(peço perdão, mas editei aqui antes de fazer a história... gostaria de saber o que vc acha sobre esse romance... escreva)
Ainda é difícil contar essa história, mas é algo que fez parte de minha vida e não sei mais como esconder. Tudo começou em julho de 1999. Enquanto meus pais estavam pensando em viajar para o Sul, eu me divertia com a idéia de ficar em casa sozinho. Quantas festas eu não faria durante a ausência de meus pais? Já havia combinado (praticamente tudo, desde bebidas, até que horas terminar) com todos amigos do colégio e da rua. Mas uma surpresa derrubou tudo: Haviam me inscrito em um curso de aprimoramento em informática que ocorreria em São Paulo. De início não acreditei, principalmente pelo fato de terem me inscrito sem, ao menos, me avisarem; e quando aceitei, tornei-me um rebelado, não queria ir de maneira nenhuma. Não sabia como fazer isso, mas não ficaria. Eles, por fim, aceitaram que eu ficasse se minha avó viesse de Minas ficar comigo. Imaginei por um tempo, passar todo aquele tempo com aquela senhora impaciente, chata (até hoje acho que não gosta de mim...), enxerida e tudo mais. Parei para pensar no assunto, mas acabei rejeitando esse papo de ficar com a velha. Prometi que colocaria uma bomba no prédio e destruiria todos os computadores daquele lugar, mas nada adiantava. Parecia que eles sabiam. Mais tarde, lá no curso, descobri que três dos meus amigos deixaram fugir o que havíamos combinado.
Levaram-me até a sala e colocaram-me no sofá. Tentaram mostrar-me como aquilo seria bom para mim, podendo mudar minha vida, minha condição de viver. Na época, eu era daqueles que nem o diabo queria por perto. Não dava atenção para nada, rock era o que havia para mim, até gostava de ler, mas não aceitava isso na frente dos meus amigos. Além disso, era um fanático por computação. Amava programar, tentando entender tudo. Mas aquilo era longe demais. Eram duas semanas longe de meus CDs e do meu quarto. Eu ficaria confinado com mais uns mil e duzentos participantes, entre eles, aqueles que só sabem estudar, não sabem o que é diversão. Aquela manhã, fui colocado contra a parede. Não tinha escolha, eu fui obrigado pelos meus próprios pais, obrigado a sair de minha própria casa por duas semanas horríveis.
Saí numa sexta-feira, pela manhã. Levaram-me para a rodoviária praticamente carregado. Fiquei em situação tão absurda que cheguei a prometer que iria fugir no caminho. Meu pai prometeu que, se eu fugisse, nem precisava mais ligar para casa. Foi então que tudo fez sentido pra mim. Entrei revoltado e sentei num canto: era minha última saída. Meus pais não me agüentavam, minha irmã (um ano e meio mais nova do que eu) tinha ódio de mim, mas ainda insistia que eu fosse, que eu me endireitasse. Mas segui a viagem sabendo que nada ocorreria comigo mesmo. Eu não era usuário de drogas, não bebia, não fumava, mas gostava de música alta e minhas coisas do meu jeito (bagunçadas, como minha mãe falava). Eu já havia sido expulso de dois consultórios psiquiátricos e de um dos melhores colégios de Brasília (foi onde morei por 17 anos). Sempre tive notas maravilhosas, mas nunca consegui me adaptar à idéia de estudos forçados. Gostava de idéias próprias, de saber de tudo que girava ao meu redor. Isso havia me tornado em um hacker no mundo informal da internet.
A viagem foi tranqüila, um pouco demorada, mas importante para dar-me certo tempo para pensar sobre o que aquilo seria para mim. Na maioria do percurso, viajei sozinho, mas, já em Minas, uma senhora sentou-se ao meu lado. Puxou uma conversa simples, acabamos sendo bons amigos. Mas o que fiquei mais impressionado foi com uma frase que ela me disse:
- Na vida, temos diversos “amores”, diversas coisas que acabam por roubar nosso coração. Mas quando um deles é colocado sobre todos os outros, este te guiará até o final de sua vida.
Fiquei calado por um tempo e acabei abrindo a boca apenas para dizer “tchau” ou algo parecido, nem me lembro direito, era minha parada (e, sejamos sinceros: quem não fica pensativo depois de uma dessas?).
Mal desci do ônibus e fui recepcionado por um senhor de uns quarenta anos, calvo e um pouco gordo. Contou-me que meus pais haviam ligado e contaram como eu era e que horas eu chegaria. Pegou minha mala e levou-me ao estacionamento. Era meio tímido, mas até me fez rir. Disse que seria uma experiência para mim e foi muito sincero quando me disse que tudo seria como eu quisesse, ou seja, eu só mudaria se eu estivesse interessado. Andamos por uns quarenta minutos e chegamos numa fazenda. Quando fiquei sabendo, disse que odiava o campo, mas não era bem assim. Era um lugar construído exatamente como eu não imaginava. Havia alojamentos por todos os lados, o auditório ficava no meio com sua complexa arquitetura, além do laboratório de informática parecendo um centro de inteligência naquele prédio de quatro andares (no térreo e no primeiro andar ficavam dois enormes auditórios; no segundo e no terceiro ficavam os mais de cinqüenta laboratórios com computadores de última geração e no quarto andar ficava uma biblioteca). O refeitório também era demais, junto com uma lanchonete que havia ao lado. Fiquei, de certa forma entusiasmado com o lugar. Tinha até um lago ao lado do meu alojamento com um lugar para caminhada, bem gramado. O senhor, que descobri ser um tal de Jota Aventura, mostrou-me o quarto onde ficaria. Como cheguei atrasado, eu ficaria sozinho (o dormitório era para dois), a não ser que aparecesse mais alguém. Deixou-me sozinho para tomar um banho, descansar um pouco. Após a janta, dariam início à conferência. O quarto até era bem confortável, bem mobiliado, com banheiro próprio, chuveiro quente, mas o meu susto foi, ao abrir minha mala, ver que aquelas não eram minhas roupas: minha mãe havia comprado roupas novas. Fiquei revoltado. Não eram roupas como aqueles outros “nerds” usavam, mas nada se pareciam comigo. Corri ao refeitório e liguei para meus pais. Eles me contaram que haviam queimado minhas blusas e meus CDs e que eu teria que me virar com aquela mala mesmo. Quase quebrei o telefone, mas não sou dessas coisas. Desliguei na cara deles e fui para meu quarto. Pensei em rasga-las todas, mas lembrei das palavras de meu pai. Procurei o que mais se parecia e vesti para a janta, depois do banho.
