Camus esclarece, logo na introdução, que a obra O Mito de Sísifo é apenas um ensaio e que este contém apenas descrição em estado puro de um mal de espírito. Ressalta, também, que nenhuma crença, nenhuma metafísica, estão mescladas ao conteúdo da obra. Camus considerava que avaliar se a vida merece ou não ser vivida é responder à questão central da filosofia. O restante, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, isto tudo vem depois. São apenas jogos. Camus cita Galileu , que possuía uma verdade científica importante, mas dela abjurou com muita facilidade, logo que tal verdade pôs sua vida em perigo. Para Camus, Galileu fez bem. Afinal, a verdade não valia a fogueira, pois se a Terra gira em torno do Sol ou vice versa, isto é um assunto fútil.
É importante dizer que no ensaio de Camus o suicídio não é enfocado enquanto fenômeno social; a abordagem é individual e filosófica: “Matar-se é confessar. É confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos. O suicídio é uma confissão de que a existência não vale a pena. Assim, morrer voluntariamente implica em reconhecermos, mesmo que instintivamente, a ausência de qualquer razão profunda de viver e a inutilidade do sofrimento.” [1]
O Mito de Sísifo
Os deuses condenaram Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tal castigo baseia-se na suposição de que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
Homero relata que Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais; há controvérsias, pois, outros autores relatam que Sisifo cultivava certa leviandade, tida por censurável, em seu tratamento com os deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espetáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou os deuses da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor.
Diz-se, ainda, que estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu-se inebriado pela água, pelo sol, as pedras quentes e o mar, recusando-se à voltar para o sombrio inferno. De nada adiantaram as ameaças, as invocações e a ira de Plutão; ele ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Até que Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, arrancando-o ao prazer da vida, conduziu-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.
Sísifo é o herói absurdo. Absurdo, tanto por suas paixões como por seu desespero. O seu desprezo pelos deuses, a sua não-aceitação da morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, observamos o descomunal esforço de um corpo tenso, que se empenha por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; quase podemos ver a face contraída, colada à pedra; o único suporte ao alcance é o próprio ombro que recebe o choque da rocha, os pés escorando o peso insuportável, os braços empurrando.
E, ao final desse incomensurável esforço, quando parece que o objetivo foi atingido, Sísifo vê, então, a pedra resvalar em poucos instantes para o mundo inferior, tornando-se imprescindível alçá-la novamente ao cimo. Segundo Camus, Sisifo o interessa, fascina-o mesmo, nesse breve intervalo de tempo, nesses microssegundos antes que a pedra resvale, e também no percurso de volta para a planície, onde tudo recomeça. A certeza do (im) possível? No momento exato em que empreende a descida dos cimos é que Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.
É possível a compreensão de que este mito é tão trágico quanto é presente a consciência dessa tragédia? Quanto mais sei, mais triste sou. De fato, a tortura seria entendida como tal, se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? A tragédia cotidiana relacionada à suposta inutilidade do viver e do sobreviver, do sem-sentido do destino, só é verdadeiramente assimilada nos raros momentos em que nos tornamos conscientes dela. Sísifo reconhece a extensão de seu tormento, da miserabilidade de sua condição: é nisso que pensa enquanto desce a montanha.
E, nesse momento, o rochedo triunfa. O infortúnio é pesado demais para ser carregado. Ergue-se um rochedo no interior do homem. A noção da tragédia dá a medida de sua extensão. Mas, há um outro lado: de qualquer forma, ele vai recomeçar. Essa é uma verdade irrefutável. Essa é a fórmula de sua vitória absurda. É nesse ponto que o mito e a sabedoria milenar nele embutida, identifica-se com o heroísmo moderno.
Eis a descoberta do absurdo em Camus; o sentido do absurdo permeia toda a sua obra. “O absurdo é o contrário da esperança. O homem absurdo reconhece a luta, não despreza a razão e admite o irracional, assim, sabe nesta consciência atenta, que já não há lugar para a esperança.Não existindo assim aqui nada mais profundo do que afirmar que o absurdo não é um fato, mas sim um estado. Viver no estado do absurdo é procurar o que é verdadeiro e não o que é desejável, deste modo o mundo imobiliza-se, mas ilumina-se!” [2]
A privação da esperança, a certeza de que não há amanhã, aumenta a disponibilidade do homem para o AGORA, essa é a iluminação! Para Camus, o que importa não é viver melhor e, sim, viver mais intensamente.
É absurda a descoberta de que o destino é assunto dos homens? Devendo, necessariamente, ser tratado pelos homens? Eis aqui o resgate da alegria de Sísifo: o seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua vida. Dessa mesma forma, contemplando o nosso tormento, nós, os homens absurdos, fazemos calar todas as demais vozes; apenas a voz da vida prevalece em seu chamamento secreto, em seu eterno convite – “vida a que me convidas?” [3].
Os homens absurdos aceitam esse convite, dizem sim e os seu esforços nunca mais cessarão. “Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte.”[4]
Observemos a rocha resvalar. Encontremo-nos com Sísifo ao pé da montanha. A fé na vida é que levanta os rochedos. A luta mesma, para alcançar mais uma vez o cume da montanha, basta para dar sentido à existência, para preencher o coração do homem.
Como desejava Camus, “é preciso imaginar Sísifo feliz.” [5]
NOTAS DE REFERÊNCIA
1- O Mito de Sisifo – comentários de Ana C. Legey
2- Régis Bonvicino – Poemas Reunidos
3- Albert Camus – O Mito de Sísifo
4- Op. cit.
5- Op. cit. pg 151-152