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Ensaios-->Ao Ar Livre -- 26/01/2002 - 00:25 (Daniel Pessini Sobreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ao Ar Livre
Ensaio sobre as sociedades de controle através da leitura da revista Você s. a.


Este ensaio foi escrito originalmente como trabalho final para a disciplina HZ657A - Sociologia Contemporânea,
Prof. Renato Ortiz, do departamento de sociologia da UNICAMP, e reflete apenas a opinião de seus autores.





Non ridere, non lugere, neque detestari, sed inteligere!
(Spinoza)



Advertências

a) A iniciativa de fazer um trabalho a quatro mãos foi um desafio. Mas logo acertamos o compasso. Compasso é uma boa palavra. Este ensaio foi uma dança, com seus tropeços. Um passo reivindica o seguinte, mas não o antecipa. O passo seguinte realiza o primeiro, mas não o contém. Por isso, o leitor tem de ser paciente e ir até o final para capturar o seu sentido. E só depois do itinerário completo, recapitulá-lo.

b) O objeto deste ensaio, as “sociedades de controle”, é uma tendência do desenvolvimento das sociedades contemporâneas e assim deve ser encarado. Apesar de o processo de trabalho ser ainda predominantemente característico das “sociedades disciplinares”, as “sociedades de controle” já subsumiram ao menos formalmente as mesmas e devem miná-las gradativamente.

c) Non ridere, non lugere, neque detestari, sed inteligere! Ao contrário de Spinoza, rimos muito, detestamos um pouco, quase não lamentamos, apenas resta saber se entendemos. O leitor pode fazer o mesmo com este trabalho. Rir, lamentar e detestar também representam dimensões do inteligir.


E assim começamos este trabalho...



