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Ensaios-->PELOS SERTÕES DO PIAUÍ -- 08/04/2002 - 19:14 (Moura Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PELOS SERTÕES DO PIAUÍ

MOURA LIMA
“Falar assim é que é falar com a natureza. Não conheço povo como o nosso do sertão, que por palavras de mais realce ao seu sentir, tenha mais energia do dizer. . .”
Euclides da Cunha.


O meu avô, Pedro de Moura Alencar, piauiense da gema, alpercatona de couro, chapéu de sirigoba, de boa cepa, da árvore genealógica dos “Moura”, filho de Joaquim de Moura Alencar e de Maria de Moura Alencar, ambos das regiões de Oeiras, Picos e chapada do Corisco. Ao quebrar das barras, do ano de 1911, botou a tropa, batendo as bruacas e caçuas, ao som dos cincerros, de rota batida pro Nortão de Goiás, e não titubeou, foi dar com os costados à margem do rio do Ouro, em Descoberto, hoje Porangatu, onde situou a sua fazenda de gado.
Portanto, com essa bagagem genética piauiense, oriunda de meus avós paternos, pulsando no meu corpo, regada a carne de bode, farinha e rapadura. Não deu outra. Veio a furo, e levou-me a estudar, prazerosamente, a literatura do Piauí. E o primeiro livro que me cai às mãos, foi “Caatingas e Chapadões”, do escritor Francisco de Assis Iglésias. Empolgado com a leitura, não vacilei, dei corda ao pensamento, arriei o meu tordilho, ajaezado a capricho, sem esquecer de agasalhar no lombilho, o alforje de couro de mateiro, fornido com munição de boca, e no arção atravessado o rifle papo-amarelo.
Assim, preparado, para o que desse e viesse, segui de peito lavado o doutor Iglésias, pelos Chapadões, brejais tabuleiros e as longas veredas de buritis. Passamos por Bom Jesus da Gurguéia e toramos no mundo. Os carreiros eram um emaranhado e se bifurcavam assustadoramente. O sol estava a pino, no momento em que cruzamos uma mata rala de angicos, jatobás, quando saímos na chapada, sob verdejantes cajueiros, vislumbramos um rancho. Zé Cartucheira, como pagem, gritou:
- Ó de casa!
- Ó de fora! - respondeu uma voz feminina - podem chegar. Aí o doutor Iglésias foi logo perguntando:
- Como se chama esta morada?
- Flor do Tempo – respondeu a graciosa morena de olhos verdes. O doutor Iglésias, com a resposta se desmanchou todo, no seu jeitão, de alma poética, e, em introspecção exclamou:
- Flor do Tempo. . . é flor que nasce por aí, ao Deus dará, sem que olhos humanos contemple sua beleza peregrina. Flor do Tempo. . . Milagre da natureza, que esbanja prodigamente seu aroma delicioso em ambiente calcinado pelos raios solares, ao lado de vegetais rasteiros e insignificantes. Flor do Tempo. . . é flor que os anjos, brincando de jardinagem, semearam e o capricho da fecundidade fez nascer em outeiro desolado. Flor do Tempo. . . é um lírio do campo que suplica ao viandante que o leve, antes que as rudes patas da alimária o esmaguem. . .
Daí, após o pernoite, riscamos trilheiros e fomos bater em Santa Filomena, onde o doutor Iglésias comprou uma balsa de talos de buritis, e lá fomos nós rio Parnaíba abaixo. Passamos pelas terríveis cachoeiras, Molha-Fundo e Apertada-hora. Após um percurso de dez léguas, na barra do Riachão, deixei o doutor Iglésias estabelecendo o seu projeto agropecuária, que batizou de “Vila Eng.º. Dodt”, em homenagem ao grande explorador do rio Parnaíba e Gurupi.
A tarde descambava nos horizontes maranhense, e numa guinada brusca, voltei-me para o Piauí a toda brida, e saltei-me carregado de emoções, nos sertões bravios de “CURRAL DE SERRAS”, de Alvina Gameiro.
Sertão bruto, mas cheio de vida, em pleno esplendor selvagem. Cenário rico do agreste, que me levou a percorrer a imensidão dos Chapadões. A canícula tremia ao longe, na aba dos morros, e nestas horas procurei um capuão sombrio. E o estilo mágico desta Rachel de Queiroz do Piauí, foi levando-me pela verdejante pradaria, quando dei fé, eis-me às margens do rio Sapão, pedra de Amolar, as três águas divisoras dos Estados da Bahia, Maranhão e Tocantins. E lá naquele altiplano arrebatador despontava na linha do horizonte, a “SERRA DO JALAPÃO”, já no meu Estado.
