen: Stauffenburg.
Costa, R. P. (1994), Os 11 Sexos do Homem - as múltiplas facetas da sexualidade humana. Editora Gente, São Paulo
Elias, Norbert (1994), O Processo Civilizador - uma história dos costumes (vol.1), Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro.
Foucault, M. (1994) História da Sexualidade - o uso dos prazeres (Vol.2). Edições Graal ltda, Rio de Janeiro.
Hekma, Gert (1991), Uma História da Sexologia: aspectos sociais e históricos da sexualidade, in Bremmer, Jan (org) De Safo a Sade, Editora Papirus, Campinas SP
Landovski, Eric (1994) Masculin, Feminin, Plural - Pré-print - Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo.
Lotman, Iuri et alli (1979) - 'Tesi per un analisi semiotica della cultura', in La Semiótica nei Paesi Slavi. Milano: Feltrinelli. A cura di Carlo Prevignano. Pp 944-1020.
Meneghetti, A. (1986) Eu Odeio o Transfert - Trad. A. Vidor, Editora Ontopsicológica, Santa Maria RS
Pross, Harry (1980) Estructura Simbolica del Poder, Col. Mass Midia, Ed. Gustavo Gilli, Barcelona.
Romano, V. (1993) Desarrollo y Progreso - por una ecologia de la comunicación, Editorial Teide, Barcelona
NOTAS
[1]- Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, Professor e Pesquisador Associado Adjunto no Programa de Pós Graduação em Comunicação da FAC/ UnB - Brasília DF.
[2]- É importante notar que o artigo DEFINIDO não pode, por lógica, admitir forma neutra, indefinida e imparcial. Até mesmo o artigo indefinido flexiona em gênero bi-sexual, sendo impensável para apontar o que a língua não permite que exista: a indefinição entre masculino e feminino.
[3]- 'O que se revela como mais duradouro são as experiências feitas na primeira infância sobre a própria corporeidade e sua relação com outra materialidade que não pertence ao mesmo organismo. O recén-nascido experimenta o espaço circundante como prolongamento do próprio corpo. As resistências que encontra o obrigam à diferenciação e, mais tarde, à formação de conceitos.' ( Pross, 1980:46-47)
[4]- A horizontalidade é associada, por Pross, à morte ou ao período do sono, quando o homem abre mão da vigília para restaurar suas forças físicas e psíquicas. Ambas se traduzem, para o autor, em situações de ausência de vida ativa.
[5]- Vagina deriva de vago, pequena vaga, vaguinha.
[6]- o que provavelmente caracteriza esse movimento e o torna, de certa maneira, previsível é o fato de que ele se dá por interesses e desejos contraditórios e contrários, se confrontados com o menu oferecido pelas convenções sociais.
[7]- a tese 1.3.1 dos semioticistas eslavos assim explicita esse mecanismos da cultura:
'Dessa maneira, da posição de um observador externo, a cultura não representará um mecanismo imóvel, sincronicamente equilibrado, mas um sistema dicotômico, cujo trabalho será percebido como a agressão da ordem contra a desordem e, na direção oposta, como a invasão da desordem na esfera da organização. Em momentos diferentes do desenvolvimento histórico pode prevalecer uma ou outra tendência. A incorporação na esfera cultural de textos que vieram de fora pode ser, algumas vezes, um poderoso fator estimulante para o desenvolvimento cultural' (Lotman et alii, 1979: 973-974)
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