A importância da obra de Yukio Mishima (1925-1970) pode agora ser reavaliada com a publicação de “Cores Proibidas” (Companhia das Letras, 574 páginas, R$ 45). O livro narra a relação entre um escritor que está no fim da vida e espera a publicação de suas Obras Completas, e um jovem e misógino estudante que a família gostaria de ver casado com uma moça de boa estirpe, mas que confessa seu homossexualismo ao velho escritor. Da relação entre os dois, surge o que seria o pérfido e derradeiro ato do veterano autor: fazendo-se mentor do rapaz, que é dono de uma beleza rara, resolve vingar-se da própria feiúra e da série de fracassos amorosos que marcou sua vida. O leitor está diante, portanto, de uma cruel visão do eterno conflito entre a arte e a vida. Poético e irônico, desafiando seus leitores a desvendar a verdadeira face dos personagens, “Cores Proibidas” foi publicado originalmente em capítulos em um jornal japonês, entre 1951 e 1953, e sugere uma forte coloração biográfica, pois Mishima inspirou-se, para a figura do velho escritor, em Yasunari Kawabata (1899-1972), o lúdico autor de “O País das Neves” (Yukiguni, 1947). Ele era fascinado, entre outros detalhes, pelo interesse de Kawabata aos desvarios sexuais, detalhe notório já no título do livro (em japonês, a palavra 'cores' também significa 'amores').
A revista Life nomeou Mishima “o Hemingway japonês”; Christopher Isherwood comparou-o a Gide; e Angus Wilson, disse tratar-se de um “escritor de dimensão balzaquiana e verdade flauberiana”. Pseudônimo de Hiraoka Kimitake, Mishima projeta-se na literatura recorrendo a temas como a morte, o erotismo, a esterilidade da vida moderna e o culto a beleza. Publica em 1944 o seu primeiro livro, um volume de contos, “O Bosque em Flor / Hanazakari no Mori”, chamando a atenção dos leitores cinco anos após com “Confissões de uma Máscara / Kamen no Kokuhaku” (1949), romance autobiográfico tratado com total franqueza e centrado no despertar da sexualidade homoerotica, lembrando o romance “O Coração” (1914), de Soseki Natsume. Como se vê, o homossexualismo teve papel decisivo em sua vida e obra, mesmo casado com a filha de um famoso pintor e pai de dois filhos. Dono de personalidade complexa, escreve novelas, peças de teatro, poesias, ensaios e contos, tendo como ponto mais alto a tetralogia “O Mar da Fertilidade” (1965-70). Este livro mostra o Japão do século 20 retratado simbolicamente a partir de 1912. O personagem central é Honda, cuja amizade ambígua com Kiyoaki, tema do primeiro romance, se prolonga em três supostas reencarnações. Ele termina percebendo que as suas experiências mais intensas e decisivas, como tudo na vida, são esquecidas e nada significam. Nessa sua obra-prima, paixão e poder, morte e reencarnação conduzem o leitor a uma bela e apaixonante criação, rica em imagens e personagens densas.
De uma geração que viveu o delirante triunfo imperial, a humilhação da época da guerra e a assombrosa recuperação do Japão pós-guerra, Mishima educa-se na tradição que preserva os milenares costumes japoneses, mas desde jovem recebe uma forte influência das técnicas narrativas ocidentais, especialmente de André Gide, Thomas Mann e Oscar Wilde. Ele procura ser tradicional e vanguarda, incluindo um narcisismo com rasgos de masoquismo, evidente em fotografias famosas, como as que encarna São Sebastião atravessado por flechas. Viajando, fazendo cinema (trabalha como ator e dirige o curta de 30 minutos, “Patriotismo/ Yukoku”, de 1966), exercícios físicos e marketing pessoal, banca o intelectual moderno, mas não é de todo bem sucedido.
