Quando fala-se de poesia da Segunda fase do modernismo, a figura icônica que obrigatoriamente nos vem a cabeça é, inegavelmente, Carlos Drummond de Andrade. Como nos diz Salvatore D`Onofrio: “O melhor exemplo da libertação formal nos é fornecido pela maior glória da lírica brasileira, (. . .) Carlos Drummond de Andrade” (p. 116).
Um dos traços marcantes da genialidade poética de Drummond, é a sua profunda sensibilidade expressa em seus questionamentos sobre a existência e a essência humana. Tal fato é uma constante em sua obra – o mundo e o ser entremeiam seus poemas numa harmonia lírica bem subjetiva. Vemos isso em seu poema antológico “Cidadezinha Qualquer”, onde a profundidade sensível contrasta com a simplicidade da apresentação do quadro cotidiano.
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OS SENTIDOS EXISTENCIALISTAS ESCONDIDOS NOS MEANDROS DE UMA CIDADEZINHA QUALQUER
Cidadezinha Qualquer
1 - Casas entre bananeiras
2 - mulheres entre laranjeiras
3 - pomar amor cantar
4 - Um homem vai devagar.
5 - Um cachorro vai devagar.
6 - Um burro vai devagar.
7 - Devagar . . . as janelas se olham.
8 - Eta vida besta, meu Deus.
( Carlos Drummond de Andrade)
O título – “Cidadezinha Qualquer” – traz consigo uma forma significativa bastante explícita, enquadra – se muito bem como título indicial, pois expressa, bem propriamente, o que tratará o poema numa primeira análise. O substantivo “Cidade” no grau diminutivo, expressa um local de povoamento pequeno, uma vilinha rural bem afastada da civilização e cultura dos grandes centros urbanos, isolada e desconhecida. Reafirmando essa idéia, é notório vermos a adjetivação por “Qualquer” ao referente “Cidadezinha” - “Cidadezinha Qualquer”. “Qualquer” corrobora o sentido de lugarzinho sem importância, esquecido e banal.
O poema mostra, em sua leitura, um certo movimento do observador/ narrador em relação à paisagem. Há uma espécie de inconstância panorâmica na observação do “eu-lírico”. É como se ele estivesse deslocando-se frente à cidadezinha interiorana. Na primeira estrofe, os substantivos no plural (1º e 2º versos), “casas/ bananeiras/ mulheres/ laranjeiras”, além de contarem um pouco do aspecto paisagístico do lugar (paisagem rural), mostram, na seqüência do v. 3 “pomar amor cantar” , uma perspectiva reflexiva do “eu-lírico” diante da realidade que presencia. Diria, mais claramente, que nesse terceiro verso, é revelada toda uma subjetividade bucólica do “eu-poético” : o sujeito abranda-se, sente-se bem, aguça toda a sua estesia; o sentido de amor e paz aflora na simplicidade e naturalidade da vida campestre, longe da artificialidade e desarmonia dos grandes conglomerados urbanos. Subjaz aí, analógicamente falando, uma referência ao pensar iluminista de Jean-Jacques Roussau, que exaltava a liberdade da vida selvagem e a pureza desse estado natural, contrapondo-o à falsidade e ao artificialismo do homem civilizado.
A segunda estrofe já mostra nitidamente a movimentação do narrador – a variação da perspectiva: uma outra parte da paisagem e um outro sentimento. Ocorre na seqüência de versos “4,5 e 6”, uma enumeração dos substantivos “um homem/ um cachorro/ um burro”, vê-se aí uma focalização dos objetos, ou seja, uma individualização dos objetos observados. O contexto “um homem/ um cachorro/ um burro vai devagar” sugere uma reflexão sobre tempo, ou melhor, sobre a “inexistência” de tempo naquele lugar, inexistência de tempo corrido, tempo limitado e tempo prisão. As repetições da estrutura sintática entre os versos da segunda estrofe (versos 4,5 e 6), com a variação apenas dos nomes (“homem/ cachorro/ burro”) , revela a visão aglutinadora do “eu-lírico” – as atitudes do ser humano (o homem) não se distingue das dos outros seres (um burro e um cachorro); todos “vão devagar”. Da mesma forma como não há noção de tempo para o “burro” e o “cachorro”, não há também para o “homem” daquele lugar. Todos seguem vagarosamente, despreocupados, inconscientes e unos – homem/ bicho, “homem do mato”.