Assim sendo, deliciei-me com o linguajar vigoroso do sertanejo, a estrutura frasal e, também, dialetal, de “CURRAL DE SERRAS”, que desperta de forma sutil, estudo acurado, no campo lingüístico - filológico - semântico. Obra prima da literatura piauiense, que pode ser colocada ao lado de “GRANDE SERTÃO: VEREDAS, de Guimarães Rosa, com elegância e garbo, sem medo de sombra. O próprio tempo se encarregará do reconhecimento desta grande obra literária. E neste dia, de verdadeira justiça, as elites culturais, os medalhões, se lamentarão, da omissão imperdoável. Que trouxe, afinal, Alvina Gameiro, essa dama conceituada da literatura do Piauí? Trouxe muito, encantou a todos com sua arte, inclusive, agora, nós tocantinenses, e deliberou o juízo crítico sobre a sua obra romanesca, bem estruturada e disciplinada. Mesmo somando a sua produção literária, que veio revelar o tamanho e a força da sua capacidade criadora. E “O VALE DAS AÇUCENAS”? “OS CONTOS DOS SERTÕES DO PIAUÍ”? E, a “VELA E O TEMPORAL”?, Aqui, sim. É um romance magnífico, que nos induz o amor à terra, ali, na fazenda Santa Quitéria, onde se ilumina no epicentro do enredo, a meiga e corajosa Rousária. E a lição do capurreiro Fulgêncio sobre a utilidade da folha de buriti? Cena bem arquitetada, que deslumbrou José Lins do Rêgo, digna de antologia, conforme recomendou o grande escritor regionalista.
Porém, neste ponto sou forçado a interromper os meus pensamentos, que fluíam como um riacho fogoso, ali, na Fazenda Santa Quitéria, pois uma voz telepática projetada de Caracol ferreteava-me à razão:
- Vamos adiante. Pra frente é que as bruacas batem!
Num átimo pulo da rede de tucum, monto no meu tordilho e ganho estrada, no rumo de Picos, ao lado do consagrado escritor regionalista, FONTES IBIAPINA, com sua cabeleira de espeta-caju, no dizer de Wall Ferraz, e fomos de rota batida pro “TOMBADOR”. Ave-Maria! Meu bom Jesus do Canindé! Quando percebo estou em plena era feudal e escravocrata. O manguá estala bonito o pai-nosso, no lombo da negrada. Tronco, vira-mundo, peias, bacalhau, umbigo-de-boi, e lá se vai os instrumentos de suplício da escravidão. Fontes Ibiapina viajou no tempo, como um arrojado sociólogo e historiador, que inspirou no fato histórico e o transportou para o campo ficcional, dando-lhe beleza e arte. Não fugiu a sua predestinação literária, pelo contrário, instrumentou-a com a carocha do linguajar regional. Levantou o conflito social das almas peregrinas. Mostrou a tragédia humana no seu quadro horripilante em pleno sertão bruto.
Fontes Ibiapina, com maestria trabalhou o espaço geográfico por onde andam os seus personagens, ou seja, o sertão bruto, os cafundões longínquos, os brocotós, os socobós, o oco do mundo, desasistidos, desamparados a que se entregam pelo flagelo as condições do meio, que passa a ser a tônica exasperante a criar-lhes, no âmago do ser, o sentido da injustiça social a que vivem relegados.
Em termos conteudísticos e de linguagem, IBIAPINA, na sua vasta obra, torno-a atraente, original, fiel ao meio, comunicativa, aliás, a aspiração de todos os escritores - do passado e do presente.
O linguajar regional não consta nos contos e romances como peça exótico. A oralidade, constante nos diálogos e, muitas vezes, na intuição do escritor-narrador, projeta e comunica com autoridade minúcias do traço psicológico do campônio, provocando meditações sobre as condicionantes históricas.
A temática, os enredos, as intrigas, o perfil psicológico, a estrutura, enfim, de sua obra literária, são tirados da dura realidade sociais, da angústia do homem desprotegido, dos gemidos das terras escarambadas, do rebentão, como em “VIDA GEMIDA EM SAMBAMBAIA”.
