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Ensaios-->Doutrina Rumsfeld -- 02/07/2003 - 10:19 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
'A Doutrina Rumsfeld: Novo paradigma da guerra moderna?

Por João Fábio Bertonha (*)

No seu brilhante livro “A History of Warfare” (London, Hutchinson, 1993), o historiador britânico John Keegan demonstra como a guerra, apesar de presente na sociedade humana desde sempre, não é nem de longe uma atividade imutável ou única. No decorrer dos séculos, as várias culturas humanas viram o combate de forma diferente e, nos momentos em que maneiras diferentes de pensar a guerra foram postas em choque, normalmente uma se revelou superior e derrotou a outra. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando os gregos derrotaram os persas ou os espanhóis os astecas.

A guerra, com as suas funções, limites e rituais, tem sido pensada, portanto, de forma diferente no decorrer da História e as implicações disto no relacionamento entre as sociedades parece claro. Além disso, essas “filosofias de guerra” diferentes implicam em muito mais do que o simples combate, refletindo o próprio coração da sociedade em que estão inseridas.

Mesmo se nos restringirmos às táticas e técnicas dentro do campo de batalha, contudo, a guerra dificilmente poderia ser considerada algo estático, parado no tempo. Às vezes como resultado de inovações tecnológicas (como o cavalo, o arco composto e a pólvora) ou simplesmente de uma nova maneira de pensar, as inovações no campo tático são contínuas e mudam radicalmente o panorama dos campos de batalha. Da falange grega às divisões panzer nazistas, passando pelas legiões romanas e pelas fortalezas do Renascimento, a guerra é, no campo de batalha, uma infinita disputa entre tecnologias e doutrinas militares e, normalmente, quem demora a se adaptar à evolução das mesmas corre o risco de ser derrotado. A França de 1940 (lutando a Segunda Guerra Mundial com as armas e técnicas da Primeira) é um exempo clássico disto.

Nesse artigo, gostaria de examinar as recentes intervenções americanas no Afeganistão e no Iraque, com vistas a verificar a hipótese de que estamos em um novo momento de mudança do paradigma militar, efetivado pelos americanos. Mudança de paradigma não na maneira de ver a guerra pelos Estados Unidos (que, em síntese, continua no mesmo modelo ocidental originário da tradição greco-romana, procurando eliminar o inimigo numa batalha decisiva e sem limitações), mas na sua operacionalização no campo de batalha.

Efetivamente, o pensamento tático americano tem mudado continuamente desde a ascensão dos Estados Unidos ao posto de superpotência no pós Segunda Guerra Mundial. Nessa guerra e nas anteriores, eles seguiram basciamente os padrões operacionais em uso por outros países ocidentais (adaptando, por exemplo, a doutrina das divisões blindadas alemãs ao seu Exército) e isso não se modificou substancialmente, a meu ver, nas décadas seguintes. Os americanos continuaram, no auge da Guerra Fria, a considerar que venceriam seus inimigos utilizando massas de aviões, tanques e soldados, como haviam feito antes.

Dois acontecimentos levaram os pensadores do Pentágono a repensarem seu pensamento. O primeiro foi a Guerra do Vietnã, que mostrou aos generais que um poder militar esmagador não funciona contra um inimigo que foge de um confronto decisivo e que nada pode ser pior do que uma intervenção contra um inimigo desse tipo e que se arrasta, com baixas e sem perspectivas de solução, por anos. A partir daí, ficou claro para os militares americanos que quaisquer intervenções no Terceiro Mundo só deveriam ser feitas com uma estratégia política clara, superioridade total para garantir uma vitória decisiva e retirada rápida. Também o sistema de recrutamento militar e várias mudanças tecnológicas surgiram desse conflito.

O segundo acontecimento foi a crescente clareza, nos anos 70, que um conflito com a União Soviética nos velhos termos seria inevitavelmente uma derrota, dada a imensa superioridade numérica dos soviéticos. Lutar nos termos deles seria suicídio. A partir daí, surgiu a idéia de uma doutrina militar, a “AirLand Battle”, enfatizando coordenação de poder aéreo e terrestre, mobilidade e troca de informações em tempo real para superar o número superior soviético.

Conforme registrado em artigo anterior, publicado nesse mesmo espaço (“Aspectos militares da campanha americana no Iraque”, in Correio Internacional, Brasília, março/2003), foi com essa doutrina e uma nova geração de armamentos que os americanos destruíram as forças armadas iraquianas durante a Primeira Guerra do Golfo. Ainda assim, a mudança de paradigma não foi completa, pois as fases aérea e terrestre da campanha foram separadas e uma concentração esmagadora de tropas e armas pesadas foi realizada para cumprir o plano.

