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Ensaios-->Egito - uma história de 5.000 anos -- 22/07/2003 - 18:08 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Habibe:

Abaixo, transcrição do primeiro capítulo de meu livro “Egito – uma viagem ao berço de nossa civilização”, editado pela Thesaurus, Brasília, 1995. Espero que gostem! Intchaalá!!!

Há outros dois capítulos do livro publicados em Usina, “Islã: conflito com civilizações?” e “Guerra do Golfo: de pai para filho”.

Chucrán!

Félix Maier

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CAPÍTULO I

EGITO - 5 MIL ANOS DE HISTÓRIA


Uma viagem até as 'Arábias'


Tudo começou quando em 1989, servindo como sargento do Exército Brasileiro, em Brasília, me inscrevi como candidato a missão no exterior. Achava que tinha alguma chance, por estar habilitado em inglês. Alguns meses depois, no final de outubro, ao ser chamado pelo então Ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, a grata surpresa: fora escolhido para ser, du-rante dois anos, o auxiliar do adido militar brasileiro no Egito. Minha mãe estava certa quando dizia que um homem que conhece dois idiomas vale por dois.

Após a assinatura do decreto de nomeação, feita pelo Presidente Sarney, tivemos que correr contra o tempo para colocar a papelada de toda a família em ordem para a viagem: pedir emissão dos passaportes, tomar vacina contra a febre amarela, providenciar 'só' 8 documentos para remeter a bagagem, fazer estágios para o de-sempenho da missão, revisão do inglês, comprar roupa e sapa-tos para todos, fazer reservas de passagens aéreas, conceder procurações e outras coisas mais. Foram muitas noites mal dormidas devido à preocupação frente ao desconhecido que se avizinhava.

E assim saímos de Brasília no dia 4 de março de 1990, para pegar um DC-10 da VARIG no Rio de Janeiro, às 22:30 ho-ras, com destino a Paris. Foram 10 horas de viagem, sem escalas. É como estar sentado num sofá em casa. Nada de trepidação ou solavanco, a 10 mil metros de altura.

Chegamos em Paris por volta do meio-dia, no Aeroporto Charles de Gaulle. Lá nos apoiou gentilmente o sargento Van-derley Gonçalves, auxiliar do adido militar brasileiro naquele país. Não foi possível dar uma esti-cada até o centro da cidade, para ver a Torre Eiffel ou o Arco do Triunfo, pois o trânsito é infernal e o tempo era exíguo, já que às 17:00 seguiríamos para o Cairo. Fazia um friozinho razoável, por volta dos 12 graus centígrados, principalmente se levar-mos em conta que tínhamos saído do Brasil no verão e em Paris, no hemisfério norte, ainda era inverno.

Na viagem de Paris ao Cairo, de 5 horas, a paisagem mais interessante que vimos foram os Alpes suíços, com inú-meros lagos e as neves eternas envolvendo em forma de leque o norte da Itália.

A 'lei de Murphy' estabelece que 'qualquer coisa que possa dar errada, vai dar errada'. De acordo com esta afir-mação tola, a nossa viagem de avião iria acabar em desastre. Prefiro o sofisma de Zenão, que provou matematicamente que uma tarta-ruga ganha a corrida de um coelho - desde que saia na frente.

Finalmente, chegamos ao fim da viagem, sem que a 'lei de Murphy' se concretizasse. No dia 5 de março, às 22:15 ho-ras, o adido militar no Cairo, hoje general Newton Mousinho de Albuquerque, bem como seu auxiliar, atual tenente Édison Ferreira Netto, acompanhados de suas esposas, nos esperavam no Aeroporto do Cairo.

No percurso até a residência do Netto, a primeira im-pressão que tivemos do Cairo foi muito boa: avenidas largas, cidade moderna, luzes e néons em profusão, edifícios majes-tosos e muita arborização para quem julgava encontrar quase só areia e deserto. Na casa do Netto tivemos as primeiras 'aulas' sobre o Egito, o modo de vida das pessoas, a compa-ração dos preços feita pelo câmbio egípcio e brasileiro - sempre através do dólar. Na primeira noite fomos dormir muito tarde, ainda sem sono, por causa da diferença do fuso horário, de 5 horas. Por isso mesmo só acordamos no outro dia às 14:30 horas.

O Netto nos levou a muitos lugares interessantes no Cairo, no período em que passava as funções da aditância militar para mim, nos apresentou a várias famílias brasileiras e estrangeiras, ensinou o caminho das pirâmides e do espetacular bazar de Khan Al-Kha-lili, e foi atencioso em nos ajudar nos primeiros pas-sos que dávamos na República Árabe do Egito.


República Árabe do Egito


Com mais de 60 milhões de habitantes, 90% da população egípcia é muçulmana e 7% copta - a religião cristã ortodoxa do país. A bandeira nacional tem três listras horizontais, vermelha, branca e preta, com uma águia no centro. O Hino Nacional Egípcio começa com a letra 'A ti, a ti, meu país, entrego meu amor e meu coração'. A moeda é a libra egípcia, dividida em 100 piastras ou 1.000 millièmes. Esta última subdivisão - o millième - está praticamente em desuso.

A língua oficial é o árabe e o inglês tomou o lugar do francês como o segundo idioma do país, sendo utilizado principalmente para apoio aos tu-ristas. Pode-se afirmar que em todos os lugares, no comércio e nos sítios turísticos, há sempre muitos egípcios que fa-lam fluentemente o inglês. Todo o primeiro escalão do governo e todos os intelectuais do Egito se fazem entender perfeitamente nesta segunda língua.

O Egito (Misr, em árabe) é uma república presidencialista desde 1953, sendo o Chefe de Estado o Presidente Muhammad Hosni Mubarak, no poder desde 1981 e atual-mente em seu terceiro mandato consecutivo. De acordo com a Constituição adotada em 1971, o Egito passou a ser uma sociedade democrática socialista. A cada seis anos um candidato a presidente deve ser apontado por pelo menos 1/3 dos membros da Assembléia do Povo - o Parlamento egípcio, unicameral - e confirmado por pelo menos 2/3 de seus membros. Somente um candidato é apresentado ao povo, para ser votado em referendum. O presidente nomeia um ou mais vice-presidentes e todos os membros do Conselho de Ministros.

A Assembléia do Povo tem 448 membros, eleitos para mandato de 5 anos. O presidente do Egito tem o direito de nomear mais 10 membros. Pelo menos a metade dos parlamentares deve ser composta de operários e trabalhadores rurais. Teoricamente, a Assembléia do Povo tem grande poder, mas na prática apenas aprova a política do presidente.

Administrativamente, o país é dividido em 22 governadorias (províncias ou estados) e 4 cidades. Algumas governadorias têm nomes iguais às suas capitais: Cairo, Alexandria, Assuã, Suez, Gizé. O presidente tem, ainda, poder para nomear os dirigentes das governadorias. Estas, por sua vez, são divididas em distritos e cidades, com governantes também nomeados. Muitos 'governadores' são militares de altas patentes, alguns sendo veteranos da Guerra de 1973, da qual também participou Mubarak como comandante da Força Aérea.

O Partido Democrático Nacional - do governo - é o mais poderoso do país. Partidos de oposição também participam das eleições, como o Partido Novo Wafd e o Partido Trabalhista Socialista. Todos os cidadãos egípcios com mais de 18 anos podem votar. Na realidade, o que se observa é que uma minoria tem título de eleitor. Calcula-se que apenas 10% dos aptos exercem o direito de voto, ou menos ainda. Como o partido do Presidente Mubarak é o mais forte, podendo este ser indicado indefinidamente para a reeleição, Mubarak pode ser chamado, com toda propriedade, de um autêntico 'faraó'. Com uma Lei de Emergência em vigor e várias vezes reeditada desde o assassinato de Sadat, com amplos poderes sobre o país e as Forças Armadas, podendo fechar o Parlamento quando assim o desejar, Mubarak é na realidade um 'Ramsés' dos tempos modernos.

De acordo com a lei egípcia, todas as crianças de 6 a 12 anos são obrigadas a freqüentar a escola. Atualmente, 85% dessas crianças vão às aulas, mas o analfabetismo é ainda muito grande no Egito: 45% da população não sabe ler nem escrever. Porém o quadro já foi pior: até 1940, 80% não sabia. Em 1994, a metade da população egípcia ainda vivia no campo.

Quando chegamos no Egito, em 1990, a situação econômico-social já era bastante crítica. Hoje, após a Guerra do Golfo Pér-sico, com a ingerência do Fundo Monetário Internacional obrigando o país a retirar os subsídios dos produtos alimen-tícios e dos serviços públicos, a situação é muito pior para a classe menos favorecida.

O Egito procura fugir do modelo socialista imposto por Násser: nacionalização da indústria, setor público extrema-mente desenvolvido e pesado, com o país praticamente fechado a investimentos estrangeiros. Na época em que lá chegamos, a dívida externa era de mais de 40 bilhões de dólares. Compa-rado ao seu PIB, a dívida egípcia era 5 a 6 vezes mais grave que a brasileira. Como diria o ex-Ministro Magri, é uma dívida 'impagável'.



Egito, o maior oásis do mundo


O Egito tem uma área aproximada de 1 milhão de km², da qual 96% é puro deserto. Não fosse o capricho da natureza ter feito seguir o Rio Nilo do sul para o norte da África, rasgando as escaldantes areias do deserto, não existiria o Egito que a gente conhece das aulas de His-tória, com seus faraós e monumentos descomunais que tiveram início por volta de 3.000 anos antes de Cristo.

O Egito é antes de tudo o Rio Nilo. Nem por nada que o historiador grego Heródoto afirmou que 'o Egito é um presente do Nilo'. Podemos dizer que o Egito, restrito na prática a seu Vale e a seu Delta, é o maior oásis do mundo, encravado entre o Deserto da Líbia e o Mar Verme-lho. De Assuã (Alto Egito) até o Cairo, o fértil Vale do Nilo varia de 1,5 a 14,5 km de largura. Depois do Cairo, o Nilo se divide em dois braços principais, Damieta e Roseta, para atingir o Mar Mediterrâneo juntamente com uma infinidade de canais de tamanhos decrescentes que irrigam todo o Delta do Nilo (Baixo Egito), considerado uma das regiões mais férteis do planeta.

O Nilo de águas azuis que passa solene e manso pelo Cairo deriva-se de dois afluentes principais: o Nilo Branco, que se origina no Lago Vitória, e o Nilo Azul, que nasce na Etiópia. O Nilo tem, ao todo, 6.670 km de comprimento, só perdendo em extensão para o Amazonas-Ucayali.

O Nilo é tão importante para o Egito que o ex-Pre-sidente Sadat já foi até à guerra com o Sudão por causa de suas águas. Como o Egito está no final da 'fila' e é o úl-timo a receber o precioso líqüido, depois do Sudão, Quênia, Etiópia e outros países, procura impor uma política de utili-zação con-junta de suas águas e qualquer projeto de hidrelé-trica ou irrigação nos outros países deixa o governo egípcio com o cabelo em pé. Ao todo, são nove os países que dependem das águas do Nilo.

Basta dizer que a quase totalidade da popu-lação egíp-cia se comprime nos 4% de suas terras férteis - o Vale do Nilo e seu Delta. Para se ter uma idéia da superpopulação egípcia, uma das maiores do mundo, é mais ou menos como se toda a população residente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro vivesse num Es-tado como o Pará, mas com a diferença de não povoar o inte-rior de todo aquele Estado, mas apenas as margens do Rio Amazonas, incluindo a Ilha de Marajó, que seria o Delta. Im-portante é frisar que nesse pequeno espaço em que o povo di-vide suas terras para a plantação e para sua habitação, o Egito consegue a proeza, ainda assim, de produzir quase tanto trigo quanto o Brasil, superando nosso país na pro-dução de alho e cebola. Durante a Guerra da Secessão, nos EUA, o Egito se tornou o maior produtor mundial de algodão!

O resto de seu território, já foi dito, é puro de-serto, com alguns oásis de interesse apenas turístico, de população escassa, a exemplo do oásis de Siwa, perto da fronteira com a Líbia, e dos oásis de Faratra, Kharga e Dakhla. Há também o Novo Vale, localizado numa depressão a oeste do Nilo, no Alto Egito, próximo à Represa de Assuã, um ousado projeto agrícola do governo que tenta domar as areias do deserto. Fora do Vale e do Delta do Nilo convém citar, ainda, os balneários no Sinai e nas costas do Mediterrâneo e do Mar Verme-lho. Naqueles re-cantos paradisía-cos, com águas do mar transparentes, muito sol e calor, os turistas praticam escafandria e viajam em barcos com o fundo transpa-rente, ou em submarinos, para observar a rica fauna e flora do Mar Vermelho, com peixes exóticos e corais multico-loridos.