Surpreendentemente, fontes IBIAPINA, realizaram uma literatura regional, riquíssima ligada ao tempo e ao espaço geográfico pré-determinados, e, constituindo assim, uma bela literatura Universal, que arranca das almas suas emoções básicas.
O regionalismo, em fontes IBIAPINA encontrou terreno fértil, a fala, os costumes e a sabedoria do povo, com isto, podemos afirmar:
- O regionalismo é a maior escola literária do mundo, pois registra o falar bonito do Sertão, fixa os costumes, a fala e a sabedoria do povo, na memória do mato.
Os galos amiudavam, ali, em “Tombador”, a Mãe-da-lua, lá nos cafundós da mata, garganteava a toada triste e penosa. Da parede do açude velho vinham-me murmúrios de vozes apaixonadas, eram Bernardino e Justina, entrelaçados pelo destino que os uniam na Loucura.
Um caburé errante, num galho seco, chama-me a atenção, e lembro-me de William Palha Dias, e identifico a sua voz telepática projetada de Caracol:
- Vamos adiante. É pra frente que as bruacas batem!
Não perco tempo. Tomo rápido o meu café-de-isca, coloco no alforje o frito, e dou adeus a Fazenda “TOMBADOR”. E num piscar de olhos entro de peito estufado em “VILA DE JUREMA”. Do alto da sela do meu tordilho, fico espiando o mundão da jagunçada dos coronéis desalmados, e o repicar da papo-amarelo, de cano oitavado.
De credo na boca entre a espada e a água benta viro-me à direita e surge-me à imagem de João Situba Fazendo papel funambulesco de irmão-das-almas. A sua voz cavernosa reboa:
- Irmãos das almas penadas! Irmão das almas penadas, que vagueias pelas profundezas do abismo, deixa passar livremente as almas dos irmãos - Adriano e Mariana para que ambos subam felizes ao Reino da Glória, na paz do Senhor!
Ainda com a cara pra cima, que só jumento nas várzeas, viro-me à esquerda e deparo-me com a cablocada no barracão da chapada do Canastra, uns ao rés-do-chão, outros dependurados nas tipóias de caroá, ensebadas pelo uso contínuo. Ali era o local onde os maniçobeiros se empenhavam na colheita do leite amarelento que se transformaria em belas e elásticas lapas cor de ouro, que, também, provocaria o conflito social e o correr de sangue até às canelas.
A casaca-de-couro começava a mexer-se nos galhos das árvores robustas, piando renitente. A voz de William Palha Dias, cutucando-me os sentidos:
- Pra frente é que as bruacas batem!
E lépido entro no “ALCORÃO RUBRO”, e chafurdo-me em plena batalha do barulho de corrente. O rifle de cruzeta repica, sacolejando, num fumaceiro de pólvora. E num clarão de relâmpago brota-me a figura do Coronel José Honório Granja e seus cacundeiros. Abílio Wolney e o famigerado Aldo Borges passando pela luta, em fuga acelerada de Goiás. Abílio Bata, morrendo no punhal de Filipão, no sapé. E as manadas de gado, riscando o agreste, no rumo da Bahia. Eram as famosas sebaças, que tanto atormentaram o Piauí, e, também o Norte de Goiás, hoje Tocantins.
Do meu surrealismo psíquico, vejo a imagem do Dr. Joaquim Nogueira Paranaguá, alto, magro, tez branca, barba à nazareno, rosto de apóstolo, que transmitia bondade, não pode evitar à tremenda carnificina de Corrente. De um lado os Nogueiras Paranaguá, do outro os O’Donnell de Alencar. O Dr. Joaquim Nogueira Paranaguá, alma bondosa, estirpe superior, sonhador, progressista, não resistiu à terrível tragédia, que mutilou os seus sentimentos mais nobres, e sem esperança entregou a alma ao criador.
WILLIAM PALHA DIAS levanta outra vez o seu brado:
- Vamos adiante! Pra frente é que as bruacas batem!
Não me avexo, mas entro resoluto em “Os irmãos Quixaba”.
