A personagem, uma das grande polêmicas na análise das obras literárias. Com esta ensaio, vai a minha contribuição à esta polêmica. Analisarei a personagem, mas uma personagem diferente da encontrada em romances, contos e novelas, diferente, portanto, das personagens encontradas na tradição literária. Talvez, esta personagem seja a que melhor represente, hoje, na era da e-book, juntamente com a personagem televisiva e cinematográfica, o conceito da mímesis aristotélica, a representação do real. Trata-se da personagem de histórias-em-quadrinhos.
A história-em-quadrinhos é um gênero que, no mínimo, chama muito a atenção, pois utiliza-se de texto e imagem, muitas vezes transformando, de forma magistral, a imagem em texto e o texto em imagem. Essa particularidade coloca-a entre a literatura e o cinema e a televisão. Daí, acredito eu, a sua popularização, pois não tem aquela “elevação” mítica do gênero literário, que muitas vezes espanta a grande maioria da população, que acredita, erroneamente, ser a literatura para uns pouco “escolhidos pelos deuses”; ao mesmo tempo que conserva características puramente literárias, como a imposição de um narrador entre a história e o leitor.
Uma outra característica que torna popular a hitória-em-quadrinhos é aquela sensação de simultaneidade e realidade, advindas do cinema e da TV. Só pelo fato da própria estrutura dessa história ser, em seu todo, caracterizada pelo seqüência, nem sempre lógica, de cenas colocadas dentro de “quadrinhos”, como fotografias, já observamos uma clara recorrência ao cinema, que nada mais é do que uma seqüência de fotografias que, quando reproduzidas, dão a impressão de movimento quando, na verdade, estão imóveis.
Levando essas observações preliminares em consideração, é que escolhi a personagem do Batman, principalmente por ser uma das mais populares no Brasil e também no exterior, somente atrás do Superman. Nesse ínterim, não peguei uma história qualquer desse herói como ponto de partida, mas uma lançada em edição especial, em que se conta como surgiu o Curinga. Tal gibi tem como título A Piada Mortal e é escrito e desenhado por Alan Moore e Brian Bolland. Além disso, juntei também um pouco daquela experiência, podemos chamar assim, na leitura das aventuras desse herói que, acredito eu, povoou a infância e a juventude (e talvez também a idade adulta) da maioria das pessoas, sejam elas pobres ou ricas. Afinal de contas, quem nunca ouviu falar do Homem Morcego?
Um esclarecimento: não analiso aqui a personagem do Robin, por acreditar ser assunto que tomaria um ensaio tão grande ou maior que este, dando muito pano para a manga quanto a questão do duplo, do espelho, do mestre e do aprendiz, da personificação da juventude ante a velhice, etc.
Assim, neste ensaio, o foco de análise será o papel de herói contemporâneo, fragmentário, massificado enquanto obra de arte e, portanto, discutível representado pelo Batman, levando-nos a pensar até que ponto podemos chamar uma personagem de herói, ou se é que ainda existe uma personagem contemporânea que poderia ser chamada de herói, na acepção mais estrita da palavra, seja essa personagem literária, cinematográfica, televisiva ou mesmo de história-em-quadrinhos.
Herói: antes de mais nada, o que é o herói? Seria ele a personagem principal de uma obra? Nem sempre. Muitas vezes o herói é justamente a personagem oposta, contraditória, criminosa da obra. Ora, não teríamos então, neste caso, o anti-herói? Hoje em dia, é bastante difícil determinar até que ponto o herói é herói ou anti-herói. Na antigüidade clássica, a figura do herói era muito bem marcada: aquele que servia de exemplo para o povo, pois era um poço de virtudes – o mais belo, o mais culto, o mais corajoso, o mais rico, geralmente um semideus.
E hoje, nos tempos super modernos, quem é o herói? O herói contemporâneo tem suas origens juntamente com o surgimento do romance, portanto, sua problemática é tão grande quanto a definição do que é romance. Esse herói já não tem características pré-fixadas, tornando-se mutável, portanto fragmentando-se. Isso está ligado principalmente ao fator psicológico que o romance veio acrescentar à literatura. O herói contemporâneo acaba sendo aquele que melhor se identifica com o leitor, aquele que o leitor gostaria de ser na realidade, mais não pode. É justamente essa questão que procurarei elucidar com esta análise do Batman: como ocorre essa identificação do leitor real com a personagem do herói de ficção.