Redescoberta do Egito


O Egito é tão antigo, mas tão antigo que a história lá não é contada em séculos, porém em milênios. Assim, não im-pressiona quando se fazem não só descobertas mas também 'redescobertas' naquele exótico país. Um egípcio, Dr. Ra-gab, 'redescobriu' a técnica de fabrico do papiro. E os franceses, com Napoleão Bonaparte, 'redescobriram' a histó-ria egípcia, escondida em hieróglifos indecifráveis.

Com a expedição de Napoleão ao Egito, em 1798, seguiram junto 150 estudiosos, que produziram uma enorme obra, a Description de il'Egypte (Descrição do Egito). Os aspectos exóticos da ci-vilização faraônica despertaram a curiosidade de intelectuais e do povo em geral, surgindo a 'egiptomania'. O roubo de antigüidades egípcias aumentou e começaram a se formar as grandes coleções que atualmente existem em vários museus do mundo, especialmente os de Londres, do Louvre (Paris) e do Vaticano.

Porém, o enigma dos hieróglifos que cobriam as paredes de mui-tos monumentos egípcios permanecia indecifrável e a história dos faraós continuava envolta em mistério.

Em 1799, próximo a Rashid (Roseta), a leste de Alexan-dria, foi achada uma pedra negra de basalto coberta de ins-crições. A pedra continha um decreto de Ptolomeu V, datado de 196 a.C., escrito em três textos: o primeiro em caracteres hieróglifos, a 'escrita sagrada', enten-dida naquela época somente pelos sacerdotes; o segundo em caracteres demóticos (do grego 'demos'), a 'escrita popular'; e o terceiro em caracteres gregos. Este último texto era nessa língua porque era dirigido ao grande número de gregos que se estabeleceram no Egito depois da conquista de Alexandre, muitos deles tornando-se figuras influentes na corte e na administração egípcia.

Supondo, corretamente, tratar-se do mesmo texto com três versões, compreenderam os cientistas que tinham em mãos uma chave para a escrita hieroglífica.

Fizeram-se várias cópias das inscrições da Pedra de Roseta para distribuição aos estudiosos. Com a der-rota dos franceses no Egito, os ingleses levaram a Pedra de Roseta como troféu de guerra. Atualmente, a Pedra se encon-tra exposta no Museu Britânico.

O francês Jean-François Champollion já aos 13 anos se comprometeu em decifrar o enigma dos hieróglifos e para isso estudou latim, grego, hebraico, aramaico, sírio, árabe, persa e copta. O enigma persistia: a escrita egípcia era ideográfica ou fonética? Ou seja, cada símbolo represen-tava uma idéia ou um som?

Com a ajuda de cópias da Pedra de Roseta e de incrições de monumentos do Egito, Champollion conseguiu decifrar os nomes de soberanos gregos e romanos, como Alexandre, e chegou aos nomes de faraós egípcios, como Ramsés. Champollion descobriu que os hieróglifos eram símbolos fonéticos. Por exemplo, o desenho da coruja não representava um pássaro mas o som da letra 'm'; a mão não era uma mão mas o som da letra 'd'; as duas linhas ondu-ladas não representavam a água mas o som da letra 'n'; o leão representava a letra 'l'; e assim por diante. Aumentando o conhecimento do número de caracte-res, Champollion começou a ler textos mais longos e, por fim, dominou o antigo idioma egípcio.

Nascia, assim, a egiptologia, ciência que, à semelhança do hipotético ovo de dinossauro do filme Parque dos Dinossauros, recriou toda a história do antigo Egito, dinastia após dinastia, nos legando todo o conheci-mento detalhado da vida egípcia, seus afazeres domésticos, a crença na imortalidade da alma, seus deuses, os serviços fu-nerários, as campanhas contra os inimigos.



O Egito, de Menés a Mubarak



Antes de escrever alguma coisa sobre os egípcios, esse povo sofrido que foi dominado por povos tão diferentes du-rante tanto tempo, usurpando de suas riquezas, convém fazer um retrospecto sobre sua história.



Período faraônico


No ano 3200 antes de Cristo, o Alto e o Baixo Egito foram unificados em um só reino, por Menés, com a capital em Mênfis, perto das pirâmides de Sakara, a uns 40 km ao sul do atual Cairo. Começou então o Pe-ríodo Arcaico ou Tinita, que durou até 2680 a.C. É nesse período que foi inventado o papiro. Os vários períodos de governo cons-tituiram-se em 31 dinastias reais, cada uma com um número variável de soberanos. A pirâmide em degraus de Sakara foi construída no Período Arcaico, durante a III Di-nastia, para servir de mausoléu ao Rei Zoser. Essa pirâmide é a primeira grande construção de pedra da história e a mais antiga edificação ainda existente no mundo.

As três grandes pirâmides de Gizé foram construídas durante a IV Dinastia, no rei-nado de Quéops, Quéfren e Miquerinos (pai, filho e neto, respectivamente). É o período do Antigo Reino (2680 a 2280 a.C.).

No Segundo Período Intermediário (1785 a 1580 a.C.), deve-se destacar as Dinastias XV e XVI, dos hicsos, cujo significado é 'reis pastores'. Os hicsos eram povos de Canaã (Palestina e Líbano), que ocuparam o norte do Egito entre os anos de 1730 e 1580 a.C., dividindo aquele país novamente em Alto e Baixo Egito e fixando a capital em Avaris, na região oriental do Delta do Nilo. Os hicsos introduziram as carruagens de guerra, puxadas por dois ou quatro cavalos, arma essa utili-zada com muito sucesso pelos egípcios, posteriormente.

O Alto Egito continuou a ser governado pelos egípcios, naquele mesmo período, pela XVII Dinastia, com a capital em Tebas, no sítio da atual Lúxor.

Nesse tempo, os hebreus começaram a se instalar no norte do Egito, em grande número, entre o Delta do Nilo e o atual Canal de Suez, porque não havia restrição dos hicsos. Pela Bíblia sabemos que Abraão também passou pelo Egito, fugindo da fome que havia se instalado em Canaã. Com a escrava egípcia Agar, Abraão teve o filho Ismael. Este, por sua vez, teve 12 filhos e seus descendentes formaram os árabes ismaelitas. Com Sara, Abraão teve Isaac. Este teve 2 filhos, Esaú e Jacó. Jacó, também conhecido como Israel, teve 12 filhos, que formaram as 12 tribos de Israel. Assim, Abraão é, ao mesmo tempo, pai dos árabes e dos judeus. De mesma origem, os judeus e árabes até hoje nutrem ódio mortal uns contra os outros, apesar de todos serem primos. O idioma de ambos é muito semelhante, muitas palavras em hebraico e árabe são iguais. Por exemplo, as palavras salam (em árabe) e shalom (em hebraico) têm o mesmo significado: 'paz'. Escreve-se, nas duas línguas, da direita para a esquerda, porém com caracteres di-ferentes.

Com a expulsão dos 'reis pastores', como eram co-nhecidos os hicsos, é fácil entender a apreensão de José, vendido pelos próprios irmãos como es-cravo para o Egito, quando quis estabelecer no país seu pai Jacó e os irmãos, todos pastores: 'E direis isto, para poderdes habi-tar na terra de Gessém; porque os egípcios detestam todos os pastores de ovelhas' (Gênesis 46:33).

Finda a dominação dos hicsos, o Egito foi novamente unificado e os seus reis passaram a ser denominados 'faraós'. O termo significa 'palácio' e o faraó era tido como um deus. O poder real do faraó é bem expressivo, pelas imagens que nos chegaram das tumbas: o cetro e o azorrague cruzados sobre o peito. O poder de reinar, e o poder de castigar. Com os faraós começa o período do Novo Reino, que se estendeu de 1580 a 1085 a.C.

Durante o Novo Reino, o Egito fixou sua capital em Tebas, que durante séculos foi a cidade mais importante do Oriente. É a época de ouro do an-tigo Egito, destacando-se os famosos faraós Tut Ankh-Amon - o rei-menino -, da XVIII Dinastia, e Ramsés II, da XIX Dinastia.

O faraó Akhenaton (casado com Nefertiti), que governou um pouco antes de Tut Ankh-Amon, é considerado o primeiro monoteísta, por querer implantar no Egito antigo a religião de um único Deus. Porém, após sua morte, o povo egípcio passou a ser politeísta como sempre tinha sido até então. Atribui-se a Akhenaton a criação dos conceitos da atual sociedade rosa-cruciana. Numerosos personagens da Antigüidade teriam pertencido àquela sociedade esotérica, como Salomão, Pitágoras, Platão. O alemão Christian Rosenkreuz, na Idade Média, foi apenas um renovador dessa ordem secreta, ao criar a sociedade Rosae Crucis, que mistura hermetismo egípcio, agnosticismo cristão, cabalismo judaico, alquimia e outras crenças.

Durante o Novo Reino, o povo hebreu havia crescido muito no Egito e passou a ser considerado um perigo para os faraós. Por isso, os hebreus começaram a ser escraviza-dos e seus bebês do sexo masculino tinham que ser mortos, lançados ao rio. Moisés foi salvo das águas pelas mãos de uma princesa egípcia. A Bíblia nos diz sobre a construção, pelos escravos hebreus, das cidades-depósitos de Fitom e Ra-messés, esta última no sítio da antiga cidade de Avaris (Êxodo 1:11).

Segundo alguns historiadores, durante o reinado de Ramsés II (1298-1232 a.C.) os hebreus foram libertados por Moisés e começaram o retorno à Terra Prometida, passando pelo Sinai e vagando 40 anos pelo deserto. Se aquela época for a correta, o filme Os Dez Mandamentos se aproxima bastante do que poderia ter ocorrido com Moisés e seu povo nas mãos do faraó Ramsés II, interpre-tado pelo ator careca Yul Brynner. Como no filme, os filhos dos faraós ti-nham que raspar a cabeça, ficando apenas com uma mecha de cabelo, no lado da cabeça, enrolada em tranças.

Porém, há controvérsias. No tempo de Salomão (III Reis, 6:1) há referência sobre os 480 anos após a saída dos filhos de Israel da terra do Egito, que conhecemos por 'Êxodo', quando se começou a edificar a Casa do Senhor, em Jerusalém (1º Templo). Feitas as deduções, estudidosos acham que o Êxodo teria ocorrido em 1446 ou 1448 a.C., durante o reinado do faraó Tuthmosis III, da XVIII Dinastia. Tuthmosis, em sua campanha contra os cananeus e sírios, venceu a maior batalha da história antiga, Armagedon, nas colinas de Meguido, perto da Nazaré atual, em Israel. Armagedon é, ainda hoje, o sím-bolo da guerra entre o bem e o mal, a última e maior batalha que ainda está por ser travada (Apocalipse 16:14 e 16).

Em 525 a.C., começa o período de domínio estrangeiro, com os persas governando de 525 a 332 a.C., destacando-se os soberanos Cambises, Dario e Xerxes. Cambises fundou a cidade da Babilônia, no atual Cairo Velho, onde hoje se encontram restos de antiga fortaleza romana. A partir da invasão dos persas começa a decadência do antigo império faraônico. Mesmo com o domínio estrangeiro, o Egito foi governado por dinastias reais, da XXVII até a última, a XXXI. O correto seria afirmar que as dinastias reais terminaram com a invasão dos persas, a partir de quando os egípcios, de uma forma ou de outra, foram quase sempre governados por es-trangeiros até sua independência em 1922.



Dominação grega, romana e bizantina


Em 332 a.C., Alexandre, o Grande, con-quistou o Egito, fundando Alexandria. Quando Alexandre mor-reu, um de seus generais começou a reinar sobre o Egito e a Palestina com o nome de Ptolomeu I. Começa assim o Período Ptolomaico, que se encerrou com a morte da rainha Cleópatra em 30 a.C., findando-se o longo período das 31 dinastias reais que governaram o Egito por mais de 3 milênios.

Alexandria passou então a ser o centro grego no Egito, uma base naval e uma ligação entre a Macedônia e o rico Vale do Nilo. O apogeu da cidade coincidiu com a época dos Ptolomeus. Em 280 a.C., Ptolomeu II mandou erguer o primeiro farol da história, em Alexandria. Tinha 120 m de altura e se tornou uma das sete maravilhas do mundo antigo. Localizava-se na Ilha de Faros, donde se originou o termo 'farol'. Um terremoto o destruiu no século XIV. Sob o governo dos Ptolomeus, Alexandria tor-nou-se o centro da cultura mundial. Ali viveram Eurípedes, Teócrito, Aristarco. A biblioteca de Alexandria, com um acervo de mais de meio milhão de papiros, reunia todo o saber da época.

O chamado 'bairro do Delta' abrigava, também, uma comu-nidade judia que falava grego. Desta aliança entre as duas culturas nasceriam O Livro dos Macabeus, O Livro da Sabedo-ria e a tradução grega do Antigo Testamento conhecida como Septuaginta ou dos Setenta.

