Perdoem-me a aliteração do título deste artigo, mas o desenvolvimento de sua idéia central o justificará, assim espero. Pretende-se evidenciar aqui alguns aspectos verdadeiramente notáveis da obra de Augusto dos Anjos (1884-1914), um poeta que parece ser lembrados mais por seus versos amargos (como o “escarra nesta boca que te beija”) ou macabros (“comi meus olhos crus no cemitério”), quase sempre depressivos, vazados numa forma rígida, densa, não raro se utilizando daquela linguagem cientificista que tanto desagradou aos críticos da época. Seu único livro, estranho até no título (Eu, 1912), foi recebido com indiferença – em muitos casos com repulsa – pelo público ainda ambientado na belle époque e no purismo parnasiano, onde a palavra “escarro” seria inaceitável numa composição poética.
O vate paraibano surge do nada, consegue efeitos incomuns nesta combinação de termos científicos aplicados à melancolia, à doença e à morte, compõe imagens expressivas que vão do tétrico ao sublime, numa época em que o “inconsciente” freudiano ainda não se difundira no Brasil, então positivista e conservador, e nem tão pouco havia sido inventado o surrealismo. O moço chega ao Rio, escreve febrilmente, enfrenta ingentes dificuldades para manter sua família, dando aula particulares, financia a edição de seu livro e, finalmente, consegue o cargo de diretor de um grupo escolar em Leopoldina (MG), para onde segue com a família. Digo “finalmente” porque o poeta logo contraiu uma pneumonia e morreu aos trinta anos de idade.
Temáticas recorrentes
O leitor superficial ou de “estômago sensível” certamente estranhará a insistência do poeta nos motivos fúnebres, na melancolia e no vezo cientificista, numa exaltação mórbida destes aspectos que parece chegar às raias do exagero ou da obsessão.
Os trechos a seguir exemplificam as temáticas recorrentes que pontuam sua obra:
“Melancolia, estende-me a tua asa / És a árvore que devo reclinar-me / E se algum dia o prazer vier procurar-me/ Diz a este monstro que fugi de casa”.
“A podridão me serve de evangelho / Amo o esterco e os resíduos ruins dos quiosques / E o animal inferior que urra nos bosques / É com certeza o meu irmão mais velho”.
“Bati nas pedras de um tormento rude / E minha mágoa de hoje é tão intensa / Que a alegria para mim é uma doença / E a tristeza é minha única saúde”
Entretanto, somente um leitor superficial e tendencioso se prenderá a estes elementos lúgubres (para não dizer repugnantes) e os considerará como sendo a tônica de toda a poética de Augusto dos Anjos. Há, porém, em sua obra inúmeras passagens metafísicas, transcendentais e, usando-se um termo atual, “engajadas” em causas até então inexploradas e que somente décadas depois adquiriram importância e repercussão.
Precursor da ecologia e da questão indígena
Se por um lado a poesia de Augusto dos Anjos carrega quase o tempo todo aquela densidade melancólica e funérea, alguns pontos de sua obra merecem um destaque maior e que, segundo me consta, ainda não foram recebidos. Numa exemplificação breve, dois temas se sobressaem em dois diferentes poemas: o soneto “A árvores da serra” e uma passagem contida num trecho do longo poema “As cismas do destino”. No primeiro acha-se nitidamente representada o que muito tempo depois veio a se chamar “ecologia” e, no segundo, aborda-se de forma objetiva a violência perpetrada pelos conquistadores europeus contra os nativos indígenas – tema que só veio a ser mais discutido nos anos 90, com a comemoração do quinto centenário do “descobrimento” da América.
O “soneto ecológico” de Augusto dos Anjos reproduz um diálogo entre um lenhador e seu filho, quando este tenta convence-lo a não derrubar uma árvore – “A árvore da serra”:
'As árvores, meu filho, não têm alma
E esta árvore me serve de empecilho.
É preciso corta-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma.
Meu pai, por que sua ira não se acalma,
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?
Deus pôs alma nos cedros, nos junquilhos,
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma.
Disse e ajoelhou-se numa rogativa,
Não mate a árvore, papai, para que eu viva.
E quando a árvore olhando a pátria serra
Rolou aos golpes do machado bronco
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra'.
É de estranhar que nenhum movimento ecológico tenha descoberto este poema para emprega-lo como libelo em defesa das árvores ameaçadas, no interminável desmatamento que vem se processando antes mesmo da época em que o poeta vivia, embora em menor escala. Mesmo atualmente, quando a questão ecológica e as discussões sobre desenvolvimento sustentável ganham tanto espaço na mídia, quase nada vi em literatura que seja mais expressivo e denunciador que este poema.
O mesmo caso se dá com o que atualmente se denomina “questão indígena”: em determinado trecho de um longo e denso poema, o autor põe-se a cismar sobre o impacto causado pela chegada dos europeus na vida dos nativos indígenas:
'A civilização entrou na taba
Que ele estava. O gênio de Colombo
Encheu de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba.
E o índio, adstrito à étnica escória
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Este achincalhamento do progresso,
Que o anulava na crítica da História'.
Um trecho que bem poderia servir de epígrafe a obras posteriormente muito significativas, como Enterrem meu coração na curva do rio, ou Nossos índios, nossos mortos, um trecho que certamente agradaria a Rondon ou aos irmãos Vilas Boas. Novamente, o enfoque do poeta é agudo, premonitório, expressivo... mas (ao menos no tocante à parte sublime de sua obra) praticamente desconhecido pelo grande público, que associa o nome de Augusto dos Anjos muito mais à morte e à melancolia do que a este tipo de conscientização.
Um existencialista e metafísico
Testemunhos dos que o conheceram falam de um moço tímido, mas simpático, muito estudioso e um tanto solitário. Apegado à mãe até os últimos momentos de vida, guardando a imagem de um pai culto e muito austero, teve uma boa esposa e foi feliz no casamento (embora dissesse num de seus versos que “o amor é como a cana azeda”), teve filhos e manteve sempre um profundo sentimento religioso (embora escrevesse num dos poemas: “a podridão me serve de evangelho”), sendo católico até à morte. A essência de sua poesia é eminentemente ontológica, num conflito entre a busca científica e o grande desconhecimento do Ser, da supremacia da Idéia (“De onde ela vem? De que matéria bruta vem esta luz?”) sobre a matéria e a reintegração no todo. Não é místico, como Fernando Pessoa, mas é metafísico e seu pessimismo resulta da frustração do sujeito diante de sua finitude e da impossibilidade de descobrir “a causa dos fenômenos alegres”. Augusto dos Anjos é um astro à parte, no universo de nossas letras e a Língua Portuguesa se exulta por sua valiosa contribuição.
A todos que falam mau de Augusto dos Anjos e vêem nele apenas os motivos fúnebres e melancólicos, costumo apresentar estes outros conteúdos verdadeiramente sublimes de sua obra e me sentirei feliz se estas minhas palavras chegarem a outras pessoas que também tenham esta indevida aversão ao poeta genial, cuja grandeza de seu estro pode ser constatada em suas próprias palavras, que fecham muito bem este artigo:
'Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e então imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo
Minha morada equilibrada e firme'.