- Vixe, meu bom Jesus de Pirapora! A cuia de andarilho, só cai emborcada! Quando dou por mim, estou num plenário de um Tribunal do Júri. Lá na mesa, um Juiz carrancudo, parecendo que tinha comido tampa de alforje. Lia as peças dos autos. William Palha Dias, cordialmente, convida-me para tomar um café. E eu penso comigo:
- Bela saída estratégica! Que me faz lembrar do genial romancista, Morris West, autor de “Filha do Silêncio”. E numa chispa do tempo mostra-me os irmãos Quixaba, andando a marche-marche, à sorrelfa pela caatinga e chapadão, com uma criança nos braços. Prova do crime de incesto. Produto do amor proibido entre os dois irmãos. Rápido, ali, na chapada estrangulam a criança, e empurram-na para dentro de um buraco de cupinzeiro. Do meu lado, o mago da pena de ouro de Caracol, na sua alquimia profunda, conduz os personagens para a bigorna da criação literária, e os faz numa assunção psíquica contar toda a desgraça de suas vidas.
Retorno, outra vez ao Tribunal do Júri, e lá está na tribuna a defesa. O advogado deita suor pelos poros, como cavalo em corrida de boi barbatão. A saída foi refugiar na Bíblia, e num segundo sai com uma defesa brilhante:
- Senhores Jurados, falou o orador. – O mundo, este conjunto de princípios ou fenômenos, considerado como um todo, equilibra-se entre duas forças antagônicas: a Força do bem e do mal.
Neste exato momento, tão emocionante da defesa, sou obrigado a desviar a atenção, e ouço a voz do mago da pena de ouro de Caracol:
- Vamos adiante. Pra frente é que as bruacas batem!
Com este ultimato, azulei no mundo, e foi bater de sovela dentro do “Memorial de um Lutador Obstinado”, bem na Praça marechal Deodoro, em Teresina. Não perdi tempo, olho à direita, e vejo descendo as escadas do velho casarão onde funcionava o Tribunal de Justiça, o Juiz turuna, da Comarca de Regeneração, que cruzava com o Desembargador Paulo Freitas, que, displicentemente, talvez insuflado pelo Capiroto cutucou a onça com a vara curta:
- Companheiro, tome cuidado que vão terminar te capando! . . .
O magistrado estribado na sua conduta honrada, na comarca de Regeneração, nem pestanejou, e respondeu na bucha; à zangarilheira desceu o pau de jucá, de com força, que o desembargador nem ciscou:
- Desembargador, se tal desgraça vier a acontecer, perdôo os capadores, com uma condição: que eles mandem os ovos numa bandeja ao Tribunal de Justiça a fim de que, ali, seja preparada uma torta destinada aos demais desembargadores e que todos comendo tão nutriente, iguaria revistam-se de coragem para enfrentar situações como a que, no momento, estou enfrentando!
A voz inconfundível, outra vez:
- Vamos adiante. Pra frente é que as bruacas batem!
Monto no meu tordilho e trovejo nas abas do mundo, na direção de Oeiras. A canícula é tremenda, logo avisto um jatobá frondoso. E ali, sento-me naquela sombra hospitaleira, e tiro da patrona a mortalha. Vou picando o fumo. Pacientemente, enrolo o pau-ronca, risco o papa-fogo. Ato contínuo, puxo uma tragada, e solto a fumaça para espantar os bisôgos e muriçocas. Nisso se aproxima, saindo da boca da mata, um velho de barbas branca, vestido à bambalhona, fogoió, chapéu de couro, rosário de contas de mulungu no pescoço, laporte à mão direita, alpercata de rabicho nos pés, ao ombro um bisaco, contendo suas trapizongas. Vai dizendo, sem trelho nem trebelho, na sua maneira destabocada:
- Deus seja louvado! Não me leve a mal, seu deputado, me dê uma rodela de fumo, estou mais liso que bacia de alma.
Acho graça da esperteza do capurreiro, e respondo-lhe:
- Não sou deputado, pois político é como feijão n’água, só sobem os podres.
Com minha resposta, o velho se abre todo, numa gaitada de fole velho, e retruca:
- Mas seu doutor, político é como merda de gado, por cima seca e por baixo aquela porcaria.
Dou-lhe um pedaço de fumo, e, ele, em sinal de despedida, dá-me um fruto de araticum. E prossegue a marcha, digamos assim, à matroca, a trouxe-mouxe, rindo e falando ao vento:
- Político. . . só sobem os podres! E vendo-o sumir, na baixada, com o cacaio as costas, recordo dos excelentes contos regionais de Magalhães da Costa, especialmente daquele do velho do livro da capa preta – Lunário Perpétuo; e por sinal, esta raridade, juntamente, com o Chernoviz, Missão Abreviada, edição, 1874, usada nas prédicas de Antônio Conselheiro, em Canudos, estão na minha biblioteca, guardados a sete chaves.