A chegada dos romanos, com Júlio César, em 48 a.C., representou um duro golpe para a ci-dade de Alexandria: durante a guerra de 48/47 houve o incên-dio da famosa biblioteca.

No Cairo Velho, nos dias atuais, ainda existem ruínas do antigo Forte da Babilônia, construída pe-los romanos durante o reinado do imperador Trajano, em 98 de nossa era.

A partir de 324, com o imperador Constantino, o Grande, o Egito teve a religião cristã oficializada. Tem início o período bizantino (Império Romano do Oriente), com a capital em Constantinopla. Posteriormente, o imperador Teodósio I, o Grande, fechou todos os templos pagãos do Egito. Começa o declínio do antigo idioma egípcio, que acabou por desapa-recer completamente.

Há igrejas coptas no Cairo Velho que datam daquela época, ampliadas e reformadas posteriormente, e que contam com mais de 1.500 anos de existência, como a Igreja de São Sérgio, onde fica a gruta que abrigou a Sagrada Família, quando fugiu de Hero-des. Outra igreja, construída no século V, é chamada de Al-Mo'allaqa (a 'Suspendida') porque fica sobre alguns bastiões do antigo Forte da Babilônia. Não confundir com a Babilônia da Mesopotâmia, que ficava no Iraque atual. Antigamente, a fortaleza ficava ao lado do Rio Nilo, junto a um porto. Hoje, o Nilo corre 300 m adiante.


O Império Árabe


Depois dos bizantinos vieram os persas, em 616, e por fim os árabes, comandados pelo general Amr Ibn Al-As, du-rante o califado de Omar, que introduziram no Egito o isla-mismo em 639 - religião e cultura que persistem até hoje. O Egito tornou-se uma província do Império dos Califas, com sede em Medina, na Arábia Saudita.

Kalifa significa 'sucessor', do profeta Maomé. Omar, o 2º califa, é o verda-deiro fundador do império árabe, conquistando a Pérsia, a Síria, toda a Palestina, além do Egito. Nas imediações do atual Cairo Velho, Amr Ibn Al-As fez construir Al-Fustat, ca-pital do Egito até 969. Dessa antiga cidade nada restou além da mesquita de Amr Ibn Al-As, a mais antiga da África e a quarta mais antiga do mundo.

A partir de 660 o califado se torna hereditário, ini-ciando-se a dinastia dos omíadas, com sede em Damasco, na Síria. Durante essa época, a partir de 711, os árabes subju-gam a Espanha e Portugal. Na Espanha mantiveram-se por mais de 7 séculos, até 1492, com sede em Córdoba.

Em 750, a dinastia dos omíadas foi substituída pela dos abássidas, que iria se manter até 1258, e inicia-se o Cali-fado de Bagdá. O último omíada, expulso de Damasco, se refu-gia em Córdoba, Espanha, e funda o Califado Omíada do Oci-dente. Nesse período, o império começa a se fragmentar pois era muito extenso para se manter unido.

Em conseqüência do enfraquecimento do império árabe, em 969 o Egito foi invadido pelo general fatímida Djawhar Al-Rumi, que construiu ao norte de Al-Fustat uma nova capital, que chamou de Al-Qáhirah (O Cairo), cujo significado é 'a vito-riosa', devido ao planeta Marte que brilhava ao fim da bata-lha. Marte, como sabemos, é o deus da guerra.

A antiga cidade de Mênfis, uma das capitais do antigo Egito, ao sul das pirâmides de Gizé, tinha se mantido próspera mesmo durante a ocupação romana e só foi destruída pelos árabes que a saquearam para construir o Cairo. A principal relíquia que sobreviveu em Mênfis é uma esfinge de alabastro ainda encontrada no local.

Os fatímidas, ramo xiíta do islamismo, tem seu nome originado de 'Fathima', filha do profeta Maomé. Dessa época de domínio destaca-se a fundação da Mesquita Al-Azhar, no Cairo, com sua Uni-versidade de Teologia, considerada uma das mais antigas do mundo e que ainda tem um grande poder de irradiação em todo o mundo muçulmano. Também é desse período a Mesquita de Ahmad Ibn Tulun, igualmente construída no Cairo, uma das maiores e mais bonitas da cidade, e que tem um minarete em espiral e um grande pátio interno.

Em 1171, o grão-vizir Salah Addin Yusuf Ibn Ayyub, conhecido como Saladino, dominou o Egito e governou o país como Sultão da Síria até 1174, quando passou a ter o título de Sultão do Egito. Aboliu o califado fatímida no país e iniciou a dinastia dos aiúbidas. Em 1187, Saladino reconquistou a Palestina dos cruzados, incluindo a cidade de Jerusalém, restabelecendo o controle do califado sunita de Bagdá sobre toda aquela região.

Em contraste com a sangrenta ocupação de Jerusalém feita pelos cruzados, Saladino concedeu anistia e passagem livre para os cruzados e suas famílias saírem da Palestina, após pagarem alto resgate. As vitórias de Saladino na Palestina deram origem à III Cruzada, comandada por três reis da Europa: Felipe Augusto, da França; Frederico, o 'Barbaroxa', da Alemanha; e Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra. O contra-ataque dos três reis tornou-se inócuo frente ao gênio militar de Saladino. O Reino Latino de Jerusalém, dos cruzados, a partir de então, restringiu-se a algumas cidades da costa da Palestina.

No Cairo, Saladino construiu a famosa ci-dadela militar em Gibal (Colina) Al-Muqattan, onde atual-mente fica a imponente mesquita de Muhammad Ali. Introduziu, ainda, as madrassas, escolas da religião muçulmana semelhantes às da Síria, Mesopotâmia e Pérsia.

Saladino é, para os egípcios, um herói equivalente a El Cid, o chefe militar cristão que se tornou famoso nas campanhas contra os mouros, na Espanha. Dotado de extremo cavalheirismo, Saladino tornou-se amigo de Ricardo Coração de Leão, enviando-lhe uma vez neve para curar seus ferimentos. Saladino foi um general vitorioso e é o símbolo má-ximo, para os árabes, dessa época romântica, caracterizada por cavaleiros destemidos e corteses, eternizada nas obras de capa-e-espada da literatura medieval. Ainda hoje é grande a romaria a seu túmulo, em Damasco.

No século XIII, a dinastia fundada por Saladino é des-tronada, dando lugar aos sultões mamelucos. O termo 'mameluco', em árabe, significa 'ser possuído por alguém'. Eram escravos turcos capturados na infância e treinados pelos egípcios na arte da guerra. Os mamelucos, desta forma, tornaram-se oficiais influentes na corte egípcia e acabaram se apoderando do poder. O mesmo viria a acontecer com os califas de Bagdá, que foram se enfraquecendo pela presença cada vez maior de capitães turcos que serviam em seu impé-rio. Quase todos os monumentos que se conservaram até hoje no Egito são da época dos mamelucos, como a madrassa sepul-cral (mesquita) do Sultão Hassan e os mausoléus dos sultões mamelucos, próximos da Cidadela de Saladino.

Em 1517, o Egito tornou-se parte do Império Otomano. Como foi afirmado antes, os sultões turcos não se apoderaram repentinamente do império árabe. É que já, de fato, tinham estabelecido um certo poder sobre o mesmo anteriormente. A única lembrança deixada pelos tur-cos no Egito talvez seja o tarbúsh, um chapéu vermelho de feltro, sem abas e com borla negra, que os mandatários do Egito e os homens em geral utilizavam até an-tes da Revolução de 1952 e que hoje é apenas objeto de interesse para os turistas. E as casas públicas de 'banho turco', hoje em decadência absoluta.

Em 1798, Napoleão Bonaparte invadiu o Egito e foi ex-pulso pelos turcos e ingleses em 1801, quando os sultões turcos retomaram o poder. Em 1805, Muhammad Ali é designado pasha (paxá, governador) do Egito. Embora estivesse sob o comando dos turcos, logo passou a ser o real governante do país, tornando o seu governo independente e hereditário. Muhammad Ali é o fundador do moderno Egito e promoveu muitas melhorias na cidade do Cairo, criando bair-ros novos e aterrando pântanos.



O Canal de Suez


Em 1859, o francês Ferdinand de Les-seps começou a construção do Canal de Suez, que ficou pronto 10 anos depois. Para comemorar a inauguração do Ca-nal, o compositor italiano Giuseppi Verdi foi contratado para compor uma ópera, Aída, que teve sua première apresentada no Cairo somente em 1871.

Marco da moderna engenharia, o canal de Suez tem 167 km de extensão, largura mínima de 150 m, profundidade de 11 m e não possui comportas. O Canal encurtou em 44% o percurso entre Londres e Bombaim. Possui em seu percurso três grandes lagos: Ballah, Timsah e Amargos. Através de um desses lagos - e não do Mar Vermelho - os hebreus teriam passado a salvo, conduzidos por Moisés no Êxodo do Egito para a Terra Prometida.

A guerra entre o Egito e Israel, em 1967, fechou o Ca-nal de Suez à navegação internacional. A reabertura do Canal somente ocorreu em 1975, após um gigantesco trabalho de desobstrução de minas e navios afundados.

Desde a antigüidade, várias tentativas foram feitas no sentido de ligar o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Nos sé-culos VI a III a.C. realizou-se uma ligação entre o Nilo, o lago Timsah e o Mar Vermelho.

Com o fim da dinastia de Muhammad Ali, em 1882, e até 1922, o Egito se tornou província britânica. Embora perma-necesse juridicamente parte do Império Otomano, o Egito pas-sou a ser tratado pela Inglaterra como colônia sua: o exér-cito foi licenciado e substituído por forças militares bri-tânicas de ocupação e o país dirigido por cônsules ingleses.

Em 1914, quando o Império Otomano se aliou aos alemães durante a I Guerra Mundial, o Egito foi declarado proteto-rado britânico e Hussein Kamel passou a ser seu governante com o título de Sultão. Em 1917 assume Fuad I. Em 1922 ter-mina o protetorado britânico e Fuad recebe o título de rei. Assim, somente em 1922 o Egito conseguiu sua in-dependência, após centenas de anos de ocupação estrangeira.


A Revolução de 23 de julho de 1952


Com a Revolução de 23 de julho de 1952, é deposto o Rei Farouk e em 1954 assume o governo do Egito o coronel Gamal Abdel Násser. Muitos consideram o dia da Revolução como sendo a verdadeira data da independência do Egito, por ter-se livrado de monarcas corruptos, títeres dos ingle-ses. Nessa Revolução têm importância os oficiais egípcios da Irmandade Muçulmana, um movimento fundamentalista criado pelo egípcio Hassan Al-Bauna em 1928 e que de certa forma orientou todo o fundamentalismo que se observa hoje no mundo islâmico. Após a Revolução, o Egito se torna uma Repú-blica.

Násser nacionaliza o Canal de Suez em 1956, impedindo o seu uso a Israel. Com isso, provoca a Guerra contra Israel no mesmo ano, que invade a Faixa de Gaza e a Península do Sinai. Com a pressão das superpotências EUA e URSS, e da ONU, Israel deve devolver o território ocupado. Para fazer cumprir as resoluções da ONU, foram enviadas ao local do conflito as United Nation Emergency Forces - UNEF (Forças de Emergência das Nações Unidas), representadas também pelo Batalhão Suez, do Exército Brasileiro. Os nos-sos boinas azuis chegaram a Porto Said em 4 de fevereiro de 1957, sob o comando do tenente-coronel Iracílio Ivo de Figueiredo Pessoa. Geralmente, de 7 em 7 meses o Batalhão era substituído por novo contingente. Em 8 de junho de 1967, com o agravamento da crise árabe-israelense - que acabou resultando na Guerra dos Seis Dias -, os soldados brasileiros abandonaram a Faixa de Gaza a bordo do navio sueco Timmerland.

Em 1958, o Egito, a Síria e o Iêmen formam a República Árabe Unida (RAU). Essa confederação teve vida efêmera. Po-rém, até hoje ela deve ainda estar no subconsciente egípcio, apesar de agora o país se chamar República Árabe do Egito (RAE). Explico: o prefixo da Embaixada Brasileira no Cairo ainda é UAR-BREM. UAR é a sigla inglesa de República Árabe Unida. BREM (Brazilian Embassy) significa Embaixada Brasi-leira. Detalhe que os egípcios parecem não dar a mínima atenção. Na Embaixada Brasileira ninguém conseguiu me expli-car o porquê da manutenção daquela sigla. Como dizem os egípcios, maalêsh! Mais adiante eu explico o que isto signi-fica.

O Egito viria a sofrer outra derrota humilhante na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Násser, apesar das derrotas militares, sempre conseguiu manter seu nome como o maior lí-der do Egito moderno.