2. TRAÇOS DE HERÓI CLÁSSICO E MEDIEVAL
Observemos agora algumas características que estão presentes no Batman, mas que são típicas dos modelos pré-romanescos de herói. Assim, apesar do Batman ser um herói pertencente à era contemporânea, ainda distingue-se nele alguns traços observados no modelo de herói clássico e medieval. Entenda-se por herói clássico o herói apresentado nas epopéias gregas e latinas, como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. O modelo básico desses heróis é Aquiles, o grande herói da Guerra de Tróia que, podendo escolher entre viver muitos anos, desde que não tomasse parte na guerra, ou morrer muito jovem, se viesse a tornar-se um herói da guerra, escolheu tornar-se herói.
Quanto ao herói medieval, entenda-se como tal o cavaleiro andante, aquela figura que aceita grandes desafios em nome de um amor platônico por uma musa, representado nas novelas de cavalaria. O mais famoso deles, tido também por modelo básico desses heróis, é Galaás, o protagonista da novela A Demanda do Santo Graal.
É claro que, hoje em dia, como o herói contemporâneo é uma espécie de “evolução” dos outros modelos de herói, as características clássicas e medievais não mais são identificadas pela maioria da população, que as toma todas por algo imanente em qualquer tipo de herói. Entretanto, é conveniente apresentarmos algumas que são recorrentes na construção da personagem do Batman.
Assim, podemos observar que, em A Piada Mortal, assim como em qualquer outro gibi de suas histórias, o Batman apresenta o fator coragem, muito importante ao herói clássico. Essa característica é que distinguia o herói clássico como tal, ou seja, aquele que salva a pátria, aquele que defende a honra dos seus, aquele que não teme o perigo da morte. No decorrer da história, pode-se notar que o Batman não se intimida quando atacado pelo Curinga, o “vilão” por conveniência.
Também há o fator beleza, que no caso do herói clássico é uma característica unicamente exterior. O Batman, em quaisquer de suas histórias, é sempre apresentado como um homem bonito e, apesar de muitas histórias suas, ele jamais envelhece. Pensando também no modelo de herói medieval, ou romântico, no qual a beleza exterior não era tão importante quanto a beleza interior (pois aquela morre junto com quem a possui), observamos que o Batman também apresenta esta característica (ainda que, em A Piada Mortal, seja um tanto quanto vaga), pois em um dado momento da história, ele sente compaixão de uma das vítimas do Curinga (no caso, a filha do Comissário Gordon). Ainda pensando no herói medieval, a beleza interior deveria coincidir também com o bom, que no caso do Batman é fato, e com o verdadeiro, que no caso do Batman é discutível, pois ele tem duas personalidades.
Há também o fator aristocrático, que é comum tanto ao herói clássico quanto ao medieval. O Batman em si não poderia ser analisado sob este aspecto, porém sua segunda identidade sim, uma vez que o Batman não é todo o tempo Batman; ele é também Bruce Waine, um milionário, dono das Indústrias Waine. Detalhe: quem sabe dessa dupla personalidade é o leitor das histórias e Alfred, o fiel mordomo do Sr. Waine. Dentro da história, mais ninguém tem esse conhecimento, daí pode-se concluir duas coisas: que o Sr. Waine também pode se transforma em Batman quando lhe convier e que a dupla personalidade de Batman é algo que chama muito a atenção do leitor que, inconscientemente, passa a acreditar ter um domínio sobre a personagem. O leitor passa a sentir-se um pouco escritor da história. Poderíamos dizer que essa é uma inteligentíssima técnica de Marcketing, pois faz com que o leitor massificado, ou seja, enraizado, a maioria das vezes inconscientemente, nas profundas searas do Capitalismo, sinta-se senhor de algo, qualidade que lhe falta na vida real, mesmo que seja algo que ele não possui, querendo, dessa forma, consumir sempre mais e mais gibis.
Se, por um lado, temos características tão marcantes de herói clássico e medieval no Batman, por outro lado temos traços tão marcantes quanto que distanciam o Batman desses modelos de herói. Um deles, e talvez o que mais salta aos olhos, é o fato do Batman não ser um herói acabado, algo impensável para o modelo clássico. Isso ocorre por que as histórias do Batman não são histórias de um herói falecido, mas sim de alguém que, no plano diegético, ainda vive. Não temos, portanto, domínio de quem é o nosso herói num todo. Já os heróis cantados por Homero e Virgílio são muito anteriores ao tempo em que esses autores escreveram suas obras, portanto, já estão mortos, e suas histórias são conhecidas num todo, ou seja, têm começo, meio e fim. Essa característica de inacabado do Batman é, podemos dizer, proposital, pois, de uma forma geral, seus gibis não seguem uma seqüência cronológica. Assim, os autores têm como continuar a saga da personagem.