Ao Ar Livre

Deleuze propõe o termo “sociedades de controle” com o intuito de descrever a nova forma de organização social que emerge em substituição às “sociedades disciplinares” e com elas coexiste.
A expressão “sociedades disciplinares” compreende uma sociedade organizada a partir do confinamento dos indivíduos. Estes passam a sua vida em um estado de “internação” permanente, ainda que descontínuo, seja na escola, no exército, na fábrica ou em outras instituições sociais.
Segundo Deleuze, estes meios, apesar de relativamente independentes, são atravessados por uma linguagem analógica, que se estabelece na medida em que expele as razões materiais (relacionadas a formas de parentesco, de amizade, de comunidade e outras) que podem perturbar a formação de um espaço fechado absolutamente homogêneo na lógica que o orienta. A forma paradigmática das sociedades disciplinares é o “convento”, embora não vamos aqui rastrear as continuidades obscuras por que suas peças-mestras acabaram por enformar, mutatis mutandis, a estrutura das organizações sociais que se desenharam a partir do século XVIII e tiveram o seu apogeu no século XX. O convento, na medida em que regulamentava minuciosamente todas as manifestações da vida dos noviços, neutralizava suas idiossincrasias e adestrava-os para a rotina de sua organização. As sociedades disciplinares baseavam-se justamente na previsibilidade de todas as variáveis do sistema, rigidamente controladas em seus espaços fechados. A massificação e a individualização a que conduziam, antes que mutuamente excludentes, confirmavam-se na conformação de uma maioria silenciosa e segmentada, concentrada e isolada a um só tempo.
A partir dos anos 70 (do século XX), uma mudança de hábito impõe-se. A tendência declinante da taxa de lucros exige uma recuperação-reorganização do capital em escala mundial que inicialmente, ensaia experimentos diferenciados do seu sistema produtivo, mas depois transborda esses limites e satura outros setores da vida social.
O despotismo sans phrase anterior cede a formas aparentemente muito mais incoerentes na sua coerência, e, por isso mesmo, muito menos tangíveis. Essa intangibilidade revela-se na própria terminologia eufêmica (e endêmica) por que essa realidade é traduzida. A flexibilidade, por exemplo, é a palavra-chave para o entendimento dessa constelação. “A palavra ‘flexibilidade’ entrou na língua inglesa no século quinze. Seu sentido derivou originalmente da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal. ‘Flexibilidade’ designa essa capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e a restauração de sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas. A sociedade hoje busca meios de destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. As práticas de flexibilidade, porém, concentram-se mais nas forças que dobram as pessoas.”
A flexibilidade, enquanto princípio de organização, parte do pressuposto de que o resultado previsto de uma ação tem maior probabilidade de efetivar-se quanto menos detalhadamente os meios forem especificados, malgrado não possamos dizer o mesmo quanto aos fins. O controle irradia metas que, por sua vez, permitem uma espécie de “liberdade tutelada”, exercida a partir dos diferentes nódulos e indivíduos de uma gigantesca rede. Por outro lado, a onisciência dos novos sistemas de informação permite monitorar as atividades dos indivíduos com a mesma eficácia onipresente dos “tetos” (afinal, os tetos são os olhos de Deus, como lembra José Saramago), mas de uma maneira mais informe. “Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto ao outro.”
Mas a dominação sincrônica dessa integração reticular não aparece imediatamente como dominação. A época atual é mais envolvente e manipulatória, ou como disse Milton Santos, é, por definição, mitológica. Desçamos, portanto, do limbo conceitual em que nos encontramos, para o círculo infernal da “no man’s land” social, onde podemos ouvir as narrativas do “homem comum”.
Através da revista Você s. a. podemos apreender o modus operandi “ondulatório” que rege as ações nas sociedades de controle. Cunhamos o termo modus operandi “ondulatório” para dizer duas coisas: a) por modus operandi entendemos uma disposição estável para orientar a ação para uma determinada direção; b) com “ondulatório”, queremos dizer que é uma disposição estável para um estado de perpétua meta-estabilidade.
Quebradas as hierarquias piramidais, o homem do controle é submetido à contingência de uma formação auto-deformante permanente. Bordieu fala de “capital social” para designar um quantum social que determina a posição de um agente no interior de um campo, que se estrutura em torno da definição de “competências legítimas”. Desse modo, como a definição dos campos nas sociedades de controle é meta-estável, o homem de controle precisa “requalificar-se” conforme as ondulações dessa definição, porque o “capital social” fixo se desvaloriza em curto prazo, isto é, perde a sua qualidade de “social”.
O “você” do nome da revista é interpelativo. Do mesmo modo, a forma de dominação das sociedades de controle é fortemente interpelativa, responsabiliza os indivíduos por seus próprios reveses, contrapondo a eles a dominação sutil de um processo racionalizador na forma de uma totalidade-destotalizada, que não descreve uma dominação exógena, mas endógena, dissuasiva, em que a logística tornou-se o todo da “guerra”, atravessando cada indivíduo e contrapondo-os a si e entre si. Esta totalidade-destotalizada determina anonimamente a medida dos indivíduos: você é uma sociedade anônima. Mais à frente, explicar-nos-emos melhor.