Em 1970, assume como presidente Anwar Al-Sadat. Ao con-trário de Násser, que havia nacionalizado quase toda a pro-dução egípcia, sob influência soviética, Sadat tenta intro-duzir no país a infitah, a política de 'portas abertas' ou abertura econômica, e começa a aproximação com o Ocidente, principalmente com os EUA. Assim, em 1972, Sadat ordena a retirada do país de cerca de 20 mil conselheiros soviéticos.

O Egito e a Síria, apoiados pelas nações árabes, atacam Israel de surpresa no dia 6 de outubro de 1973, iniciando a Guerra do Ramadã, como é conhecida pelos egípcios, ou a Guerra do Yom Kippur, assim chamada pelos judeus. 'Yom Kippur' significa 'Dia do Perdão' e é uma das datas mais sagradas dos judeus. Essa guerra levantou o moral de todo o Egito, pelas conquistas alcançadas, incluindo-se a devolução do Si-nai, somente efetivada em 1982. Hoje, no Egito, 6 de outubro é feriado nacional e o nome de uma importante ponte sobre o Nilo no Cairo. Há, ainda, a Cidade Seis de Outubro, criada em pleno deserto, ao sul do Cairo e em direção a Al-Fayyum, onde há vários complexos industriais instalados para desafo-gar o Grande Cairo.

As guerras do Egito contra Israel tornaram o país pobre e o êxodo rural aumentou. A cidade do Cairo começou a inchar e os protestos políticos, junto com a insatisfação da popu-lação pelos aumentos de preços dos produtos de pri-meira necessidade, levaram a muitas agitações, gerando prisões em massa.

O Egito, acertadamente, reconheceu a ne-cessidade de estabelecer um plano de paz com Israel e assim Anwar Al-Sadat e Menachem Beguin assinaram um Acordo de Paz, em 1979. Esse Acordo, aliado à política econômica re-cessiva de Sadat, revoltou ainda mais os extremistas e em 1981, na parada militar de 6 de outubro, data do início da Guerra do Ramadã, Sadat é assassinado no palanque das auto-ridades. Junto ao palanque, em companhia de vários militares estrangeiros, o adido militar brasileiro teve que se jogar no chão para não ser atingido por rajadas de metralhadoras.

Assume, então, o Presidente Muhammad Hosni Mubarak, que governa o Egito desde então, sendo eleito através de plebiscito em 4 de outubro de 1993 para seu 3º mandato. Mubarak sempre seguiu a linha po-lítica de Sadat e tornou o Egito um aliado importante do Ocidente no Oriente Médio, apesar da crescente rejeição a seu governo por parte dos fundamentalistas muçulmanos, que promovem ataques às autoridades egípcias, aos cristãos cop-tas e, desde 1992, a turistas estrangeiros. Um exemplo típico do seu ali-nhamento com os EUA foi o observado na Guerra do Golfo, em 1991, quando o Egito integrou as forças aliadas contra Sad-dam Hussein.

Como vimos nesta compacta retrospectiva histórica, o egípcio é um povo sofrido, que sempre se debateu contra a dominação estrangeira e somente em 1922 conseguiu sua inde-pendência - um século depois do Brasil.

É um povo sofrido, porém muito alegre e hospitaleiro. Faz lembrar o carioca no Brasil: gosta de curtir a vida, adora futebol e música, é afável, brincalhão e muito prestativo. Não consegue guardar rancor. É claro que há grupos radicais, mas o Egito era até pouco o único país árabe que mantinha relações diplomáticas com Israel.

Os costumes do povo egípcio, sua vida privada, curiosi-dades, humor, tudo isso tratarei adiante. Que é, sem dúvida, o melhor destas mal-traçadas linhas.



Processo de mumificação no Antigo Egito



'Embalsamar' e 'mumificar' significam a mesma coisa. O termo 'múmia' é resultado de erro grosseiro. Como muitos corpos embalsamados foram encontrados enegrecidos, acreditava-se que tivessem sido untados com betume. Mu-miya, em árabe, significa 'betume'.

A arte da mumificação no antigo Egito era ligada a ritual religioso. Eles acreditavam que depois da morte a alma, antes de atingir a redenção eterna, peregrinaria pelo espaço por longo tempo, revisitando várias vezes o corpo, razão pela qual se impunha a conservação do mesmo. No início, apenas os faraós e os sacerdotes tinham seus corpos mumificados. Depois o costume se estendeu também ao povo egípcio em geral.

Hoje, sabemos que há, pelo menos, três processos para preservar um corpo após a morte. O primeiro processo é re-frigerá-lo a baixíssimas temperaturas. Atualmente, há muitos milionários que mandam congelar seus corpos, após a morte, na esperança de mais tarde serem 'ressuscitados' e curados da doença que os acometeu, ou, numa hipótese melhor, que te-nham seus corpos rejuvenescidos quando retornarem à vida. Em 1991 foi descoberto o 'homem de Similaun', nos Alpes austríacos, que teve seu corpo congelado na neve e se conservou 'mumificado' em muito bom estado até hoje.

O segundo processo para preservar o corpo é injetar um fluido anti-séptico nas veias e artérias, de modo que o lí-qüido atinja todo o corpo para evitar a ação das bactérias.

O terceiro processo é desidratar completamente o corpo e mantê-lo seco. As bactérias necessitam de umidade para se desenvolverem e multiplicarem. A 'carne de sol', impregnada de sal, é preservada através desse processo, assim como as frutas cristalizadas. Este último processo - da desidratação - era o único disponível para os egípcios mumificarem seus corpos. Eles já sabiam que o imenso calor nas areias do deserto ressecavam completamente os corpos humanos, man-tendo-os bem conservados, porém rígidos. O que precisavam era algo que deixasse o corpo mais flexível.

Casualmente, os antigos egípcios tinham a substância ideal para isso, o natrão. Esta substância é uma mistura de bicarbonato de sódio e carbonato de sódio com cloreto de sódio (sal de cozinha) ou sulfato de sódio. Sua prin-cipal propriedade é ser higroscópica, ou seja, a capacidade de absorver a umidade, além de ser antisséptico - essencial para o embalsa-mamento das múmias egípcias. Desde a época do Antigo Reino (2680 a 2280 a.C.), os egípcios conheciam estas propriedades do natrão.

O natrão se cristalizava no verão, nas pequenas lagoas que se formavam após as enchentes do Nilo. Os antigos egípcios cha-mavam o natrão de netjeryt, que significa 'divino'. O natrão era também encontrado em um local, a 130 km a oeste do Cairo, que hoje tem seu nome derivado dessa palavra: Wadi Al-Natrun (Vale do Natrão).

Sabe-se que havia três métodos de preparação do corpo para a mumificação, de acordo com as posses da família do morto. O primeiro método, mais elaborado e mais caro, consistia na extirpação das vísceras e do estômago, deixando na caixa toráxica apenas o coração, algumas vezes também o fígado. O coração era mantido no corpo porque era considerado o órgão vital mais importante. Para os egípcios, era no coração que residia a inteligência humana, não no cérebro. Com ganchos metálicos era retirada toda a massa cerebral. Os órgãos extirpados eram guardados em uma caixa canópica. Esta, no funeral, era colocada dentro do sarcófago.

No segundo tipo de preparação do corpo não era feita nenhuma incisão para extrair órgãos internos. Com uma se-ringa injetava-se, através do ânus, óleo de cedro. Poste-riormente, era drenado o óleo, trazendo consigo o estômago e os intestinos.

O terceiro método era utilizado para o preparo dos de-funtos mais pobres. Simplesmente eram limpados os intestinos com um purgante.

O historiador grego Heródoto escreveu que as mulheres da classe mais alta e as que se distinguiam por sua beleza não tinham seus corpos entregues aos embalsamadores logo após a morte, mas apenas 3 ou 4 dias após, para evitar a ne-crofilia. Sem refrigeradores e com altíssimas temperaturas no Egito, isso era pouco provável de ocorrer. A não ser que se desse mais atenção para evitar a violação do corpo do que para conservá-lo efetivamente, pois em 3 ou 4 dias o corpo já estaria em adiantado estado de putrefação.

Após a preparação do corpo, dava-se início à mumifi-cação. No primeiro processo - com o corpo sem as vísceras -, colocava-se o natrão interna e externamente no corpo, para melhor penetração do sal em todos os tecidos do defunto. Substâncias aromáticas também eram colocadas dentro do corpo, além de mirra e cássia. Os órgãos guardados dentro da caixa canópica - vísceras, fígado, estômago, pulmões - tam-bém eram cobertos com natrão. Era, sem dúvida, o método que apresentava a maior durabilidade de conservação do corpo.

Nos dois outros processos, o natrão agia somente de fora para dentro do corpo, e o resultado era apenas parcial, pois havia a decomposição das vísceras. Resta saber qual o processo utilizado para a mumificação de Lênin, cujo corpo recebia enormes filas de visitantes em Moscou durante os áureos tempos do comunismo na antiga União Soviética.

Em todos os três métodos, a ação do natrão levava em torno de 40 dias para desidratar o corpo. Após esse tempo, o corpo era retirado do sal, lavado e enrolado em tiras de linho, da cabeça aos pés. A múmia estava pronta, toda enfai-xada. Nessas condições, o corpo era devolvido à família para o enterro. No Antigo Testamento, há uma passagem que fala da mumificação dos corpos de José e Jacó: 'E ordenou aos médi-cos que o serviam, que embalsamassem o seu pai. E, enquanto eles cumpriam a ordem, passaram-se 40 dias' (Gênesis, 50: 2-3).

As múmias dos faraós e dos principais integrantes de sua corte eram colocadas dentro de sarcófagos de madeira ricamente decorados. A câmara sepulcral do faraó Tuth Ankh-Amon, no Vale dos Reis, consistia de uma tumba escavada em bloco maciço de quartzo, com desenhos e hieróglifos em alto e baixo-relevo. Dentro da tumba, três sarcófagos, um dentro do outro, os dois primeiros em madeira revestida com ouro, o último em ouro maciço de 22 quilates, pesando 1.170 kg, guardavam o corpo do 'rei-menino'. Uma máscara de ouro com pedras preciosas cobriam a cabeça da múmia até os ombros.

Temos, no Brasil, uma bela coleção de múmias egípcias, que podem ser vistas no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A múmia da sacerdotisa Sha-Amen-em-Su, da 25ª Dinastia, foi presente do rei egípcio ao Imperador D. Pedro II. Há, ainda, uma outra peça valiosa, a múmia de uma jovem da 26ª Dinas-tia, que foi confiscada por D. Pedro I de um comerciante italiano, em 1818, no Porto do Rio de Janeiro, junto com outras preciosidades que tinham como destino a Argentina. Além das múmias, há um acervo bastante grande do antigo Egito no Museu Nacional, um dos maiores das Améri-cas.



A sultana Shagaret El-Dur


O jornal egípcio Al-Ahram (As Pirâmides) nº 7, de 11 Abr 91, conta a interessante história da Sultana Shagaret El-Dur.

Al-Salih Nagmeddin Al-Ayyubi, considerado 'Sultão Mártir', morreu em 1249 na batalha de Al-Mansura, quando um exército de cruzados francos atacou o Egito.

Sua mulher Shagaret El-Dur, temendo o baixo moral que se abateria sobre as tropas egípcias com a notícia da morte do Sultão, espalhou a notícia de que seu marido se encon-trava enfermo e recolhido em sua casa. Ela passou a assinar todos os decretos em nome do marido e a dar ordens da resi-dência real como se ele estivesse vivo. Somente quando os francos deixaram o país é que a morte do Sultão foi anun-ciada.
Em reconhecimento a suas habilidades, Shagaret El-Dur foi feita Sultana do Egito, a única mulher a governar o Egito islâmico em seus 14 séculos. Quando voltou a se casar novamente, o poder passou ao novo marido. O fim da Sultana foi trágico: uma rival a matou a tamancadas, dentro de sua banheira.
Em Zamalek, no Cairo, há uma rua com o nome da Sultana, a Shária (Rua) Shagaret El-Dur, paralela com a Shária Al- Barazil (Rua Brasil).


O paraíso dos antigos egípcios


Interessante é observar a semelhança entre a religião da época faraônica com as religiões cristã e muçulmana. To-das pregam a vida pós-morte, todas têm imagem semelhante para depois do juízo final: os bons irão para o céu e os maus para o inferno.

Os egípcios da época dos faraós acreditavam que o céu era eterno, com rios caudalosos, frutas e licores que não intoxicavam. É uma imagem muito parecida com o Corão, livro sagrado dos muçulmanos, que além dessas delícias ainda pro-mete mulheres virgens.

É fácil imaginar o que seria o céu ideal para os fa-raós, assim como para os árabes, por viverem em uma das re-giões mais agressivas da Terra, o deserto sem fim, o calor infernal e a constante falta de água. Para um esquimó, o céu, sem dúvida, deveria ter uma lareira, um foguinho de le-nha, para afugentar o frio. Mas para os árabes, o paraíso não poderia ser diferente daquela paisagem ideal para todos nós também: muitas árvores, rios e cachoeiras, clima ameno - assim como Campos do Jordão, SP.