Também não podemos nos esquecer que o herói clássico era uma personagem que evoluía no decorrer da história, pois envelhecia (daí o fato dele aceitar, e mesmo querer, como Aquiles, morrer ainda jovem, para que fosse sempre lembrado no auge de sua beleza). Já o Batman nunca envelhece, portanto, não evolui, além de nunca morrer ou machucar-se, pois, só para exemplificar, no final de A Piada Mortal, o Curinga lhe dá uma grande paulada e ele ainda consegue ficar em pé, tornando a cena até cômica.
No que diz respeito ao herói medieval, um fator que distancia o Batman desse modelo é o fato de que aquele herói sempre lutava em nome de Deus e dedicava suas lutas à uma musa, uma mulher que amasse. O Batman não luta em nome de Deus, mas, para a nossa sociedade massificada, ele luta pelo prevalecimento do bem e da ordem, sempre defendendo, nas histórias, toda a sociedade contra um perigo, ou alguém perigoso, que a acerca. Aparentemente, isso poderia nos levar a pensar que o Batman se enquadraria na característica de herói medieval mencionada acima. No entanto, se soubermos como a saga do nosso herói começa (entenda-se esse começo como o oficialmente dado pelos desenhistas), perceberemos que o Batman só existe por que teve os pais assassinados e, querendo vingar-se, começou a assolar os vilões que atacavam a sociedade, uma vez que não sabia qual deles havia matado sua família. Desse modo, o Batman luta em honra de si mesmo, e não em honra de Deus ou desta sociedade.
Concluindo, o Batman possui as características boas e ruins inerentes aos modelos de herói clássico e medieval, não se enquadrando perfeitamente nem em um, nem em outro modelo. Podemos dizer até que esta é uma das características do herói contemporâneo, que não se prende a modelos pré-concebidos.
3. BATMAN: HERÓI MODERNO E CONTEMPORÂNEO
Como se sabe, o herói moderno e contemporâneo tem suas origens na mesma época em que surge o gênero hoje denominado romance. Bakhtín, no ensaio Da Pré-História do Discurso Romanesco tenta deixar esse surgimento mais claro, propondo o que ele chamou de quarto drama, que seria um travestimento paródico, uma satirização, do modelo épico e trágico difundidos na antigüidade clássica. Esse travestimento paródico suscitaria uma crítica em relação ao texto lido, algo impensável na antigüidade.
Também no ensaio Epós e Romance, Bakhtín defende que o plurilingüismo é um dos pontos que ajudaram na evolução do estilo romanesco, pois o estudo dos outros gêneros (épica, lírica e dramática) é análogo ao estudo das línguas mortas; o do romance é como o estudo das línguas vivas, principalmente as jovens. Além disso, Bakhtín define quatro características básicas do romance: 1. O romance não deve ser “poético” no sentido pelo qual os outros gêneros literários se apresentam como tais; 2. O personagem do romance não deve ser “heróico”, nem no sentido épico, nem no sentido trágico da palavra: ele deve reunir em si tanto os traços positivos, quanto os negativos, tanto os traços inferiores, quanto os elevados, tanto os cômicos, quanto os sérios; 3. O personagem deve ser apresentado não como algo acabado e imutável, mas como alguém que evolui, que se transforma, alguém que é educado pela vida; 4. O romance deve ser para o mundo contemporâneo aquilo que a epopéia foi para o mundo antigo (...).
Resumindo, percebemos que, para Bakhtín, deve haver um máximo de área de contato com o presente, com o inacabado, e que o Homem (como personagem dentro do romance) deixou de coincidir consigo mesmo, o que não ocorria nos gêneros clássicos, que tinham justamente essa coincidência como um dos fins aos quais se destinavam.
Analisemos, agora, o herói do nosso gibi de acordo com as proposições de Bakhtín: com relação a questão do travestimento paródico, podemos observar que este está imanente no transcorrer da história toda, uma vez que podemos depreender várias características de herói de várias épocas (clássico, romântico, moderno etc.), todas embutidas em uma única personagem. Isso nos permite criticar as atitudes tomadas por ela durante o transcorrer da história, além de que essa característica também contribui para a fragmentação do nosso herói enquanto personagem inacabado, pois por causa disso abre-se um grande leque de possibilidades de continuidade da história. Imediatamente, essa linha de raciocínio nos remete diretamente às quatro característica básicas propostas por Bakhtín no ensaio Epós e Romance.