Trabalharemos com apenas um exemplar da revista, não apenas para facilitar a consulta mas também porque os elementos centrais das formas emergentes de controle penetram diagonalmente quaisquer exemplares. Palavras como “flexível”, “iniciativa”, “risco”, “desafio”, “sucesso”, “talento”, “excelência”, e outras ainda menos autóctones, como “networking”, “outplacement”, “marketing pessoal”, são como um mantra através do qual os indivíduos entranham a hexis exigida pelas novas formas de controle, subjetivam as forças cegas da objetividade.
Começaremos logo pela seção de cartas já que vox populi, vox Dei. Um leitor escreveu o seguinte: ”a reportagem ‘Desafios do Futuro’ agregou um valor inestimável para nós, leitores: mostrou profissionais que chegaram ao topo do mundo corporativo e o que fizeram para vencer os desafios da carreira. Os exemplos dados ilustram quanto temos de ser flexíveis na gestão da vida profissional e mostram como sermos hábeis na hora de tomar decisão.” Atente-se para a peculiaridade do vocabulário com que o leitor da revista refere-se a si mesmo: agregar valor, ser flexível, gestão da vida. A reificação da forma mercadoria é assumida positivamente como definidora do caráter (“corroído”, como diz Sennett), e sem o menor constrangimento. O indivíduo precisa agregar valor porque é uma mercadoria que nunca se completa, necessita mudar de forma após cada consumo. É esta aquela formação auto-deformante permanente a que nos referimos: um upgrade após o outro, mas um upgrade particular, uma vez que não necessariamente cumulativo.
Um outro leitor continua: “Ninguém chega a presidente de empresa apenas por obra da sorte. Como os presidentes entrevistados, o caminho é árduo e desafiador. Mas é gratificante olhar para trás e ver tudo o que foi feito, e o que ainda pode ser realizado.” Um amigo nosso, Ricardo C. Leite, refere-se ao homem do capitalismo flexível como uma “geléia humana”. Acreditamos que a imagem possa ser aprofundada. O homem do controle é o homem do curto prazo: a sua identidade constrói-se com relação a um referente meta-estável, desta maneira não se perfaz, é auto-deformante. A “geléia” evoca a imagem de um sólido-líquido, da perda nunca completada do sólido no líquido e do líquido no sólido, da morte em câmera lenta perpétua do sólido no líquido e do líquido no sólido. A sua propriedade ambígua de substância entre dois estados simboliza a própria metamorfose. Como modo de se contrapor a essa “corrosão do caráter”, o homem do controle, assim como o leitor acima citado, procura muitas vezes uma narrativa para embasar a sua própria biografia, mas ele só pode aproximar sua biografia dessa narrativa esvaziando ambas, convertendo-as em uma afirmação atemporal de valores atemporais. Os relatos a que o leitor reclama não podem prescrever nenhum caminho concreto: a biografia planejada é a obsolescência planejada. Se ele olhar para trás, verá apenas o seu próprio itinerário truncado, composto “por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos.” Se olhar para o futuro, verá que “o que ainda pode ser realizado” é a sua auto-desrealização: “a existência abstrata do homem como simples homem que trabalha, que por conseqüência todos os dias emerge a partir do seu nada realizado no nada absoluto, na sua não-existência social”.
Veja o que diz um internauta ao participar de uma promoção da revista em que os participantes são solicitados a narrar a sua “peregrinação em busca de emprego”: “Meu último emprego foi um parto. Fui entrevistado duas vezes por superiores dos Estados Unidos, três vezes por consultores em São Paulo e pelo diretor da matriz em visita ao Brasil. Trabalhei 48 dias. A empresa fechou e procuro por um novo desafio.”
Em verdade o indivíduo não pode sustentar sua biografia enquanto narrativa senão sob a condição de não se comprometer com ela. Pensamos aqui em comprometer no sentido forte que a palavra adquire na língua francesa. Compromettre tem uma proximidade semântica com éclabousser (enlamear) e com impliquer (implicar, meter-se, ir fundo). Comprometer é enlamear: é a penetração da água na terra, a perda da fluidez da água, de sua dissociabilidade e disponibilidade, a perda de sua alteridade. O homem do controle exime-se de seu passado descomprometendo-se dele, transformando-o no passado de um terceiro, em alteridade. O eu-passado é dissociado do eu-presente, é transcendido: é um ele narrado. Não estando comprometido com seu próprio itinerário, o homem do controle encontra-se disponível para uma nova utilização. O indivíduo não se reconhece no seu fracasso. O modus operandi “ondulatório” revela-se na apropriação de um ser fugidiço em sua própria fuga, e essa fuga desresponsabiliza o sujeito como se ele se apropriasse somente dessa própria fuga enquanto fruição e desafio. Dissemos anteriormente que a forma de dominação das sociedades de controle responsabiliza os indivíduos pelos seus próprios reveses, agora acrescentamos que estes se responsabilizam desresponsabilizando-se: desvencilhando-se deles ao jogá-los no passado, desenlameando-se.


