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Ensaios-->Poesia Confissão de Manuel Bandeira -- 19/01/2003 - 15:16 (Fatima Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
INTRODUÇÃO



Epígrafe

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! – meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria...

1917


Este poema se encontra no livro Cinza das horas, o primeiro publicado por Manuel Bandeira no ano de 1924. O livro possui influências do simbolismo, além de ligações penumbristas e crepusculares.
O poema Epígrafe é uma espécie de confissão poética, onde o poeta apresenta a essência do que vai falar nos versos que se seguirão, um falar de uma certa dor trazida por um destino não esperado:

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Este mau destino que o poeta expressa tão claramente pode estar relacionado com a enfermidade que Manuel Bandeira adquiriu ainda jovem: a tuberculose, que ao contrário do que o poeta pensava não tirou-lhe a oportunidade de viver até sua velhice.
Apesar das influências clássicas ainda presentes no primeiro livro, podemos entrar em contato com o mundo psicopoético de Manuel Bandeira, um mundo que a cada poema é apresentado aos leitores, através de palavras melancólicas, ingênuas, insinuantes e até mesmo cômicas.
Por que Manuel Bandeira consegue se infiltrar tanto na mente de seus leitores através de suas poesias? Ele consegue porque é seguro no que faz, é o que ele mesmo afirmou no Itinerário de Pasárgada: “Só no chão da poesia piso com alguma segurança”(p.346). É essa segurança que vai permitir que autor expresse seus sentimentos, através de uma evocação lírica, que parece ser única de seu intelecto, que nos contagia com palavras aparentemente simples e ao mesmo tempo profundas. Com todo esse jogo positivo, o poeta comprova o que Horácio um dia escreveu: “A poesia é doce e útil”.
O cada leitura que fazemos de Manuel Bandeira, nos sentimos acompanhados por uma voz lírica, “A nossa atenção é despertada inicialmente pela voz lírica deste Eu, que ao construir os poemas, nos acompanha a cada passo, dando a cada verso o seu timbre e a sua vida” (Gilda e Antônio Cândido), e é através desse acompanhamento poético que nos sentimos dentro da esfera poética do autor. “Poucos poetas terão sabido, como ele, aproximar-se do leitor, fornecendo-lhe um acervo tão amplo de informes pessoais desativados, que entretanto não parecem bisbilhotice, mas fatos poeticamente expressivos” (Gilda e Antônio Cândido), eis aqui o ponto forte de Manuel Bandeira, ele conhece uma maneira essencial de nos “tocar”, a expressão de seus sentimentos e pensamentos se dá através do essencial. É esse lirismo que torna sua poesia tão abrangente, um lirismo que ele próprio afirmou no Itinerário de Pasárgada: “Sim, sou sofrivelmente um poeta lírico: porque não pude ser outra coisa, perdoai...” (p.346).
Movido por uma sensibilidade incrível, além de uma humildade e modéstia invejadas, Manuel Bandeira proporciona ao seu leitor o contato direto com o seu mundo psicopoético, e aquele que já entrou nessa percepção literária bandeiriana tem o direito de descordar por um instante com o autor, quando este afirma ser um “poeta menor”.


13 de outubro, morte de Manuel Bandeira
Epitáfio

Poeta menormenormenormenormenor
Menormenormenormenormenorenorme

José Paulo Paes
Não devemos porém atribuir à obra de Bandeira apenas a individualidade poética, pois se assim agirmos estaremos interpretando a obra de uma forma superficial e descordando com o que Renê Wellek e Austin Warren escreveram no livro Teoria da Literatura: “Acentuar a <>, e até a <> de toda e qualquer obra de arte, embora represente uma atitude saudável como reacção às generalizações fáceis, é esquecer que nenhuma obra de arte pode ser inteiramente <<única>>, porque então seria completamente incompreensível” (p. 21-22).
É correto afirmar que há um enorme traço subjetivo na poesia de Bandeira, mas devemos perceber que isso é fundamental para conhecermos a essência, o por quê das palavras e das colocações ; esta oportunidade é ainda mais ampla quando o poeta abre para nós uma das mais interessantes portas do seu mundo: a das suas reminiscências.
“...a verdadeira compreensão de uma obra muitas vezes depende do conhecimento de quem a escreveu.”(Kayser, Análise e interpretação da obra literária, p.42).