A imagem do juízo final, desenhada em tumbas faraôni-cas, é bem expressiva. O morto tem o coração arrancado e co-locado numa balança. Simbolicamente, o contrapeso é apenas uma pena de ave. Se o coração for mais pesado que a pena, é lançado a um chacal para ser devorado. Se for mais leve - apenas os que tiverem praticado boas ações têm o coração mais leve que a pena -, o morto terá alcançado as delícias do paraíso junto aos deu-ses.



A cidade dos mil minaretes


Embora o Egito fique na África e só tenha um pé fincado na Ásia - a Península do Sinai -, sua capital, Cairo, é uma espécie de 'Paris do Oriente Médio'. É efetivamente a vitrina e porta de entrada de toda a cultura árabe, com seus bazares, mesquitas e a vida fervilhante que delicia o turista. Como disse o sociólogo egípcio Saad Eddin Ibrahim, 'o Cairo, em termos de influência no mundo árabe, é tão importante quanto Paris, o Vaticano, Oxford, Hollywood e Detroit juntos'.

O Grande Cairo atual deve ter de 13 a 15 milhões de habitantes, ninguém sabe ao certo. Engloba Gizé, na mar-gem ocidental do Nilo, e Heliópolis, além do próprio Cairo, na margem oriental. Conhecida há muito tempo como a 'cidade dos mil minaretes' (torres de mesquitas), Cairo é uma cidade nova, se comparada à civilização egípcia que teve início com os faraós. Construída em 969 pelos árabes fatímidas (xiítas) que então dominaram o Egito, deveu seu nome Al-Qáhirah, que quer dizer 'a vitoriosa', ao fato de aparecer no céu o planeta Marte após a vitória dos novos conquistadores.

O Grande Cairo é dividido pelo famoso Rio Nilo, que corre manso com suas águas azuis, formando algumas ilhas na cidade, sendo a mais famosa a de Gezira, que em árabe quer dizer 'Ilha', onde fica o bairro de Zamalek. Nesse lugar os árabes, durante a dominação britânica, só tinham permissão para entrar para lavar as ruas e conservar os jardins das mansões dos lordes de então. As mansões estão sumindo para dar lugar a arranha-céus, mas algumas dessas enormes casas são ainda utilizadas como sedes de embaixadas ou residências de embaixadores. Em Zamalek destaca-se, hoje, o Clube Gezira, com piscinas, quadras esportivas e extensas áreas verdes para a prática de eqüitação, além de um estádio de futebol pertencente ao time Zamalek. O bairro tem vários templos religiosos, como a igreja católica de São José, com missas em árabe, inglês e francês aos domingos. Há uma catedral anglicana cuja cúpula lembra a catedral de Brasília. A Pizza Hut, em 1991, também se fez presente naquele bairro.


Trânsito caótico no Cairo


Cairo é uma cidade adorável à noite. Durante o dia, ao contrário, o que predomina é o tom amarelado dos prédios sem pintura, cobertos com espessa camada de poeira que vem do deserto. A primeira impressão que tivemos no dia seguinte da nossa chegada à cidade foi a pior possível. Ruas sujas, prédios decadentes, o lixo acumulado nos tetos.

Porém, à noite, Cairo se transforma numa linda oda-lisca, com luzes profusas e até berrantes em todos os pontos da cidade, que se refletem no Nilo preguiçoso por chegar ao Mediterrâneo, e as luzes esverdeadas que contornam os minaretes das mesquitas. Um festival de brilho, luz e alegria, desde os mais humildes bazares, até os luxuosos cas-sinos dos hotéis. Nos barcos borrados de luzes que vagam pelo Nilo, músicas com floreios e mais floreios, executadas em uma escala exótica e estranha aos nossos ouvi-dos, embalam a dança do ventre das famosas bailarinas ára-bes.

O trânsito na capital é caótico. Não é obedecida regra nenhuma. Quem 'embica' primeiro o carro tem a preferência. Ou quem buzina primeiro. O buzinaço é fenomenal e eterno, dia e noite, as buzinas melódicas entrando pela madrugada, como Love Story, A Ponte do Rio Kwai, Susana. Mas é um trân-sito democrático, onde carros de todas as marcas e tamanhos imagináveis brigam pelo espaço com carroças, charretes, bur-ros, cavalos, motos, bicicletas, pedestres e, às vezes, até camelos. Em alguns cruzamentos sem semáforo, na hora do rush, os carros provocam um verdadeiro 'nó' no trânsito. Ninguém consegue seguir, em frente ou em marcha à ré. Os policiais, recrutas na maioria, tentam colocar ordem nessas ocasiões, recebem xingamentos, respondem no mesmo tom, e de-pois de um longo tempo o tráfego flui novamente.

Vez por outra, um rebanho de ovelhas ou cabritos atra-vessa as ruas da cidade, parando completamente o trânsito. Outra cena insólita vista com freqüência são as vacas amarradas a carroças, os bichos sujando a rua com estrume, e atrás, sem poder ultrapas-sar, fagueiro, um reluzente carro zero quilô-metro. Como se vê, o antigo e o moderno convivem pacificamente, sem choques. Com exceção das largas avenidas modernas, as ruas são estreitas e sem calçadas. Quando têm calçadas, elas se tor-nam intransponíveis, com obstáculos de toda espécie. Dessa forma, o povo anda no meio da rua e a gente tem que abrir caminho com a buzina. Como nos filmes de Hollywood, do tipo A Jóia do Nilo. Como se sabe, no Cairo a buzina é tão importante quanto a gasolina.

O Cairo se ressente de uma coleta de lixo eficiente. Há bairros que têm um bom serviço de limpeza urbana, como Mohandeseen e Maadi, porém em muitos lugares o lixo nunca é recolhido, tornando-se foco de procriação de insetos e roedores. A cidade recebeu um prêmio das Nações Unidas, na Eco-92, no Rio de Janeiro, pelo 'desenvolvimento do sistema de coleta, transporte e processamento do lixo na cidade do Cairo' - anunciado com antecedência pelo jornal Al-Ahram semanal de 14-20 de maio de 1992. Deve ter sido mais como um incentivo pela melhoria verificada nos últimos anos do que por resultados efetivos, ainda longe de merecerem elogios.

O Grande Cairo é servido pela água tratada do Rio Nilo. Esse serviço é muito bom nas áreas centrais e nos bairros mais chiques. Porém, na periferia não há água enca-nada. Observa-se muitas mulheres lavando panelas de alumínio no Rio Nilo ou nos fétidos canais que levam a água do Nilo para a irrigação de culturas agrícolas.

Nas ruas é difícil encontrar uma bica de água, mesmo nas regiões centrais do Cairo. Assim, muitos vasilhames com água são deixados nas ruas ou em bares para a população matar a sede. Os vasos são, geralmente, feitos de barro e a lim-peza deixa a desejar, com musgo nas bordas e sem tampas. Uma vez observamos, com curiosidade, uma pessoa se servindo do precioso líquido. Após tomar a água da caneca, o que sobrou foi despejado de volta ao vaso...

Há em torno de 6 milhões de burros no Egito, que pegam pesado no serviço. Os bichos puxam carroças, servem de montaria para tocar os rebanhos, alguns dos quais atravessam as congestionadas ruas do Cairo, giram em volta de rústicas bombas de água utilizadas para a irrigação, como nos tempos faraônicos. O humár (burro) é um personagem muito importante, ainda hoje, na sociedade egípcia.

No Cairo, vez por outra víamos alguns burros - e também cavalos - empacados na subida de algum viaduto, à frente de carroças. Não conseguiam seguir em frente porque a carroça estava cheia de vergalhões de ferro ou até uns 20 sacos de cimento, que estavam sendo levados para algum prédio em construção. O pior é que muitas vezes batiam nas cabeças dos bichos com uma estupidez selvagem.

Chamar alguém de humár é um insulto, pois o termo sig-nifica 'ignorante'. Às vezes, quando éramos importunados, dizíamos humár kibír! (burro grande), para afastar os intru-sos.

Átaba não é um bairro. É um formigueiro humano como eu nunca havia visto. Com inúmeras lojas populares, milhares e milhares de pessoas disputam cada centímetro das ruas com carroças, ônibus velhos e fumacentos, táxis caindo aos pedaços. Trens elétricos não conseguem andar, parando a todo minuto, e por isso andam vazios. Parece que falta oxigênio quando se anda em Átaba. No bairro destaca-se o grande Mercado de Átaba, com o sangue escorrendo das carnes dependuradas nas ruelas e onde patos e perus vez em quando alçam vôos por sobre a cabeça dos transeuntes, os gatos tomando conta de peixarias. O chão, enlameado de água podre, de sangue e fezes de aves.

O comércio no Cairo é extremamente variado, predomi-nando os produtos importados. Tudo o que se imagina é encon-trado nas lojas, vindo principalmente da Europa, Japão, Estados Unidos e dos 'tigres' asiáticos. Produtos brasi-leiros, muito poucos: alguns enlatados de carne Sadia, vi-dros de Nescafé, garrafas térmicas Aladdin (é claro!). Enquanto lá estivemos, fez sucesso a mú-sica Chorando se foi, do grupo musical brasileiro Kaoma. Era uma alegria muito grande ouvirmos nossa língua pátria naque-las paragens distantes.

Além da bandeira brasileira tremulando na Embaixada, na Corniche El-Nil nº 1.125, à beira do Rio Nilo, há ainda outros locais que lembram nosso país: uma agência da VARIG no centro do Cairo e uma lanchonete, a Brazilian Food, ao lado do cinema Metro, também no centro da cidade. Só que a lanchonete não faz jus ao nome: não tem no cardápio nenhum prato brasileiro. Em Zamalek há a Sharia Al-Barazil (Rua Brasil) e pode-se observar alguns carros brasileiros nas ruas da capital, como o 'fusca', a kombi e o passat.


Torre do Cairo - belvedere de 5.000 anos de história


No Cairo encontramos, além das pirâmides, muitos monu-mentos preciosos, como mesquitas, museus diversos, igrejas antiqüíssimas. Assim, em nossa viagem com o tapete persa da imaginação, vamos dar uma rápida parada na Torre do Cairo, para observarmos um pouco a história da cidade e arredores que remontam a milênios. Antes, porém, que tal tomarmos um café turco?

A Torre do Cairo foi construída pelo ex-Presidente Nás-ser e tem 180 m de altura. Plantada na ilha de Gezira, a Torre possui um restaurante giratório no penúltimo piso e podemos observar, de seu cume, a história que lá se conta, não em séculos, mas em milênios.

Da Torre pode-se ver, a nordeste, o prédio onde fica a Embaixada Brasileira, entre o Hotel Ramsés Hilton e a Torre de Televisão, na Corniche El-Nil, cujo significado é 'moldura do Nilo'. A Corniche El-Nil é, digamos, uma Avenida Beira-Rio Nilo e sempre nos servia como ponto de referência quando eventualmente nos perdíamos na cidade. Impressiona o número de veículos que passam pelas pontes que cortam os braços do Nilo, nas ilhas de Gezira e Rhoda, e seguem adiante, num emaranhado de viadutos que enfeiam o centro da cidade. Na realidade, são viadutos que se emendam com as pontes e se superpõem a ruas e avenidas, às vezes com mais de uma dezena de quilômetros, para tentar o impossível, que é solu-cionar o problema do tráfego no Grande Cairo.
Como se sabe, o Cairo e Heliópolis ficam na margem oriental do Nilo e Giza (Gizé), com suas pirâmides, na margem ocidental. Mas na prá-tica não se observa essa divisão administrativa. Tudo agora está engolido pelo Grande Cairo.

A leste da Torre, observa-se a imponência da Mesquita de Muhammad Ali, dentro da Cidadela construída por Salah Ad-din, o Saladino que combateu as Cruzadas. Naquela Cidadela encon-tra-se um museu do Exército, que contém milhares de equipa-mentos bélicos e o espólio da Guerra de 1973 contra Israel. A Cidadela foi também sede de governo de várias dinastias que substituíram Saladino e ainda hoje tem em seu interior órgãos do governo egípcio.

Ao sul, atrás do Hotel Meridien, fica o Cairo Velho. Claro que não são vistas da Torre, mas lá encontram-se o Mu-seu Copta e várias igrejas coptas (cristãs ortodoxas do Egito), que atestam uma fase da época pré-Cairo. Destacam-se a igreja de Mari Girgis (São Jorge) - também nome da estação do metrô, ao lado. Naquela igreja destacam-se os instrumentos de martírio, como sandálias com pregos, que eram utilizados durante a perseguição romana contra os cristãos. Os turistas fazem fila para colocar uma argola de ferro em torno do pescoço, ligada a correntes pesadas, para meditar sobre o quanto os antigos cristãos sofreram para defender sua fé.