Mas será que este esquema é eficaz?
“Um redator do New York Times declarou recentemente que ‘a apreensão com o emprego se impôs em toda parte, diluindo a auto-estima, rachando famílias, fragmentando comunidades, alterando a química dos locais de trabalho’.” Parece que aquela alienação auto-orientada do homem do controle falha em algum momento. A pseudo-dualidade que condiciona a solução encontrada pelo indivíduo contra a insegurança gerada pelo risco e o fracasso é refratária à auto-representação do indivíduo enquanto duração. O indivíduo torna-se cativo de seu próprio feitiço: o indivíduo, ao “dividualizar-se”, fica impedido de reconhecer-se em seu próprio trabalho realizado, e, por outro lado, ao individualizar-se, já não pode fugir de seu próprio fracasso. Essa solução evanescente padece de constantes turbulências: apreensões, medos, etc.
O exemplar da revista Você s. a. compulsado apresenta uma reportagem (bastante conveniente) sobre o medo: “Você tem medo de quê?” A epígrafe já é reveladora do seu conteúdo: “O medo é um sentimento natural e necessário ao homem. O problema é quando ele começa a causar sofrimento e a prejudicar sua vida e sua carreira.” Na revista, as vicissitudes do indivíduo são entendidas de uma maneira positiva. São reinterpretadas dentro de uma perspectiva pragmática: são descontextualizadas e desindividualizadas para poderem ser reindividualizadas (reapropriadas de maneira produtiva). O medo recebe o mesmo tratamento, é naturalizado positivamente. “Não há nada de errado em sentir medo. Trata-se, aliás, de um sentimento fundamental na vida de um ser humano. É o medo de sermos atropelados, por exemplo, que nos faz olhar para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Da mesma forma, é o medo de não cumprir o prazo dado pelo chefe que nos obriga a concentrar esforços e muitas vezes trabalhar até tarde para dar conta do recado.” É esse o espírito da coisa. Por medo, o indivíduo submete-se à formação auto-deformante permanente. Por medo da desvalorização do seu “capital social” fixo, por exemplo, o indivíduo transforma as suas férias em férias “produtivas”, aproveita para “turbinar o seu currículo”, para utilizarmos a terminologia da revista. Como dizia a velha máxima popular, “descansar carregando pedras”. Ou nas palavras de Deleuze: “o homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo.”
Após esta breve peregrinação, podemos retornar, ainda que enlameados (eclaboussés), ao limbo conceitual em que nos encontrávamos para enunciar (mas não em Dolce Stil Nuovo e sem a Beatriz de Dante) a tese central deste ensaio.
Nas sociedades disciplinares, as hierarquias piramidais permitiam ao indivíduo experimentar a sua situação como uma situação-forma objetiva, na medida em que alienada no mundo de um terceiro, ainda que este não fosse mais que mera personificação de regras formais nele atualizadas. Para os indivíduos que se encontram em uma mesma situação, o nós-vigiado emerge como situação-forma padecida, objetividade que só pode ser suprimida pela supressão do terceiro enquanto esse estranhamento. “A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência (...)” A reciprocidade interna da situação compromete a dominação enquanto terceiro-a-ser-suprimido, ainda que a dominação apenas na sua forma mais imediata (patrão, capataz, superior, etc.).
Nas sociedades de controle, a dominação encontra-se difusa, de modo que o terceiro aparece como uma totalidade-destotalizada e a situação-forma, não mais como realidade estruturada, sequer como situação-forma, mas como situação-fundo, como absoluto, conceito-limite de alteridade. Esse conceito-limite esboça-se no vazio de uma palavra perante a qual a sociedade inteira se representa enquanto objetividade e todos os indivíduos como solidários e equivalentes. “A palavra ‘excelência’ mudou, recentemente, de significado. Agora não se trata mais de um valor durável, um atributo ou uma qualidade superior. O que antes era um infinitivo - ser excelente - passou a ser um gerúndio - sendo excelente. Ela adquiriu mobilidade, transformou-se num patamar, numa seqüência sempre ascendente de posições, num quebra-recordes, numa corrida de ultrapassagens. Essa escala móvel define hoje os paraísos e os infernos temporários das empresas e de todos os que nelas estão.” A excelência, essa indiferença-interessada, compromete a todos na mesma estrutura de solidariedade feroz, belicosa, não para angariar um lugar, mas para estar à dianteira de um processo cuja lei está num futuro próximo mas vale retroativamente e deve ser obedecida por antecipação. “(...) a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo.”