II




Esse estudo foi iniciado com o poema Epígrafe que é uma confissão poética dos ideais da poesia de Manuel Bandeira, agora vamos entrar na análise de uma outra confissão, que não abrange todas as poesias como o primeiro, mas que não deixa de ser uma parte desta.
O poema Confissão encontra-se no primeiro livro escrito por Manuel Bandeira Cinza das horas e por isso ainda possui características simbolistas, sobre essa influência o poeta escreveu no Itinerário de Pasárgada:
“A Cinza das horas não continha tudo o que eu havia escrito até 1917, data da publicação. Fizera eu uma escolha, preferindo os poemas que me pareciam ligados pela mesma tonalidade de sentimento, pelas mesmas intenções de fatura. O sentimento ia resumido, programado por assim dizer, nos versos, já transcritos, de Maeterlinck. A fatura já não era de modelo parnasiano e sim simbolista, mas de um simbolismo não muito afastado do velho lirismo português. Os sonetos a Camões e a Antônio Nobre são claros indícios disto. Nada tenho para dizer desses versos, senão que ainda me parecem hoje, como me pareciam então, não transcender a minha experiência pessoal, como se fossem simples queixumes de um doente desenganado, coisa que pode ser comovente no plano humano, mas não no plano artístico. No entanto, publiquei o livro, ainda que sem intenção de começar carreira literária: desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso”. (p.317-318).
Foi querendo libertar-se do ocioso que o poeta nos proporcionou uma das grandes raridades poéticas, o poema Confissão:


CONFISSÃO


Se não a vejo e o espírito a afigura,
Cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.


Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
Agora embravecida e mansa agora...



E é num arroubo em que a alma desfalece
De sonhá-la prendada e casta e clara,
Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...


Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.



Um dos primeiros passos a ser dado para análise, é entender o que ocorre no poema, o que cada palavra no seu conjunto tenta expressar, é a busca da imagem poética.
Tudo parece ser fruto de uma visão epifânica, algo que apareceu de uma maneira tão inesperada, e mesmo que não esteja presente de uma forma física, o espírito do eu lírico fica a afigurar: “Se não a vejo e o espírito a afigura,” . É uma confissão que parece não estar acontecendo concretamente, parece ocorrer na mente do poeta, talvez o eu lírico esteja querendo desabafar para si mesmo o que na verdade seria correto comunicar ao seu objeto almejado. “Não ver o corpo, não tocá-lo, não estar com ele, faz da poesia um recurso vital para reconquistar o objeto, ainda que imaginariamente”(Manuel Bandeira: uma poesia da ausência- Yudith Rosenbaum, p.151).
Há no poema a elaboração de um caráter ideal feminino, junto com uma impossibilidade de aproximação, pois o ser almejado parece estar muito acima do eu lírico:


Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.

No momento que ela aparece o autor parece estar diante de uma visão epifânica, algo aparentemente divino. Yudith Rosenbaum diz o seguinte sobre a palavra epifania: “Etimologicamente, “epifania” vem de epiphaino, ou seja, fazer aparecer, mostrar, fazer conhecer. No texto “Uma Noção Joyceana”, Umberto Eco rastreia as relações entre a epifania em Joyce e a tradição decadentista, estabelecendo paralelos entre o escritor irlandês (e seu herói Stephen Hero) e a obra Il Fuoco, de Gabriele D’Annunzio. Eco mostra a epifania como “o momento de uma aparição [grifo seu] (quando a realidade aparece, se revela, prestes a ser traduzida em imagem poética, ou melhor, quando ela já aparece como uma imagem poética)”p.152 . Essa aparição divina não permite que o eu lírico tenha coragem de se confessar, por isso que ele confessa a falta de coragem: “Que hesito, balbucio e me acobardo”.
O eu lírico parece ter um mal guardado dentro de seu ser, o mal seria essa confissão que ainda está internalizada, um mal que parece só poder ser sanado, curado se houver coragem para a confissão:
Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
Agora embravecida e mansa agora...