Perto da Igreja de São Jorge existe a igreja Al-Moullaq'a (a 'Suspendida'), famosa pelos ícones que possui em suas paredes, e a igreja de São Sérgio, onde há uma gruta que serviu de abrigo à Sagrada Família quando passou pelo Egito. Até hoje há uma pequena comunidade de ju-deus nessa área, um verdadeiro enclave em território muçul-mano. Existe também uma sinagoga com objetos sagrados para os ju-deus, da época de Moisés. Esse o motivo da Sagrada Família ter escolhido aquele local para se abrigar: estava em famí-lia. Durante a Idade Média, a peregrinação até a Terra Santa incluía a passagem pela gruta que abrigou a Sagrada Família.

A nordeste da Torre do Cairo, bem distante e escondida no horizonte, fica a moderna Heliópolis ou Ain Shams (Sol), assim chamada hoje pelos egípcios, com seu aeroporto internacional e largas avenidas. Mas, a antiga Heliópolis, a 'Cidade do Sol', como a chamavam os gregos, era uma das cidades mais sagradas dos antigos egíp-cios e importante centro do saber. Ainda hoje se irradia a cultura humana naquele bairro através da Universidade de Ain Shams. Heliópolis ou a 'On' descrita na Bíblia data do terceiro milênio antes de Cristo. O que restou daquele im-portante centro religioso faraônico é um gigantesco obelisco, construído pelo faraó Senusret em 1700 a.C., que ficava na entrada do Templo do Sol e ainda hoje pode ser visto no local.

Não é difícil imaginar a importância que os antigos egípcios davam ao sol, pela sua inclemência no deserto sem fim, pela vitalidade criada na espessa vegetação do Vale do Nilo. Ao mesmo tempo morte e vida, pavor e adoração. Quando vejo, em Brasília, as pessoas levantando cedo para fazer os exercícios de tai-chi-chuan na Quadra da 105 Norte, espe-rando o momento mágico para se banharem nos raios dourados do sol nascente, não posso deixar de compará-los aos antigos adoradores do sol no Egito.

Junto a Heliópolis, no bairro de Matarya, fica a 'Árvore da Virgem', em frente à Igreja da Sagrada Família. Segundo a tradição, foi lá que a Virgem Maria descansou, refrescou-se com água e lavou as roupas do Menino Je-sus, durante uma primavera, quando em fuga para o Egito.

A árvore encontrada hoje no local é o broto de um sicômoro plantado no século XVII, que caiu em 1906 como resultado de sua avançada idade. De acordo com um escritor árabe da Idade Média, a árvore original era um bálsamo. Em 1992, a Princesa Diana, do Reino Unido, visitou a 'Árvore da Virgem', ocasionando um aumento de peregrinação para aquele local sagrado.

A tradição diz que a 'Árvore da Virgem' já operou vários milagres, como costuma acontecer com lugares marianos sagrados, a exemplo de Fátima, Lourdes e Aparecida. Um homem, ainda vivo, queria usar a le-nha da árvore para reparos em sua casa e ficou paralítico. Patriarcas coptas e sultões muçulmanos, assim como oficiais de Napoleão, teriam utilizado o bálsamo, que crescia em torno da árvore, como ungüento calmante, para ajuda na cura de doenças.

Ao norte da Torre, numa distância de 30 km de carro, o Rio Nilo se divide em dois braços principais, o de Damieta e o de Roseta, e esse local corresponde ao ápice do triângulo que forma o Delta do Nilo. No mesmo local se encontra a bar-ragem de Muhammad Ali, uma moderna obra de engenharia, que eleva e distri-bui a água do Nilo para a irrigação em todo seu Delta, independente do nível de suas águas, em canais de tamanhos decrescentes, como se fossem vasos ca-pilares irrigando o corpo humano. Na mesma região deve-se destacar a grande área verde, que serve de lazer para os cairenses, onde há bicicletas e cava-los a preços acessíveis à massa da população, além de bar-cos com motor de popa e cobertos com toldo para piqueniques no Rio Nilo.

A sudoeste da Torre, quando a visibilidade não é muito prejudicada pela poluição, pode-se observar as pirâmides de Gizé 'contemplando 40 séculos de história' a que se referiu Napoleão. As pirâmides de Gizé e as de Sakara se destacam no deserto solene, enigmáticas, resistindo enquanto podem às tempestades de areia e à poluição do Cairo, e refletindo nossa condição humana, de esperança, na busca da imortali-dade.


Museu do Cairo


O Museu do Cairo, junto à Midan Al-Tahrir (Praça da Li-berdade), é fenomenal pela quantidade de estátuas colossais e objetos únicos no mundo da época dos faraós.

Lá podemos ver o famoso tesouro retirado da tumba do faraó Tuth Ankh-Amon, descoberto em 1922, e o único intacto, já que os outros túmulos foram violados por assaltantes ou exploradores inescrupulosos. Um dos descobridores desse tesouro teve morte misteriosa, reforçando a crença da 'maldição dos faraós', ou seja, quem entrasse primeiro nas tumbas aca-bava morrendo misteriosamente. Hoje, presume-se que a histoplasmose ou 'mal das cavernas', difundida por fungos existentes nas tumbas, teria ocasionado essas mortes. Mas há cientistas que acreditam na possibilidade de emissão radiativa, pelo uso desse material para conservação das múmias. Segundo essa hipótese, os sacerdotes teriam lançado mão de substâncias radiativas, encontradas nas margens do Mar Vermelho, não só para conservar os cadáveres, mas também para punir os violadores das tumbas.

Uma brincadeira freqüente no Egito é atribuir como 'mal-dição do faraó' às dores de barriga, enjôos e disenterias que muitos turistas sofrem quando chegam ao país, devido ao clima inóspito, à água muitas vezes poluída e à comida ex-tremamente carregada em condimentos. Minha família e eu pas-samos também pela 'maldição do faraó' quando lá chegamos, ao tomarmos na rua caldo de cana e suco de manga...

Múmias famosas, como as dos faraós Seti I e Ramsés II (pai e filho, respectivamente), passaram por uma 'recauchutagem' e por isso ficaram longe do público por muito tempo. Dizem que a múmia de Ramsés II, tratada em Paris, se encontra em ótimo estado de conservação. Com a queda do turismo no Egito devido ao ataque dos fundamentalistas muçulmanos a turistas estrangeiros, o Governo reabriu, em 2 de março de 1994, uma sala do Museu que contém 11 múmias, para aumentar o interesse dos egípcios e conseguir as divisas que os estrangeiros não trazem mais. Essas múmias ficaram longe do público desde a década de 70.

O livro Antes dos Tempos Conhecidos, de Peter Kolosimo, conta uma incrível estória sobre a múmia de Ramsés II, no Museu do Cairo: 'Numa tarde particularmente abafada e úmida, o público presente na sala de Ramsés II ouviu forte rangido, seguido de ruído de vidros quebrados e, voltando-se para o esquife do soberano, assistiu a um espetáculo verdadeiramente impressionante: a múmia do faraó, distendida no sarcófago, de repente pusera-se sentada, abrindo a boca como que para gritar, virando de um só golpe a cabeça para o norte, abrindo os braços cruzados sobre o peito e arrebentando com a mão direita a vitrina'. Segundo o mesmo autor, os peritos logo esclareceram o fenômeno: 'A múmia, habituada ao ar frio e seco da câmara mortuária subterrânea, havia simplesmente sofrido os efeitos da mudança climática, reagindo daquela maneira à umidade do Cairo'.

O Museu do Cairo deve sua existência a es-trangeiros, como Champollion e Auguste Mariette. Estes não se conformavam com a dispersão das antigüidades egípcias pelo mundo, incrementada pelos embaixadores estrangeiros no Cairo e tolerada pelos paxás - governantes egípcios contro-lados pelos ingleses -, que consideravam as antigüidades como sua propriedade privada. Basta dizer que a primeira co-leção reunida no Egito foi doada pelo paxá Said, em 1855, ao Arquiduque Maximiliano, da Áustria. Por essa razão, as me-lhores obras - pelo menos as mais bem conservadas - encon-tram-se espalhadas por diversos museus mundo afora. O famoso busto da rainha Nefertiti encontra-se no Museu de Berlim. A Pedra de Roseta, no Museu Britânico. Quando passamos pela Europa, vimos, nos Museus do Vaticano e do Louvre, estátuas e outras obras faraônicas mais bem conservadas que muitas daquelas encontradas no Museu do Cairo.

Além da vasta coleção de múmias e papiros antiqüíssimos, a quantidade de estátuas no Museu é fenomenal. Porém, o número desses objetos é tão grande que não foi ainda feita uma organização adequada para uma visita produtiva ao Museu, apresentando muitos objetos quase que amontoados uns em cima dos outros.

Mariette foi quem, a partir da estaca zero, começou a organizar o Museu do Cairo, inicialmente às margens do Nilo, em Boulak. Além das antigüidades egípcias, começou a reunir as antigüidades gregas e romanas e a arte árabe. As esca-vações no país todo, então, tinham por finalidade preservar o que havia restado da ganância dos colecionadores e dos la-drões. O sonho, enfim, realizou-se com a construção do gran-dioso Museu do Cairo atual, em Midan Al-Tahrir, para onde foram as coleções valiosas instaladas em 1902.


Khan Al-Khalili


O bairro de Khan Al-Khalili (pronuncia-se Hána Halíli, o H aspirado) tem um comércio fervilhante, um must para os turistas que se deliciam com seu comércio rico e variado. Pela sua variedade e quan-tidade de casas comerciais, é considerado o maior bazar do Oriente Médio. Khan, em árabe, quer dizer 'mercado' e Al-Khalili advém do nome de um dos primeiros comerciantes aí estabelecidos.

As ruas de Khan Al-Khalili são estreitas, só cabem os pedestres, e são uma imagem típica de como eram as cidades na Idade Média. É um túnel do tempo, uma volta ao passado, com os mercadores anunciando, em brados altos, seus produtos em frente às lo-jas ou no meio da rua, as mercadorias espalhadas pelo chão. Impressiona o cheiro forte de incenso e da comida carregada em pimenta e não se sabe quantas dezenas de condimentos. As orações islâmicas são declamadas em voz cantada nos alto-falantes das mes-quitas e nos rádios postos a volume máximo.

Khan Al-Khalili é um legítimo 'mercado persa'. Vale a pena você conhecer aquele comércio, mesmo que só pelas imagens das filmadoras. Os produtos em metal são todos estupidamente enormes, com pratos e jarras em cobre e latão de todos os tamanhos imagináveis. Souvenirs há de toda espécie, como cinzeiros, a ankh ou 'chave da vida' - um símbolo faraônico, parecido com uma cruz -, miniaturas de sarcófagos faraônicos, espadins curvos como cimitarras, a sibha ('rosário' islâmico), chaveiros em osso de camelo ou marfim, camisetas com motivos islâmicos ou faraô-nicos, vestimentas para dançarina árabe, galabeyas (túnicas árabes), lenços e túnicas sauditas (em cor branca), o oni-presente papiro, a shísha ('cachimbo' para fumar), o besouro escaravelho (para dar sorte), esculturas rústicas em barro, produtos em couro com motivos faraônicos (agenda, porta-ci-garros, base para copos), enfim, milhares de objetos que en-cantam o visitante.

Um objeto bastante procurado é o cartucho faraônico. Ele pode ser feito para servir de pingente para gargantilhas, brincos ou para anéis mais elaborados. Feitos em ouro ou prata, os cartuchos lembram o poder faraônico, uma espécie de sinete que o soberano imprimia em seus documentos. Utilizando-se de símbolos hieroglíficos, os artífices egípcios da atualidade imprimem os nomes dos turistas nos cartuchos, uma jóia rara para levar de recordação. Muitos papiros são encontrados com desenhos de cartuchos vazios, dentro dos quais são preenchidos, na hora da compra, os nomes de casais com as letras em hieróglifos.

Chamava nossa atenção a beleza e o valor de alguns dos produtos encontrados em Khan Al-Khalili. Dentre eles, pode-mos citar o tabuleiro de xadrez, com base tipo mesa e coberto com madrepérola, e as peças do jogo em marfim, com figuras faraônicas, atingindo valores de 1,5 a 3 mil dólares. Ou o dente inteiro de ele-fante, todo trabalhado em motivo faraônico, também custando a bagatela de 1,5 mil dólares ou mais. De extrema be-leza é também o conjunto de mesa com cadeiras e sofás, todo em ma-deira de lei, com aplicação de madrepérola, atingindo valores de 15 a 20 mil dólares. Há tapetes, em seda pura, de 2 por 3 m, que custam a ninharia de 20 mil dó-lares.