Certamente que o nosso herói não é poético, pois a própria narrativa da história não permite que ele o seja, uma vez que não temos a presença marcante de um narrador (apesar dele aparecer, em determinadas ocasiões, para introduzir alguma informação sobre o que está ocorrendo) contando a história, o que poderia amenizar-lhe algumas de suas características; mas sim uma história que conta-se por si mesma, pois a personagem apresentada como herói é o que é, e não o que nós gostaríamos que ela fosse. Se nos identificamos com ela, é por que a visão de herói que nos foi passada já é fragmentada, ou seja, uma visão totalmente contemporânea deste.
De fato, o nosso herói reúne em sua personalidade traços positivos, como o senso de justiça, e negativos, como o uso da violência, ainda que para o prevalecimento da paz e da ordem. Já não temos, então, uma grande diferença entre a personalidade do “bandido” e do “mocinho”, pois o “mocinho” também poderia ser o “bandido”. Essa característica está bastante imanente no contexto da história em que o nosso herói está inserido, pois logo nas primeiras cenas desta temos um diálogo amigável entre o Curinga, a personificação do “bandido”, e Batman, o nosso herói (o “mocinho”). Batman vai propor ao Curinga uma espécie de trégua, pois o combate entre eles já dura muito tempo. Seria uma espécie de “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.
Outros pontos interessantes, que contribuem para um melhor entendimento do nosso herói como ele é hoje, são levantados por Umberto Eco no ensaio O Mito do Superman. Esse ensaio tenta, a partir de uma análise do Superman, explicar o fenômeno da massificação e da mitificação do herói.
Como já comentamos acima, o nosso herói tem algumas características românticas. Agora, juntando-se a estas algumas outras características propostas por Eco, poderemos formar uma visão mais clara do que é essa quase abstrata qualidade de herói nos dias de hoje.
Primeiramente, Batman, assim como o Superman, tem uma dupla personalidade: na realidade, ele é o milionário Bruce Waine. Por causa disso, o Homem comum se identifica com o herói, uma vez que este também tem o seu lado “humano”, o seu lado gente como qualquer um.
Essa característica vem muito a calhar na nossa sociedade massificada, pois o Batman, por ser a personagem de história-em-quadrinhos mais próxima do indivíduo comum, do ser-humano, uma vez que não tem super-poderes e nem faculdades sobrenaturais, utilizando-se de armas desenvolvidas pelo Homem para se defender; personifica uma fuga individual que representa aquilo que o indivíduo gostaria de ser, e não o que este indivíduo deveria ser (como é o caso do herói clássico, que servia de modelo para toda uma sociedade), pois este vive sufocado numa sociedade onde sempre vence quem tem menos escrúpulos.
Além disso, nós temos (e no gibi que serve de base para esta análise isto está bastante evidente) histórias de confrontos bastante interessantes, geralmente imprevistos, porém vencidos pelo herói. Estas histórias geralmente têm uma narrativa curta, o que as aproxima do romance. Detalhe: não há um fio lógico dos fatos narrados. No gibi que analisamos, isso fica bastante claro, pois, no decorrer deste, temos o início de quatro histórias diferentes, mas que no final nem todas vão ser incorporadas à trama. No entanto, verificamos que esta característica não é encontrada apenas no decorrer de uma história dentro de um gibi, mas sim em todas as histórias do Batman desde a sua criação.
Essa característica, juntamente com o fato de que o Batman (assim como todo super-herói de história-em-quadrinhos) nunca envelhece, formam a atemporalidade do super-herói massificado e mitificado (por ser, justamente, alguém que todos gostariam de ser). Essa atemporalidade é necessária para que seja possível continuar a saga do herói, uma vez que, se ele se casasse ou envelhecesse, consequentemente um dia ele teria que morrer, o que não seria muito lucrativo para os desenhistas de suas histórias-em-quadrinhos, além, é claro, do choque social que esse perda causaria, uma vez que o Batman já se tornou uma espécie de ídolo: existe uma grande quantidade de colecionadores fanáticos, tanto crianças e jovens quanto adultos, de todo e qualquer produto que, de alguma maneira, esteja relacionado com o Batman.
