Muitas vezes as pessoas que nunca tiveram contato com RPG pedem aos mais experientes para “aprenderem” o jogo. Esse fato se dá porque existe uma confusão corrente entre o livro (no caso, o sistema de regras ou o ambiente) na qual o leigo deve ser “iniciado” e o próprio RPG. Ao nosso ver, não há necessidade para tal aprendizado, pois que realmente importa é uma disposição de interatividade.
O RPG, a nosso ver, é uma derivação tanto do teatro quanto da literatura (aqui com um sentido mais vasto possível, designando a arte humana de contar histórias). Deste, retirou a narrativa; daquele, a interpretação.
É claro que, no teatro, as técnicas de representação de papéis contam muito mais do que no RPG, mas isso se deve a uma diferença básica entre ambos: o público. Mesmo no teatro mais interativo existe uma separação entre ator e expectador. A finalidade do teatro é o público. No RPG, o público é parte da montagem da estória: são os próprios atores, e a eles se dirigem os “espetáculos”. Esse é o motivo de a interpretação no RPG ser mais livre, pois o fim da interpretação nesse caso é quem joga, o próprio ator.
No que toca aos laços com a literatura, o caráter narrativo do jogo é forte, mas se diferencia dela por ser essencialmente interativo. A separação não é mais entre ouvintes e narrador, nem entre escritor e leitor. Uma ou mais pessoas narram, uma ou mais pessoas interferem nessa estória, ambos dando os rumos de algo que tem um começo pré-definido e, em princípio, um final que seja um misto do esquema geral do narrador e das interferências dos seus interlocutores.
Entretanto, o que caracteriza o RPG não é ser o produto da narrativa, mas a interação existente nessa narrativa. Quando se está dentro de uma estória, o campo de possibilidades de ação é virtualmente infinito, pois seu limite está na imaginação de quem joga. A linearidade da estória vem com o término dela, com o sentido estabelecido pelos participantes. Walter Benjamin diz que o que caracteriza um jogo é a imitação. Nesse sentido, uma sessão de RPG é a imitação lúdica a vida, e o término dessa sessão é a imitação lúdica da História.
Por falar em História, é sabido que esta modalidade de jogo surgiu em meados dos anos de 1970 nos EUA, e ganhou muitos adeptos durante a década de 1990, principalmente com o surgimento de novos livros de regras e ambientes. Os livros de RPG são mais uma manifestação da indústria do entretenimento, e estão ligados aos outros setores dessa indústria. Não é difícil encontrarmos livros e/ou revistas de RPG com o ambiente do filme que está fazendo mais sucesso no cinema, e também filmes baseados em cenários famosos de RPG (como por exemplo, o desenho e o filme de Dungeons & Dragons).
Mas o RPG como tal, apesar das longínquas raízes na cultura oral – no contar histórias, é manifestação de um processo cultural que tende a reforçar o elemento de interatividade, oralidade e visualidade dos meios de comunicação. No século XX houve um avanço na tecnologia de difusão de mídias baseadas na imagem e no som (como o cinema e a televisão), que foram acentuados pela revolução da eletrônica e da informática nos anos de 1970. Nessas mídias, o elemento de oralidade é mais importante do que o escrito, apesar daqueles estarem baseados nestes - roteiros de filmes e telejornais, por exemplo -, sendo por isso chamados de “segunda oralidade” (em contraposição com a oralidade de sociedades sem escrita). É visível a forma como o RPG se insere nesse processo, pois, apesar de estar baseado na escrita, tanto sob a influência de livros de regras e de ambientes quanto da literatura em geral (e também em filmes, CDs etc.), o elemento de oralidade e interatividade durante a sessão de jogo é o mais importante. Uma História do RPG deve ser vista levando esses aspectos em consideração, e ainda está por ser feita.
O RPG, tendo tudo isso em vista, se assemelha bastante a uma aula nos moldes construtivistas: o narrador, assim como o professor, é o mediador entre os seus expectadores e aquilo que ele deseja passar (e que os interlocutores esperam). No primeiro caso, o objetivo é em ter uma sensação de outra vivência imaginada. No segundo, construir um conhecimento sobre determinado aspecto da realidade. Ambas as práticas são, por serem conduzidas por estes agentes (professor / narrador), mediadas pelos seus valores e visões de mundo. O RPG e a aula, nesse sentido, podem ser usados tanto para compartilhar experiências, levando todos a refletir suas vidas à luz do que foi adquirido e vivido, enriquecendo assim a todos, quanto para transmitir subliminarmente valores para o grupo. Nesse ponto, ambos não se diferenciam de um livro, peça ou filme. A diferença crucial repousa no fato de estarem restritos a grupos pequenos e, por isso, fora dos circuitos de difusão de massa, apesar do estreito contato com eles. A mediação, tanto do narrador de RPG quanto do professor, se acompanhada de uma postura crítica, tem um potencial contestatório e libertário muito grande, exatamente por desenvolver esse senso crítico em seus interlocutores.
É por isso que o RPG, ao contrário do que se pensa muito hoje, não pode ser visto apenas como um jogo, tal como baralho, dominó ou xadrez, pois a forma narrativa é aberta, podendo ser preenchida por diversos conteúdos, na medida que o RPG é fundamentado na palavra e trabalha com a imaginação humana. O aspecto lúdico está presente no RPG, sendo este aspecto o motivo primeiro de sua criação. O que procuramos ressaltar aqui é seu aspecto ideológico, pois nele podem transparecer e dialogar visões de mundo distintas, como também pode imperar uma única visão de mundo. É por isso que ele deve ser levado a sério.