Na terceira estrofe, o advérbio de modo (“Devagar” ) procedido por um sinal de reticências, denota uma interrupção no pensamento do narrador sobre “vagarosidade” de tempo e estaticidade de acontecimentos na “cidadezinha”. De repente a abstração do “eu” é interrompida e invadida “ . . .quando as janelas se olham “ v.7. O observador percebe que a observação é recíproca; ele observa mas também é observado pelos moradores daquele lugar.
Na quarta estrofe, definitivamente, o “eu” desfaz-se de toda a divagação - a paisagem foge, o narrador segue viagem. “Eta vida besta, meu Deus” : é como se o “eu-lírico” se despedisse daquele lugar ironizando alguma particularidade do “falar” local – o uso da expressão coloquial “Eta” referencia um traço lingüístico regional.
Ainda podemos entender esta última parte do poema – “Eta vida besta, meu Deus” – de uma outra forma : o narrador (onisciente) demonstra um despertar para a própria realidade, para o seu mundo diferente, diferente daquela vida – “vida besta”. O “eu” está só ou, pelo menos, não compartilha o seu sentir com ninguém material. Busca no final do poema um desabafo à “Deus” – seu único “ouvinte” naquele momento. O “Todo-poderoso” conhecedor das consciências é involuntariamente invocado, como se já estivesse, tacitamente, junto ao observador e, tal como este, também observava.
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“Cidadezinha Qualquer” ainda pode ser analisado dentro de uma abordagem filosófica: é uma busca ontológica, feita pelo “eu” – a busca da essência. Por assim dizer, percebe-se no poema uma cadência rítmica, provocada pela intenção do “eu” de se abstrair e buscar a essência daquela realidade visível. Isto fica claro, ao verificarmos a gradação decrescente que há no sentido 1ª estrofe 2ª estrofe. Na primeira estrofe, os substantivos se apresentam no plural (“casas/ bananeiras/ mulheres/ laranjeiras”), e isto demonstra uma percepção vaga, inconstante e distraída. A falta de pontuação deixa bem perceptível uma maior velocidade do ritmo e uma atenção superficilizada pelo narrador. Já na segunda estrofe, há uma singularização dos substantivos (“um homem/ um cachorro/ um burro”), constata-se aí, uma gradação decrescente em número. Os versos são finalizados por um ponto-final, e isso causa queda no ritmo em relação a primeira estrofe. Essas pausas, provocadas pela pontuação, e a aliteração da labiodental “V “na expressão “Vai deVagar” que se repete no decorrer dos versos 4/5/6 e apresentam uma sonoridade macia e branda, concorrem para uma sublimação abstracionista e uma sutileza transcendental. Há o deslocamento da observação da mera aparência para um arrazoamento do essencial – o caminho do epistemológico. Esse processo culmina na 3ª estrofe (7ª verso): a reticências pós colocada ao advérbio “devagar” demonstra e encerra toda a abstração do momento. Esse efeito do reticências é bem explicado por Mário Quintana, que diz:
“as reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho. . .”
As reticências notam claramente o momento em que o raciocínio se dissolve, ocasionando a cissura da realidade visível e a construção ontológica já findada pelo pensamento. Realidade e essência são colocadas em planos relativos - ambas se refletem e se espelham. Isto fica claro quando se diz: '. . .as janelas se olham'. Onde 'janelas' figura no contexto, a direção em que estão voltadas as formas da realidade e da essência. Visto que, literalmente falando, para que duas 'coisas', uma em cada janela, possam reciprocamente se observarem, estas devem se confrontar - uma janela frente à outra, e as coisa se vêem através daquelas (janelas). Isto significa uma visão similar de ambos os lados, visões espelhadas, imagens análogas portanto. Tudo isso, conota em reflexão (do 'eu): as comparações que relativizam o 'real' e o 'essencial', desfecham em uma conclusão: 'Eta vida besta, meu Deus' v.7
* RODRIGO NOGUEIRA DA SILVA - acadêmico do III Semestre de Letras pela UNEMAT Campus de Pontes e Lacerda-MT.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1992.
ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. 13.ed. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1979.
COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 9.ed. São Paulo: Ática, 1997.
D`ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 2. São Paulo: Ática, 1995.
FARACO, Carlos Emílio e MOURA, Francisco M. de Moura. Língua e literatura, vol. 3. 21.ed. São Paulo: Ática, 1993.