Um produto tipicamente egípcio é a mashrabíya, com acabamento feito em madeira torneada e entrelaçada, comumente utilizada em cadeiras, mesinhas, espelhos de parede, móveis em geral e até em janelas. Muitas dessas peças também são cobertas com madrepérola, com desenhos islâmicos (arabescos).

No Khan Al-Khalili, praticamente todos os vendedores falam pelo menos uma língua estrangeira, normalmente o inglês. Mas há alguns que exageram. Uma vez um vendedor me perguntou, em inglês, se eu preferia que ele falasse em inglês, alemão ou espanhol. Aproveitei para falar um pouco em alemão, que não é o meu forte, embora até os 7 anos de idade só tivesse falado nesse idioma.

Quase toda semana íamos até aquele bairro, a pedido da Nice, minha mulher. Além do comércio, que é mesmo encanta-dor, em Khan Al-Khalili há uma das universidades mais antigas do mundo, a Al-Azhar, fundada em 988, durante a dinastia fatí-mida. Aquela Universidade fornece orientação teológica para todo o mundo muçulmano e seu líder tem poder de in-fluência marcante junto ao Governo egípcio, para assuntos diversos, tanto religiosos quanto sociais. Como sabemos, a vida pú-blica nos países muçulmanos é orientada pela Sharía, o 'caminho que conduz a Allah', que é a doutrina islâmica aplicada à vida da comunidade muçulmana. Na Universidade Al-Azhar estudava um amigo nosso, Anwar Al-Tassa, filho de libaneses radicados em Paranaguá, PR.

No Khan Al-Khalili há trechos de muralhas que cercavam a antiga cidade do Cairo, com alguns portões ainda em bom estado de conservação. A mesquita Al-Hussein, com seus minaretes espetando o céu, tem uma grande importância para os muçulmanos no Egito, que todo ano lá comemoram uma grandiosa festa em honra de Hussein, filho de Fathima e neto do profeta Maomé.

O cheiro forte da comida árabe, na qual predomina condimentos como vinagre, sal, fulful (pimenta), páprica, cominho, salsa, gergelim, alho, cebola, atinge o olfato do turista, que pode escolher no Khan Al-Khalili um prato típico do país para uma farta refeição árabe. Ou se deliciar na rua com uma macarronada servida em prato descartá-vel, com as mãos (sic!), por ambulantes com seus carrinhos.

Em 1991, durante o mês do ramadã - o sagrado mês do je-jum e das orações -, não resistimos quando o povo começou a fazer sua primeira refeição do dia (ifthar), à noitinha, assentado à mesa em todas as ruas e praças de Khan Al-Kha-lili, e pedimos também o nosso 'ifthar'. Com aesh (pão egíp-cio), carne, legumes e outros ingredientes, aquele prato foi indicado pelo próprio garçon como um típico prato egípcio para o desjejum do ramadã. Embebida em pimenta e não sei quantos condimentos mais, aquela refeição fez-me arder até a alma quando comecei a me servir.


As pirâmides de Gizé


Na cidade de Giza (pronuncia-se 'Guiza'), ou Gizé, como conhecemos, agora engo-lida pelo Grande Cairo, ficam as famosas pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos, além da Esfinge. É o cartão postal mais conhecido do Egito. Uma das 7 maravilhas do mundo antigo, ainda hoje é considerado um marco da engenharia humana, para não dizer sobre-humana. As três pirâmides de Gizé e a Esfinge faziam parte da necrópole que cobria vasta área e incluía, ainda, tumbas para funcionários e sacerdotes, além de pirâmides menores para rainhas e filhos dos faraós.

Descomunal e eternamente vigilante, corpo de leão e ca-beça humana, a Esfinge fica de bruços em frente das pirâmi-des, voltada para o sol nascente. Segundo a tradição, ela representa o faraó Quéfren vigiando sua necrópole. A chuva ácida provocada pela horrenda poluição do Cairo já arrancou pedaços do ombro e do nariz da Esfinge, piorando o aspecto daquela figura enigmática 'decifra-me ou te devoro'. Dizem que o nariz da Esfinge foi arrancado por um tiro ordenado por Napoleão quando este invadiu o Egito - o Saddam Hussein da época. Hoje, os cientistas estão se empenhando em salvar o que restou daquela estátua colossal de 57 m de comprimento por 20 m de altura, com obras de restauração, incluindo uma camada envoltória de material plástico para diminuir a ação da po-luição corrosiva.

Há centenas de anos atrás, a Esfinge estava quase toda coberta pela areia do deserto, somente com a cabeça de fora, como pudemos ver em muitas pinturas de época lá no Cairo, feitas pelo pintor David Roberts. Roberts é para o Egito e a antiga Palestina o que foi o pintor francês Jean Baptiste Debret para os brasileiros, ambos presenteando à posteridade ilustrações de paisagens, arquitetura e costumes típi-cos de suas épocas. As antigas enchentes do Nilo, com suas águas chegando próximas às pirâmides de Gizé, também foram registradas por Roberts. Agora, a Represa de Assuã, com seu Lago Násser de 500 km de extensão, controla o fluxo daquele rio, evitando que o vale do Nilo fique parecendo, durante as enchentes, 'um arquipélago do Mar Egeu', como escreveu Heró-doto, quando só as cidades nas elevações ficavam à vista e a extensa planície submersa pelas águas.

As três grandes pirâmides de Gizé serviram de câmara mortuária aos faraós e impressionam pelo exagero de suas di-mensões. Calcula-se que todas as pedras utilizadas no com-plexo das pirâmides de Gizé, incluindo os templos em ruínas e as pirâmides menores, seriam suficientes para construir um muro em torno da França, com 3 m de altura por 30 cm de lar-gura.

A maior de todas, a pirâmide do faraó Quéops, possuía, inicialmente, 146 m de altura e, como as outras, tem as qua-tro faces voltadas para os pontos cardeais. Interessante é observar que há aberturas nessa pirâmide, de um lado e do outro, como se fossem corredores, inclinados para o centro. Quando a luz da estrela Sirius entrava em um daqueles corredores até seu final, iniciava-se o ano novo egípcio. Os astrônomos egípcios descobriram que a estrela Sirius indica-va com mais precisão o princípio de outro ano do que o iní-cio das cheias do Nilo, muito imprecisas de um ano para ou-tro.

A pirâmide de Quéops tem dimensões colossais. Além de seus atuais 137,5 m de altura, possui 230 m em cada lado da sua base, massa de mais de 2.500.000 m³ de pedras, as maiores com até 15 tone-ladas cada. Na câmara mortuária, o forro é reforçado por blocos de granito vermelho de 70 toneladas. Segundo Guiness, o Livro dos Recordes (1994), um orçamento de 1974 indicou que a obra exigiria o trabalho de 405 homens, durante 6 anos, ao custo de US$ 1,13 bilhão. Sem superfaturamento, é claro.

Os vértices das pirâmides de Gizé eram, originalmente, revestidos de ouro, para atrair as bênçãos de Amon-Rá, o deus Sol.

Muitas especulações já se fizeram sobre as pirâmides, algumas evocando seres extraterrestres, que as teriam cons-truído, como o célebre livro Eram os Deuses Astronautas?, de Erich von Däniken. Uma coisa intriga os cientistas até hoje: como foram as pirâmides construídas? Com roldanas, rolos de madeira para arrastamento daqueles blocos de várias tonela-das, rampas de areia para facilitar a subida dos blocos de pedra nas partes mais altas? Infelizmente, não sobreviveu ou não foi feita nenhuma pintura que exemplificasse a técnica utilizada, embora em algumas pedras fossem encontradas ins-crições dos trabalhadores discorrendo sobre o humor e pe-quenas fraquezas do faraó.

Além dessas especulações, as medidas da pirâmide de Quéops servem, até hoje, para instigar a imaginação de muitos estudiosos. Por exemplo, a altura da pirâmide dividida pelo dobro do comprimento de um dos lados da base dá um valor próximo ao 'pi' (3,14...), assim como a altura da mesma pirâmide multiplicada por 10 elevado à nona potência fornece a distância aproximada da Terra ao Sol. Números que, a rigor, não significam nada.

Junto à pirâmide de Quéops foram encontrados barcos funerários, enterrados na areia. Os navios de madeira têm em torno de 55 m de comprimento por 3 m de largura. Não se destinavam a singrar o Rio Nilo mas tinham um fim bem mais nobre: seriam para transportar o faraó reencarnado, após a morte, na companhia de Amon-Rá, o deus Sol, que era seu pai, para acompanhar a viagem que o astro fazia em volta da Terra, como se acreditava então. Um desses barcos encontra-se dentro de uma edificação, a leste da pirâmide de Quéops, com ar-condicionado, para a diminuição da umidade e conseqüente conservação daquela relíquia faraônica. Porém, a solução encontrada para a preservação daquele barco não logrou o efeito desejado. Aos poucos, o barco está se deteriorando.

Durante os dois anos que estivemos no Egito, o interior da Grande Pirâmide estava fechada à visitação. Assim, só conseguimos entrar nas outras duas menores, a de Quéfren e a de Miqueri-nos.
Desce-se, em ambas, um bom trecho, num corredor baixo e bastante inclinado, com muita dificuldade, agachado para não bater a cabeça naqueles blocos calcáreos. Há instalação de pontos de luz, para facilitar a visita dos turistas. No fi-nal, há uma câmara maior, onde ficava a tumba do faraó. Os antigos egípcios criam na imortalidade da alma e por isso todos os objetos de uso pessoal do faraó, sua riqueza em ouro e pedras preciosas, eram enterrados junto.

Na época tinita (Antigo Império), os reis eram enter-rados em mastabas, túmulos em forma quadrangular. A partir da III Dinastia, começaram a ser sepultados dentro de pirâmi-des, como a famosa pirâmide em degraus, em Sakara, construída para sepultar o rei Zoser. As maiores pirâmides foram construídas durante a IV Dinastia, em Gizé. Posteriormente, as câmaras mortuárias dos faraós eram construídas dentro de hipogeus, as famosas tumbas subterrâneas do Vale dos Reis, na margem oeste do Rio Nilo, em Lúxor, antiga Tebas, a exemplo dos fa-mosos reis Seti I, Ramsés II e Tut Ankh-Amon.

Uma crença no Egito é circundar, várias vezes, as câma-ras mortuárias no interior das pirâmides, para receber os fluidos positivos que se concentram naquela parte central da pirâ-mide. Também circundamos várias vezes as salas no interior das pirâmides de Gizé.

Em Brasília, há o Templo da Boa Vontade, uma pirâmide com sete faces, que possui um cristal em seu vértice. As pessoas entram andando por um caminho em caracol e, no cen-tro do Templo, ficam em pé durante um certo tempo para receber a carga de energia que flui do cristal e é amplificada pela pirâmide. É, sem dúvida, a mesma crença que as pessoas têm ao realizar esses atos, em Brasília ou em Gizé.

O auxiliar do adido militar que me precedeu teve bastante coragem ao se deitar em uma tumba aberta, dentro da pirâmide, para ser fotografado. Como as coisas, depois, andaram meio ruins para ele, coincidência ou não, tratou de destruir a foto.

José Acúrcio, o 'José Português', que trabalhava na Embaixada de Portugal, no Cairo, tinha 'adotado' Zibala (em árabe, 'lixo'), um cão encontrado numa lixeira do Cairo. O cão (em Portugal, cachorro se chama cão) sofria de uma alergia na pele que não sarava nunca. Resolveu então o seu dono levá-lo para dentro da pirâmide, para ver se a força da mesma curava o animal, já que nenhum veterinário havia conseguido o intento. Num final de semana, teve que levantar cedo para encontrar a pirâmide ainda sem o movi-mento dos turistas e pagar o bakshish (gorjeta) aos segu-ranças para entrar na pirâmide com o cão. Porém, Zibala con-tinuou com aquela doença e só foi curado mais tarde quando um outro veterinário fez uma biópsia e aplicou uma vacina adequada.

Tanto na área das pirâmides de Gizé, quanto nos túmulos subterrâneos do Vale dos Reis, em Lúxor, não há uma infra-estrutura que dê apoio aos turistas. Não se vêem lanchonetes nas imediações, não há folhetos explicativos sobre os monumentos e beduínos ficam importunando os visitantes que não se fazem acompanhar por guias turísticos.

Nos livros de História, conhece-se apenas as três gran-des pirâmides de Gizé. Porém, numa extensão de 70 km, na-quela região, há mais de 80 pirâmides, muitas delas quase tão colossais quanto as de Gizé.

Há algumas pirâmides na região de Sakara que já viraram um monte de areia. E a tendência, no futuro, é que todas aquelas pirâmides do Egito virem pó. É só uma questão de sé-culos. Ou, no máximo, de mais alguns milênios.