O tempo começa a fechar, e quando vejo estou dentro de “Um Rio Subterrâneo”. Assusto-me, dando-me um sobrosso, pois sou regionalista e não clássico. Ouço a voz de um moribundo gemendo. Tempestade caindo. A solidão do mocho. Vozes nervosas. Ferrolho emperrado, correndo nas janelas. Tranca descendo. Almas sofrendo. Traições passionais. Conflitos humanos. Neurose. Loucura. É o pulsar ogerreguiano no campo realista, interligado no psicossocial. Tudo isso me leva aos mestres: Flaubert, machado de Assim, Graciliano, Rolland, Gui Maupassante e Dostoievski.
A voz embutida no tempo, acossa-me, peremptoriamente:
- É pra frente que as bruacas batem!
Não conto nada, não. O meu tordilho começa a passarinhar. Como sou neto, e bisneto de piauiense, criado com pirão escaldado num cozidão de bode, não penso duas vezes, chamo o bruto na manguara, corro-lhe no vazio e na tala do bucho as esporas, aí sai garboso pelo trilheiro. Mas o munganguento começa com treta, dou uma quebrada de freio, meto-lhe na fuça, o calabrote, e o bicho troveja nas asas do vento; e fomos bater na beira do Parnaíba, em Amarante. O céu fecha e a chuva cai copiosamente. Uma ambiência espiritual estabelece na margem do rio. O banzeiro eleva-se. Do meio do rio forma-se um nevoeiro diáfano e misterioso, da penumbra à roda à roda, surge uma canoa ao lume da água, vogando brandamente de bubuia. E no centro da tosca embarcação, resplandece a figura de um homem, envolto numa aura brilhante, que emana vibrações de estrelas superiores. A sua tez é morena, olhos tristes, magro e um pouco curvo. Assim, que a canoa se aproxima, beira-rio, do meu ângulo de visão, eu reconheço aquela figura luminosa e grave. Era o grande poeta Da Costa e Silva, que descia o velho monge recitando o imortal poema- “Saudades”. A sua voz melodiosa fazia estremecer às bordas do rio:

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio. . .
Saudade! Amor de minha terra . . . O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho. . . o caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando. . .
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A Saudade imortal de um Sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento,
As mortalhas de névoa sobre a Serra. . .

Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando. . . E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra. . .

A visão fantasmagórica, se desfaz e ouço aquela voz de comando:
- Vamos adiante. Pra frente é que as bruacas batem!
Salto no meu tordilho e abro o pala no mundo. Cruzo a chapada das mangabeiras, e quando vou descendo a Serra do Jalapão, vem-me à mente à obra de Elmar Carvalho “Rosa dos Ventos Gerais”. E do Leste os ventos gerais sopra para o Tocantins, no mês de junho, preparando a chegada do verão. Ao longe desenha o morro Mandacaru, já em território tocantinese. Pedra da Baliza, testemunha saecula saeculorun da passagem das boiadas, das tropas, no rumo da Bahia. Cenário agreste do meu romance – Serra dos Pilões – Jagunços e Tropeiros. O meu tordilho vai vencendo os estirões, na areia frouxa. Bandos de ema correm em ziguezague, balançando os gordos peitoris. Quando entro no Brejão de Areião, uma luz desce do céu em forma de cone e puxa-me aos rodopios para dentro do túnel.
Um leve tremor desperta-me, e voltando as minhas faculdades, vejo-me no meu escritório. Ao lado do computador está o dicionário: “Escritores Piauiense de Todos os Tempos”, de Adrião Neto. Compêndio monumental, repositório da memória literária do Piauí, que não pode faltar, na estante do escritor, do pesquisador, do estudante, enfim, do amante da literatura. Obra bastante popular nos meios acadêmicos do Tocantins, e responsável por esta viagem mágica ao mundo encantado da Literatura piauiense.
Levanto-me da cadeira, abro a janela, fito o céu de brigadeiro, e declaro a mim, em reflexão:
- A Literatura do Piauí existe e está a caminho do terceiro milênio!

(Publicado na Revista Caderno de Teresina –1997 -PI)





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