O “sendo excelente” é consignação de um status no gerúndio e conforma um modus operandi “ondulatório”. A despeito de estabelecerem uma relação superficial e fugaz com um trabalho determinado, os indivíduos identificam-se novamente com o trabalho ao converterem a meta-estabilidade do “sendo excelente” no sistema moral que engloba toda a conduta do indivíduo. Vemos a exacerbação de um fenômeno que já era observado por Marx no século XIX. “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito, e, portanto, é-lhes indiferente. Neste caso o trabalho se converteu não só como categoria, mas na efetividade, em um meio de produzir riqueza em geral, deixando, como determinação, de se confundir com o indivíduo em sua particularidade.” Mas os indivíduos em sua particularidade começam a se confundir com a universalidade do sistema: há um entranhamento do estranhamento.
As pessoas experimentam-se como solidárias e equivalentes porque alienadas no mundo de um terceiro que é um terceiro absoluto, a própria lógica abstrata do sistema. Elas emergem dessa situação-fundo inquestionada, atualizando a lógica do sistema enquanto logística. Em uma dominação que “está mais em posição de fazer a contabilidade de suas próprias exigências do que de indicar um sistema pelo qual elas podem ser cumpridas”, a desmaterialização da autoridade ocorre concomitantemente com a interiorização da mesma pelos indivíduos, que se vigiam uns aos outros em equipes e cooperam disputando entre si as oportunidades, isto é, os “buracos” nessa organização frouxa. A harmonia das equipes de trabalho é “harmonia cínica”, pois nem todos podem “estar sendo” igualmente excelentes.
Embora os indivíduos se sintam no controle do processo de trabalho (e de suas vidas), o sentido e a “verdade” deste lhes escapam constantemente. A ilegibilidade do sistema submete os indivíduos a uma moratória ilimitada do sentido de suas ações. A necessidade existencial do indivíduo no que se refere a universalidade e integralidade de autodesenvolvimento é adiada indefinidamente. Mas a “harmonia cínica” e o “just in time” inviabilizam as formas tradicionais de resistência (os anarquistas, por exemplo, foram destituídos de seu objeto, a autoridade). Os indivíduos só podem enfrentar o sistema se forem ao seu âmago (de si e do sistema), atacando simultaneamente a sua “dividuação” e a materialidade do sistema (os pilares do capital).
Talvez estejamos entrando na fase “protestante” do capitalismo. “Lutero venceu, com efeito, a servidão à devoção, porque a substituiu pela servidão à convicção. Acabou com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, porque transformou os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, porque fez da religiosidade o homem interior. Emancipou o corpo dos grilhões porque colocou o coração em grilhões.” O capital, por sua própria natureza, não pode ser senão controle. Nas sociedades de controle, a máxima objetivação alienada da função de controle como capital promove de fato uma retransferência do poder de controle investido no capital para o corpo social, mesmo que de modo necessariamente irracional. O capital enreda-se na contradição fundamental entre a perda efetiva do controle e a forma vigente do mesmo. O capital libertou o homem da “disciplina”, mas fez do controle o “homem interior” (você s. a.), mantendo-se “exterior” como situação-fundo inquestionada, batendo recordes na sua expansão e concentração.
“Mas se o protestantismo não foi a verdadeira solução, foi a colocação verdadeira do problema. E não se tratava da luta do leigo contra o padre fora dele, mas da luta contra seu próprio padre interior, contra sua natureza padresca.” Nas sociedades disciplinares, o indivíduo permanecia emaranhado em conflitos locais. Nas sociedades de controle, o tema estrategicamente central é o controle social (sua “secularização', por assim dizer) e qualquer alternativa histórica viável deve ter necessariamente caráter global. Contudo, uma forma de organização coletiva capaz de ser portadora dessa alternativa não foi sequer esboçada. As esquerdas mundiais esperam ainda por Beatriz, e o “divíduo” precisa “individualizar-se”.






Bibliografia

Bordieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
Deleuze, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
Freitas, Maria Ester de. Contexto social e imaginário organizacional moderno. In: Revista de Administração de Empresas. Abr./Jun. 2000. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, v. 40, n.2, p. 6-15.
Marx, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. In: Teoria e Prática. n. 2, 1968.
Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001.
Revista Você s. a. Edição 39, ano 4, setembro, 2001.
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
Sennett, Richard. A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Virillio, Paul. Guerra Pura. São Paulo: Brasiliense, 1984
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