Estudante de direito na Universidade de Tóquio, por sua fragilidade física não consegue combater na Segunda Guerra Mundial. Fascinado pelo sangue, a morte e os rituais antigos, narra em uma das suas obras a primeira ejaculação, ao contemplar uma reprodução barroca do martírio de São Sebastião, de Guido Reni, em um dos numerosos livros da biblioteca paterna. Na época, não tem no Japão o reconhecimento que necessita para o seu enorme ego, precisamente pelo exibicionismo que fere a sensibilidade oriental fincada na sobriedade. Fora deste país, torna-se um escritor para escritores, apreciado entre os especialistas literários, culminando com a pequena e delicada biografia de Marguerite Yourcenar, “Mishima ou a Visão do Vazio / Mishima on la notion du Vide” (1980). Dentre seus principais livros está “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar / Gogo no Eiko” (1963), editado no Brasil pela Rocco, na década de 80 e agora fora de catálogo. Marcante pelo seu estilo cruel e perverso, fala de um típico triângulo amoroso mãe-filho-padrasto que vai sendo contado liricamente num clima de sinistra conspiração.
A sua fascinação pela cultura francesa, dos surrealistas aos existencialistas, gera obras teatrais como “Madame de Sade / Sado Kôshaku Fujin” (1965), que analisa o Marquês de Sade do ponto de vista feminino, e “Meu Amigo Hitler / Waga Tomo Hittora“ (1969); já o apego à tradição japonesa aparece em textos como “O Templo do Pavilhão Dourado / Kinkakuyi” (1956), em que um monge incendeia o precioso templo dos jardins de Kyoto, episódio este transformado em imagens no admirável filme de Paul Schrader, “Mishima – Uma Vida em Quatro Tempos / Mishima” (1984). Poeta delicado e escritor refinado, angustiado, pessimista, sarcástico e excêntrico, Mishima procura driblar os limites de sua rígida educação, caminhando sempre em cima do muro, numa difícil contradição. Várias vezes indicado para o prêmio Nobel, perde-o em 1968 para Yasunari Kawabata, que em uma ocasião disse: ”Não compreendo como deram-me o Nobel existindo Mishima. A humanidade só produz um gênio literário como ele a cada dois ou três séculos”.
Nos últimos anos de vida, funda o exército particular Tate No Kai (Sociedade dos Escudos), formado por 100 homens que divulgam a cultura física e as artes marciais, e se dedica a vôos em supersônicos, apaixonado pelos kamikazes suicidas, tal como descreve em “Sol e Aço” (1968), um ensaio sobre a realidade e a linguagem, traduzido para o português por Paulo Leminski. No fundo, Mishima deseja resgatar o Bushido, um antigo código de honra dos samurais. Em 25 de novembro de 1970, acompanhado por seu amante Morita e três jovens, o escritor chega ao Ministério da Defesa, em Tóquio, toma o general Mashita como refém, e pede que se reúnam os oitocentos soldados do quartel embaixo da sacada da sala do general, pronunciando um discurso de protesto pela desaparição das tradições japonesas e pela situação de impotência em que se encontra o exército imperial desde a derrota na Segunda Guerra. A ideologia arcaica de espírito “haga kure” (O caminho do samurai) das suas palavras, num nacionalismo austero e heróico, provoca risadas. Ao terminar, indignado, Yukio Mishima pratica o seppuku ou harakiri, abrindo o ventre até o coração com um sabre e, à maneira samurai, seu discípulo favorito decapita-o em seguida.
A notícia dá a volta ao mundo, mas seu suicídio termina por ser considerado uma excentricidade a mais do escritor, não tendo o êxito planejado, porque ele e seus seguidores estavam de um lado e o resto do Japão, do outro. O provável é que foi uma vítima do desejo de beleza, unido a uma educação tradicional que não conseguiu abandonar. Essa dualidade foi dramática para uma alma sensível, caprichosa e narcisística, mas também o ponto-chave de sua arte literária e que lhe deu uma posterior projeção internacional. Mishima foi um samurai do século XX.