Há um momento no qual o eu lírico parece confessar que esse objeto é um sonho, talvez algo apenas fruto de sua imaginação, seria uma composição imaginária:

E é num arroubo em que a alma desfalece
De sonhá-la prendada e casta e clara,
Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Essa foi uma análise do que o conjunto de palavras do poema pode expressar, agora será dada uma continuação ao estudo, analisando algumas partes estilísticas da elaboração, pois “uma obra de arte não é um simples objeto, mas antes uma organização altamente complexa, de caráter estratificado, com múltiplos significados e relacionações” (Wellek e Warren em Teoria da Literatura, p. 34).


III


O poema Confissão trata-se de um soneto, instrumento expressivo italiano, um poema de forma fixa que apresenta dois quartetos (estrofe de quatro versos) e dois tercetos (estrofe de três versos). O poema obedece ao modelo clássico, é um decassílabo, que Antônio Cândido comenta muito bem no livro O estudo analítico do poema quando escreve: “o decassílabo é de invenção italiana, embora exista com outros ritmos na poesia de outras línguas. Verso capaz de conter uma emissão sonora prolongada, e bastante variado para se ajustar ao conteúdo”. Como já foi colocado nesse estudo, o próprio poeta afirmou que esse esquema não coloca em evidência um traço parnasiano, mas sim a evidência de uma ligação com o lirismo português de Camões e Antônio Nobre:

Escansão dos dois primeiros versos do poema:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Se / não a/ ve/ jo / e o es/ pí/ ri/ to a a/ fi/ gu
Cres/ce es/ te / meu/ de / se/ jo / de ho /ra em/ ho


Fica demonstrada uma preocupação do autor com a colocação das sílabas poéticas, mas isso não quer dizer que o autor não utilizou a inspiração. A inspiração foi utilizada através do seguimento de um modelo clássico : os versos decassílabos.
Um outro aspecto clássico é a preocupação com as rimas, Manuel Bandeira obedece o seguinte esquema de rimas: ABAB, ABAB,CDE,CDE, os dois quartetos apresentam o esquema de rimas alternadas e nos tercetos Manuel Bandeira faz um esquema de rimas entre eles. Segundo o autor a rima “é a igualdade ou semelhança de sons na terminação das palavras”(A versificação em língua portuguesa, p.323), o uso delas contribui de uma certa forma para que haja a musicalidade no poema, marca uma certa seqüência na leitura do poema:


Se não a vejo e o espírito a afigura
Cresce este meu desejo de hora em hora
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.


Percebe-se que o autor tanto explora as rimas no final (essas exploradas na página anterior), como também as rimas internas nos versos. Um bom exemplo se encontra no primeiro terceto no segundo verso:

De sonhá-la prendada e casta e clara

Fora as rimas internas, pode-se antecipar um pouco a análise e perceber o uso da assonância, devido a repetição da vogal a. Pode-se relacionar essa repetição tanto gráfica quanto sonora à uma exatidão argumental que o eu lírico quer expressar, o seu sentimento parece seguir uma seqüência, clara e objetiva:

__ ____á-_a _____a_a _ _a__a _ __a_a

Há também a ocorrência de aliteração, repetição de sons consonantais idênticos ou aproximados, como ocorre no seguinte verso:

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a culpa...

“Toda obra de arte literária é, antes de mais nada, uma série de sons, de que emerge o significado” (Wellek e Warren em Teoria da Literatura, p.195).
A nossa atenção deve-se voltar também para o fenômeno lingüístico geral que é o ritmo. “O ritmo está intimamente associado à <>, linha de entoação determinada pela seqüência de tons; e o termo <> é freqüentemente usado numa acepção suficientemente ampla para abranger tanto o ritmo propriamente dito como a melodia” (Wellek e Warren).
O ritmo se dá pela alternância de sílabas acentuadas e não acentuadas, ou seja, sílabas que apresentam maior ou menor intensidade em sua enunciação. O estudo do ritmo já começou aqui a partir do momento que foram analisadas as rimas e a métrica. O conceito poético de sílaba acentuada nem sempre coincide com o conceito gramatical de sílaba tônica. A acentuação de uma sílaba é determinada pela seqüência melódica a que ela pertence, vamos destacar as sílabas acentuadas em um dos tercetos:



Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.