As pedras utilizadas na construção das pirâmides são muito porosas, de formação calcárea, o que facilita a erosão, agora acele-rada com a chuva ácida que cai no Grande Cairo, devido à elevada poluição provocada pelo alto teor de chumbo no ar por causa do tipo de gasolina utilizada e pela má conservação dos motores dos automóveis. Acrescente-se a isso os subúrbios de Maadi e Helwan, ao sul do Cairo, com suas usinas de cimento e outras plantas industriais, e teremos os vilões que mais rapidamente estão reduzindo a pó uma das maravilhas do mundo antigo.

Uma filmagem em close, que fizemos de uma das faces da pirâmide de Quéfren, nos mostra claramente como aqueles enor-mes blocos de pedra estão se esfarelando.


A língua árabe


O árabe é um idioma cujo alfabeto é inteiramente dife-rente do nosso, com 28 letras (14 solares e 14 lunares), incluindo as vogais 'a' (álif), 'i' (iá) e 'u' (uáu). Os caracteres árabes, para nós ocidentais, são tão estranhos e impenetráveis quanto os caracteres japoneses ou os hieróglifos da época dos faraós.

O idioma árabe clássico é somente utilizado para a escrita. É a língua do Corão. O árabe popular varia de país para país, como o português em Portugal tem um acento e um vocabulário ligeiramente diferente do utilizado no Brasil.

Os árabes escrevem e, naturalmente, lêem da direita para a esquerda. Os livros, cadernos, agendas, começam do fim para o começo, diferente do nosso costume. Dizem os árabes que há uma lógica em se escrever da direita para a esquerda: quando você pega a caneta com a mão direita, a po-sição natural para escrever é a partir da direita. A pena da caneta já cai diretamente no lado direito e você vê clara-mente o 'caminho' a percorrer com a caneta, que fica livre, sem o obstáculo do punho para a visão.

A maior parte das letras tem uma grafia diferente, de-pendendo se está no início, no meio ou no final da palavra, ou, ainda, se estiver de forma isolada. Não existe letra maiúscula, nem pontos ou vírgula. Coca-Cola, na translite-ração, torna-se 'cuca-cula'. Como se disse, não há letra 'ó' nem 'é'. Dessa forma, o correto seria escrever 'Muhammad' (Maomé) e não 'Mohammed', como se observa em livros e jornais com caracteres latinos. Cairo se pronuncia 'Al-Qáhirah'. Pelé vira 'Balá'. Não existe a letra 'p'. Por isso, escreve-se Áli Bába (Papai Áli), o conhecidíssimo Ali Babá. Na copa do mundo, na Itália, na troca de jogadores brasileiros, o locutor anunciou a saída de 'Caríca' e a entrada de 'Bibítu'. O jogador Alemão virou 'Alimau' e a Cristiane, minha filha, perguntou: 'Ué, o animal também está jogando?'.

A língua portuguesa herdou muitas palavras árabes, pela influência da dominação dos mouros na Espanha e em Portugal, a exemplo de 'fatura', 'bazar', 'xerife'. Muitas palavras que começam com 'al' têm origem árabe: alface (al-khas), alcaide (al-qaid), algarismo (al-khuarizmi), álgebra (al-jabrâ), almana-que (al-manakh). Alfarrábio vem de Al-Farabi, filósofo árabe, e tem o significado de livro antigo, volumoso. 'Sala-maleque', palavra que quer dizer 'excesso de reverência', teve origem na saudação árabe salam alikum (a paz esteja contigo). Intchaalá (se Deus quiser), ex-pressão usada em toda conversação árabe, deu no nosso 'oxalá', segundo me garantiram.

O 'l' do artigo 'al' é substituído pela primeira letra dos substantivos que iniciam com uma letra solar, fundindo-se o artigo e o substantivo em uma nova palavra, como por exemplo, assahra (o deserto), em vez de al-sahra. O mesmo acontece com assukkar (açúcar), annil (o Nilo) e arruz (arroz). Observa-se no Egito, muitas vezes, o uso do artigo 'el' ao invés do 'al', que seria o correto, a exemplo de El-Mohandeseen, o bairro onde morávamos. 'El-Mohandeseen' é a transliteração para o inglês. Para o português seria 'Al-Muhandisín'.

O correto seria falar 'o Corão' (Al-Quran) e não 'o Alcorão'. Você estaria duplicando o artigo 'al'. Mas sabemos que a linguagem falada é a que predomina na formação de um idioma e por isso é também correto dizer 'o Alcorão', se-gundo mestre Aurélio. Dizer 'Deserto do Saara' também é falho, já que 'saara' (do árabe sahra) quer dizer 'deserto' - por sinal, o deserto por excelência, o deserto de todos os desertos.




Três calendários no Egito


Os antigos egípcios foram os primeiros a inventar um calendário solar. Eles formaram o ano solar com 12 meses de 30 dias cada, mais um mês nanico com 5 dias somente. O ano novo faraônico começava quando a estrela Sothis (Sirius) lançava seus raios no interior do túnel aberto na Grande Pi-râmide (de Quéops), até o seu final, o que normalmente ocor-ria no início das cheias do Nilo. Anteriormente, apenas as cheias do Nilo serviam como indicativo do ano novo egípcio. Porém, com o avanço da astronomia no Egito antigo, passaram a observar que a estrela Sirius lhes fornecia uma data mais precisa do início do ano. Além de Sirius, a estrela Polar também servia como um parâmetro mais exato. Embora não tivessem adotado o ano bissexto, que utilizamos hoje em dia, eles tinham noção dessa diferença e a cada 4 anos corrigiam o erro.

O ano dos antigos egípcios era dividido em 3 estações de 4 meses: estação das cheias do Nilo (Akket), estação das semeadas (Pert) e estação das colheitas (Shemu).

No Egito atual coexistem três calendários: o gregoriano que conhecemos no ocidente, derivado do calendário romano, o islâmico e o copta. A exemplo do calendário gre-goriano, o islâmico e o copta têm também 12 meses.

No dia-a-dia, os egípcios adotam o calendário grego-riano. Os outros calendários são lembrados nas festas reli-giosas pelos muçulmanos, como o nascimento de Maomé e o mês do ramadã, e pelos cristãos coptas, que têm algumas festas iguais às nossas, como a Páscoa e o Natal, porém em datas diferentes.

Os coptas, que se dizem descendentes dos antigos egíp-cios, tiveram origem com São Marcos Evangelista, que intro-duziu a religião cristã no Egito e foi o seu primeiro Patriarca. Na época em que os romanos do Oriente (bizantinos) dominavam o Egito, a religião oficial era a cristã copta. Os termos 'copta' e 'egípcio' são idênticos em seu significado e ambos são derivados da palavra grega aigyptos.

Quando o Egito era dominado pelos imperadores estabele-cidos em Roma, os coptas sofreram duras perseguições e houve muitos mártires. A época mais crítica aconteceu com o impe-rador Dioclesiano, que começou a governar em 284. Por isso, o calendário copta começou em 29 de agosto de 284, que é para os coptas o ano 1 A.M. (Anno Martiri). Esse calendário tem 11 minutos e 14 segundos a mais que o ano solar que utilizamos. A diferença acumulada desde então causou um atraso, até hoje, de 13 dias. Por isso, o Natal copta não é comemorado em 25 de dezembro mas no dia 7 de janeiro. Daqui a alguns anos será no dia 8 de janeiro, depois no dia 9, e as-sim por diante.

Os nomes dos 12 meses coptas provêm dos antigos egípcios e são os seguintes: Tût, Bâbah, Hatûr, Kiak, Tûbah, Amshîr, Baram-hât, Baramûdah, Bashans, Ba'ounah, Abîd e Misrâ. Tût (setembro-outubro), por exemplo, tem seu nome emprestado do deus Thot. Hatûr (novembro-dezembro) comemora a deusa Ha-thor, que nos desenhos faraônicos aparece como uma figura feminina com chifres e um disco solar na cabeça, ou como uma vaca, e era o símbolo da fertilidade no antigo Egito. Misrâ deu origem à palavra Misr, que significa Egito.

O ano 1412 do calendário islâmico iniciou no dia 13 de julho de 1991, quando estávamos no Egito. O ano 1 muçulmano começou com a Hijra (Hégira), em 622 de nossa era. Hégira significa 'emigração', a fuga de Maomé de Meca para Medina. O ano islâmico é lunar e tem 354 dias, 11 dias a menos que o nosso - uma diferença, desde seu início, de mais de 42 anos. Por exemplo, o dia 30 do mês de ramadã do ano muçulmano 1414 equivaleu ao dia 13 de março de 1994.

A Guerra do Ramadã, como é conhecida no Egito a Guerra do Yom Kippur, de 1973, começou em 6 de outubro. Como se ob-serva, as festas móveis variam muito com o correr dos anos. Imagine o sacrifício que os árabes fazem quando o mês do ramadã, o mês do jejum e das orações, cai em pleno verão, quando não podem sequer beber água durante o dia.

Os meses do calendário islâmico são os seguintes: Muharram (29 dias), Safar (30 dias), Rabia I (29 dias), Ra-bia II (30 dias), Jumada I (29 dias), Jumada II (30 dias), Rajab (30 dias), Shaaban (29 dias), Ramadã (30 dias), Shawwal (29 dias), Dhu'l-qa'da (29 dias) e Dhu'l-hijja (30 dias).

A 'vantagem' é o acúmulo de feriados que esses três ca-lendários oferecem aos egípcios. No final do ramadã, há o feriado do Pequeno Bairã, com 4 dias de festas. O Grande Bairã, que marca a etapa final da peregrinação a Meca e a Aid El-Adha (Festa do Sacrifício), relembrando que Abraão quase sacrificou seu próprio filho, também tem um feriado prolongado e acontece no último mês muçulmano, o mês de Dhu'l-hijja. O Mawlid Al-Nabi é feriado porque lembra o dia do aniversário do Profeta Maomé. O 1º dia do mês islâmico de Muharram marca o Ano Novo muçulmano e os primeiros 10 dias desse mês são considerados sagrados, particularmente o 9º e o 10º, dias de jejum. O dia 24 de abril é feriado, em comemoração à data da devolução do Sinai ao Egito, que Israel fez em 1982. O dia 6 de outubro, início da Guerra do Ramadã, e o dia da revolução de 1952, 26 de junho, também são datas festivas. A Páscoa copta é comemorada em 2 dias, uma semana depois da nossa Páscoa.

Além desses feriados todos, os egípcios ainda têm o Wafaa El-Nil, uma festividade que remonta à época faraônica, quando moças virgens eram lançadas no Nilo como agradecimento aos deuses pela fertilidade que o rio trazia e a abundância que dava ao Egito. Na época faraônica, um juramento era dado por todos os cidadãos frente aos deuses de que não iriam, em hipótese alguma, poluir ou sujar o Nilo. Muitos egípcios hoje criticam a poluição do Nilo dizendo que é difícil acreditar que sejam descendentes dos faraós.

Há ainda a festa do trigo, criticada na imprensa pelo fato de não simbolizar mais nada, pois o Egito importa 2/3 da alimentação que consome, incluindo trigo. Os funcionários públicos do Egito ficam agradecidos com tantos feriados. Como compensação por tantas festas, nós trabalhávamos na Embaixada nos dias 21 de abril, 7 de setem-bro, 12 de outubro e 15 de novembro. E na Páscoa, folgávamos somente na dos coptas.

O Bairã - também sinônimo entre os árabes de festivi-dade ou feriado nacional - é o dia das mulheres e das crian-ças receberem roupas novas e coloridas, sapatos e muitos presentes, assim como é costume no Ocidente recebermos pre-sentes por ocasião do Natal. O contínuo Salah, que traba-lhava na aditância militar, chamava o Natal de 'Bairã de Jesus'.

Nessa confusão de calendários e datas, é bom lembrar que o nosso calendário não é menos confuso. Ao menos no que diz respeito a seu início.

O calendário gregoriano derivou-se do romano e foi posto em prática muito tempo depois do início de nossa era. Pesquisas posteriores comprovaram que Jesus não nasceu no ano '0' de nossa era e sim '4 a 7 anos antes de Cristo'. Hoje, sabe-se que Cristo morreu em 29 d.C. e, para ter então 33 anos de idade, só poderia ter nascido em '4 anos a.C'. Porém, se o erro foi de 5 anos, já teríamos entrado no Terceiro Milênio. O que comprova que os números nada dizem. Servem só para enganar os tolos. Prepare-se, caro leitor, para encarar a enxurrada de livros 'proféticos', 'apocalípticos' e da 'nova era' que irão aparecer nas livrarias deste fim de milênio.

Na mudança do calendário romano para o grego-riano, o início do ano foi adiantado por um motivo bastante singelo. Era para empossar, com antecedência, alguns políti-cos na sociedade de então, dominada pelo poder da Igreja. Como se vê, quando se meteu em política, a Igreja sempre se corrompeu.


Obs.: Não deixe de ler também 'Egito - costumes e curiosidades', de minha autoria, acessando www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=3796&cat=Ensaios. Chucrán!





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