Nos anos posteriores, com o colapso final da União Soviética, a pressão por mudanças ainda maiores cresceu. Começou-se a discutir, no Pentágono, a idéia de substituir massas de tanques e soldados por forças extremamente leves, equipadas com armas de tecnologia ainda mais sofisticada e maciço apoio aéreo, potencializado por sistemas de informação e aquisição de alvos aperfeiçoados e bombas inteligentes. Uma “mean lean machine”, máquina enxuta e má, capaz de dar conta não apenas dos inimigos convencionais, como também de outros, como terroristas, desejosos de fazer uma ‘guerra assimétrica” contra os Estados Unidos.

No governo Bush, o secretário da Defesa Donald Rumsfeld é um ferrenho defensor dessa mudança e o Afeganistão foi seu primeiro teste. O país não foi invadido por centenas de milhares de homens com armamento pesado (o que seria repetir o erro dos soviéticos nos anos 80), mas por forças especiais levemente armadas que usavam sistemas especiais para chamar apoio aéreo devastador quando necessário. O regime Taleban efetivamente desabou no processo e Rumsfeld e sua linha de pensamento pareceram estar com a razão, mas a maior parte dos militares americanos hesitava em aderir a esta idéia e abandonar completamente os sistemas táticos anteriores.

A Segunda Guerra do Golfo revelou a força dessa tensão. Rumsfeld insistiu em invadir o Iraque com forças muito menores e mais leves do que os militares queriam. Para ele, a nova campanha devia ser uma guerra do Afeganistão em escala maior e não uma Primeira Guerra do Golfo um pouco menor. Uma solução de meio termo foi adotada e a guerra foi vencida. A questão agora é verificar se, da avaliação dos resultados desse híbrido, voltaremos ao paradigma anterior aperfeiçoado pelas novas tecnologias ou se um novo paradigma triunfará, com o nome Rumsfeld no título.

Não sei, evidentemente, o que circula nos corredores do Pentágono, mas a minha avaliação do ocorrido é que a doutrina Rumsfeld está cheia de falhas. Sem dúvida, as alterações tecnológicas do armamento americano nos últimos anos são espantosas e mudarão a maneira de fazer a guerra. Mas não creio que chegaremos ao mundo imaginado pelo secretário de defesa dos Estados Unidos e baseio isto na minha análise das campanhas do Iraque e do Afeganistão.

Nesse último país, por exemplo, como os Estados Unidos teriam conseguido acabar com o regime taleban sem o concurso de aliados locais, como a “Aliança do Norte”? Eles poderiam ter enviado forças especiais e bombardeado o país por anos, mas o taleban poderia ter resistido se não houvesse inimigos locais para fazer o serviço pesado. Sem estes aliados, e se os americanos quisessem realmente derrubar o regime, tropas pesadas e numerosas teriam sido necessárias, com todos os desdobramentos negativos daí decorrentes. Ou seja, sem apoio local, os americanos não triunfariam apenas com tropas leves e altamente tecnológicas.

No Iraque, por sua vez, o colapso do regime de Saddan Hussein com certeza foi espantoso, ainda mais depois de um período de resistência inicial que surpreendeu. A tão temida guerra urbana também não ocorreu na intensidade esperada. Mas esses acontecimentos não foram decorrência, a meu ver, da aplicação da “Doutrina Rumsfeld”, mas da política. Como já tinha indicado no meu outro artigo, citado, o regime estava praticamente podre por dentro, mantido pelo terror, e era difícil acreditar que ele pudesse se manter. Bastou uma pressão militar maciça, indicando que o regime tinha os dias contados, e, provavelmente, uma boa quantidade de subornos e acordos por baixo do pano, e a resistência desmoronou.

Curiosamente, contudo, a pressão militar que realmente funcionou como gatilho do processo não foi a dos bombardeios cirúrgicos da doutrina “Choque e Pavor” de Harlan Ullman e James Wade (completamente irrealista para quem conhece a história dos bombardeios aliados na Alemanha na Segunda Guerra ou alemães na Inglaterra em 1940, que produziram mais ódio e desejo de revanche do que medo e paralisia), mas a das colunas de M1s e Bradleys entrando em Bagdá. Do mesmo modo, o único momento de alento dos adeptos de Saddan foi quando as longas e levemente armadas linhas de suprimento americanas foram ameaçadas. Sem forças realmente pesadas para eliminar essas ameaças, talvez esse alento pudesse ter sido transformado em esperança e maior disposição de luta.

A meu ver, portanto, a “Doutrina Rumsfeld” com certeza é muito útil para lutar contra inimigos não convencionais, como terroristas, e, em certas condições, pode muito bem servir para eliminar Estados inimigos armados convencionalmente, se as condições políticas locais forem favoráveis. Mas, para conquistar Estados fortes e estáveis, as tropas pesadas ainda são necessárias e as velhas doutrinas militares continuam válidas. Resta esperar que nem velhas e nem novas doutrinas militares sejam utilizadas nos anos a seguir, o que, com a nova direita republicana no poder no coração do Império, talvez seja uma esperança vã.

(*) Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pesquisador associado do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da mesma Universidade e Professor de História Contemporânea na Universidade Estadual de Maringá/PR.'




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