Enfim, para concluirmos, tomemos as reflexões de Walter Benjamin sobre a obra de arte e o cinema, contidas no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, mas utilizando-as para a análise do herói. Para Benjamin, há um antes e um depois no estudo das artes: antes do cinema e da fotografia, e depois do cinema e da fotografia. O depois é o que nos interessa, pois a partir de então o conceito de arte passou a ser um tanto quanto relativo, uma vez que já não existe mais a aura da obra (sua unicidade, autenticidade, tradição e história), pois esta foi perdida para a técnica, que passou a reproduzir em larga escala tudo o que antes era produzido artesanalmente pelo Homem. Para Benjamin, o cinema e a fotografia são os grandes responsáveis por essa perda da aura, uma vez que eles mesmos são grandes disseminadores da reprodução em massa, pois não possuem unicidade (não podem ser vistos no todo), nem autenticidade (não são únicos); também não têm tradição e tampouco uma História.
É dentro desse enfoque que o nosso herói se insere: alguém que deixou de ter a aura que tinha o herói clássico. O herói de história-em-quadrinhos é algo feito para a massa, portanto, tem que ser tão fragmentado quanto ela.
Assim, o Batman não é um modelo (tanto no sentido teórico aqui usado, quanto no sentido moral) a ser seguido pela sociedade. Embora na história analisada, assim como em muitas outras, ele apareça como um “propagador da paz e da trégua”, não se consegue enxergar sua moral e seus valores. Essa atitude por ele tomada, é a de alguém que age pensando sempre em si mesmo e não diretamente na sociedade (não existe nada mais capitalista, ou massificado, do que esta idéia). Batman não é admirado por sua conduta, mas sim por sua condição social (a de herói) e por sua posição de homem comum (uma das suas duas personalidades), mesmo que rico. É alguém inacabado, que não conhece a si mesmo, pois não tem consciência do que é ou não capaz de fazer, nem sabe de onde vem e nem para onde vai. Alguém que não conhece seus inimigos, por isso não sabe de onde vem o ódio que estes sentem por ele (no gibi que serve de base para esta análise, há uma passagem em que Batman conversa com Alfred, seu fiel empregado. Batman pergunta, mais para si mesmo do que para Alfred, como que duas pessoas que não se conhecem podem se odiar tanto, referindo-se a ele a ao “vilão” da história, o Curinga).
Também é importante ressaltar que o Batman ainda existe como história-em-quadrinhos, e que não conhecemos com exatidão seu passado (na verdade, no gibi base, ficamos conhecendo melhor a história do Curinga), tampouco o seu futuro. Só conseguimos saber quem ele é se juntarmos os fragmentos que surgem em cada história, em cada gibi. Portanto, a aura do Batman, assim como a de todo herói de história-em-quadrinhos, é tão inexistente quanto a de um filme qualquer que vamos assistir no cinema, e que depois de algum tempo podemos comprar e termos em casa.
4. CONCLUSÃO
Finalmente, concluindo esta análise, podemos perceber que o Batman é o resultado de uma junção das características de herói clássico e medieval, mas sob um olhar contemporâneo. Todas estas características, boas e ruins desses modelos, estão embutidas de forma muito implícita dentro desse herói.
Por um lado, nós temos um herói belo (exterior e interiormente), corajoso, aristocrático. Por outro lado, temos um herói que luta por causas próprias, que tem valores morais discutíveis e que não pode ser tomado como um exemplo a ser seguido pela sociedade, mas por algo que essa sociedade gostaria de ser. Temos um herói de quem não conhecemos com clareza o passado, e que tem um futuro incerto. Um herói fragmentado, sem aura, que poderia facilmente ser o anti-herói ou o vilão.
O Batman é um herói construído pela e para a sociedade, pois esta só enxerga a si mesma dentro das histórias contidas em seus gibis, esquecendo-se de quem realmente é o herói. Todos os pontos que analisamos neste ensaio, para a grande massa, seriam a mesma coisa, pois o modelo de herói a que ela tem acesso é apenas esse tipo fragmentado e capitalista, ou seja, construído para ela.
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Referências Bibliográficas
BAKHTÍN, M. Da pré-história do discurso romanesco. In: __________ Questões de Literatura e de Estética. Teoria do Romance. SP.: Edunesp e Rucitec, 1988
____________ Epós e romance. In:__________ Questões de Literatura e de Estética. Teoria do Romance. SP.: Edunesp e Rucitec, 1988.
ECO, U. A sensibilidade estética medieval. In: ________ Arte e Beleza na Estética Medieval. RJ.: Globo, 1989.
_______ O mito do Superman. In: ________ Apocalípticos e Integrados, 2.ª ed., SP.: Perspectiva, s/d
VERNANT, J-P. A bela morte e o cadáver ultrajado. In: RIBEIRO, R. J. (Dir.) Discurso – 9. SP.: LECH – USP, 1978.