A percepção de toda essa acentuação, facilita uma leitura melódica do poema, se dermos atenção à todo esse traço, estaremos seguindo a verdadeira composição poética. “...o poema é, pois idêntico ao estado ou processo mental que experimentamos ao lê-lo ou ao ouvi-lo” (Wellek e Warren, p. 181).
Observando toda essa preocupação com o ritmo, que representa uma preocupação com a melodia, ficam evidentes os traços simbolistas. Há a presença de uma linguagem a qual era defendida pelos simbolistas, uma linguagem capaz de sugerir a realidade, e não retratá-la objetivamente, como queriam os realistas. Esse retrato se encontra presente no poema, quando o autor utiliza recursos sonoros, tudo com uma finalidade de exprimir o mundo interior, intuitivo, anti-lógico e anti-racional, através da musicalidade existente no poema, simbolismo: a linguagem da música, eis aqui a forte ligação.
Usando um parênteses na análise, pode-se sugerir que toda essa confissão esteja ocorrendo não só mentalmente, mas também através de suspiros, falas baixas e muitas vezes omitidas; por isso a grande presença de reticências no poema e há a possibilidade de que no lugar dessas reticências haja um complemento, que devido à falta de coragem do eu lírico não é nem confessado mentalmente.
O eu lírico parece estar certo do que sente, só que ao mesmo tempo mostra-se um pouco contrário à maneira que está sentindo, parece haver uma certa confusão de graus sentimentais dentro do seu ser. Isso se comprova quando nos deparamos com um oxímoro (onde os termos de significados contrários são agrupados simultaneamente numa mesma unidade de sentido), talvez é a demonstração de uma mistura de tudo que ele tem sentido e guardado, que poderia ser separado se houvesse a Confissão:

...Mostra-lhe o fundo intacto da ternura,
Agora embravecida e mansa agora ...

Percebe-se a oposição entre as duas características que o eu lírico dá à ternura, e por usar o termo “agora”, ele quer demonstrar que são simultâneas; a ternura que ele guarda é ao mesmo tempo mansa e embravecida.
Parece que quanto mais ele guarda esse sentimento, mais lhe são acrescentados elementos. Este argumento é comprovado quando se nota a presença da gradação ( a seqüência de palavras que intensifica uma idéia):

O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Para clarear o conceito de gradação presente nesse verso, pode-se fazer uma seqüência de ações:




Implorado



Chamado



Pedido



Exaltado


Um ser divino é:


O eu lírico parece estar fora de um mundo real, a visão desse ser almejado é tão forte que até o tira de uma esfera real, a fuga dessa realidade é comprovada quando se nota a presença da prosopopéia :

Abrir-lhe o incerto coração que chora

A prosopopéia (ou personificação) ocorre a partir do momento que o eu lírico atribui ações não reais a certos elementos, no caso do verso citado, ele atribui ao coração o ato de chorar. É um certa frustração interna que o conduz a atribuir ações não tão reais e inconscientes.
Essa Confissão também encontra-se espalhada em outros poemas, pouco a pouco, sempre por meio de alguma imagem epifânica. Esse estudo de uma particular confissão do poeta deu início ao conhecimento da Eterna Confissão presente na poesia de Manuel Bandeira.


BIBLIOGRAFIA


Bandeira, Manuel Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1993 20.ed

Bandeira, Manuel Itinerário de Pasárgada in Seleta de Prosa – Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1997.

Candido, A. e Mello e Souza, G. “Introdução” a Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Oympio, 1974, 5a ed.

Candido, A. Na sala de aula. São Paulo, Ática, 1985.

Candido, A. O estudo analítico do poema São Paulo, FFLCH-USP, s/d

Kayser, W. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra, Arménio Amado Editor, 1976.

Rosenbaum, Yudith. Manuel Bandeira: uma poesia da ausência – São Paulo , Editora da Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro – Imago, 1993.

Wellek, R. e Warren. A Teoria da Literatura. Lisboa, Publicações Europa – América, 1962.

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