Fui o último a chegar no jantar. Entrei sob o olhar de todos, inclusive por uns garotos que estavam na direita, sentados como os senhores do lugar (fiquei sabendo que pelo menos nove dos doze ali sentados eram filhos de deputados ou pessoas de extrema influência). Preferi não arranjar problemas, por isso me sentei do outro lado, ao lado de uma jovem. Começamos uma conversa aberta e sincera. Ela também fora forçada a ir, mas o motivo era outro: seus pais eram pessoas influentes em Florianópolis (Floripa, como ela disse). Teríamos conversado ainda mais sobre nós, se não fosse um tal de Beto invadir nossa conversar com seu ar de superioridade:
- Você não precisa se unir a estes seres repugnantes se não quiser. – disse à Fernanda, olhando-me nos olhos, ao se referir ao fato de sentar-me ao lado dela.
- Se não quiser arranjar problemas, deixe-nos em paz. – respondi, levantando-me com os punhos apoiados sobre a mesa.
Antes que pudéssemos continuar qualquer ar de confusão, o senhor Jota entrou no meio, apartou-nos e levou-me para fora. Disse aquilo que todos nos dizem nessas horas, mas contou-me algo que não sabia: o Beto já havia pedido Fernanda em casamento umas três vezes, mas nunca fora correspondido. Nisso até que concordei com ele: ela realmente era maravilhosa. Prometi que iria mudar a começar pelo cabelo, mas não aceitaria ninguém me fazendo de idiota. Ele topou e seguimos para o auditório. A primeira palestra até foi interessante. Foi-nos dito como poderíamos usar o lugar, desde os alojamentos, até a biblioteca e os laboratórios. Ainda à noite encontrei Fernanda novamente, que acabou me convidando para passear em volta do lago pela manhã. No outro dia acordei até cedo, tomei um banho e desci. Ela apareceu depois de uns cinco minutos, linda (até fiquei bobo) e andamos um pouco. Acabamos parando na lanchonete para conversamos mais, principalmente sobre nós. Vimos nossas semelhanças e nossas diferenças. Ríamos de quase tudo. Ela tinha um sorriso que não me escapava sequer um minuto. Rodamos mais um pouco. Ela me convidou para passar pela barbearia. Como o barbeiro ainda não havia chegado, ela propôs cortar meu cabelo. Enquanto ela arriscava um corte, tentei saber mais sobre sua história com o Beto. Era alguém que ela odiava (meio caminho andado, não acha?). Até que o corte curto ficou legal, mas precisávamos ir rápido: iríamos perder a palestra da manhã.
Sentamos lado a lado. Enquanto o palestrante contava sobre a história de alguns famosos no ramo da informática, ela me contava sobre seus projetos, seu futuro. Era apaixonada por matemática e até prometi um jogo de xadrez. Tinha ideais diversos, mas o que mais me interessou foi sua noção de futuro. Não queria ser influente como seus próprios pais ou rica como quase todos os outros participantes que ali estavam. Ela queria alguém, alguém que a faria extremamente feliz. Foi a última coisa que pude ouvir até sermos interrompidos pelo idiota da recepção. Acabamos por ter que prestar atenção até o fim da palestra. Ao final, combinamos nos encontrar no refeitório para almoçarmos juntos. Fui ao quarto deixar minhas coisas. Quando estava saindo, fui barrado na porta por Beto e mais três amigos dele. Ele ria e dizia que eu havia cometido um erro ao mexer com a garota dele. Colocaram-me contra parede e, sob socos e chutes, acabei no chão. O espancamento durou uns sete minutos, sendo que só chegaram a me tirar um pouco de sangue, apesar da boca rachada, e deixaram alguns hematomas. Mas não conseguia sequer erguer (um soco bem dado na altura do estômago é de deixar qualquer um no chão mesmo), até ser atendido pelo próprio Jota e levado à enfermaria. Por mais que ele me perguntasse quem tinha feito aquilo, eu não respondia. Queria apenas me vingar, devolver-lhe tudo o que me fez naquela manhã. Era uma questão que ultrapassava meus instintos, por mais violentos que fossem. Passei a tarde em repouso e na palestra da noite, sentei com um supervisor.
A partir daquele dia pensei em perseguí-lo. Queria pegá-lo num momento de desatenção e devolver-lhe a surra que recebi. Quase não vi mais a Fê, apenas nos momentos de refeições e nas palestras. Aqueles três o seguiam para todo canto. Por mais que eu o quisesse sozinho, eu jamais conseguiria, era impossível. Decidi esquecer temporariamente isso e voltei minha atenção para Fernanda. Ela estava cada vez mais bonita, mais bela. Praticamente não nos largávamos, principalmente porque ela suspeitava que tudo fora uma armação do Beto. O tempo que passamos juntos era inigualável. Não conseguia imaginar-me longe dela. Mas o que mais me constrangia era saber se ela sentia o mesmo por mim. Eu nunca tive uma experiência dessas e agora não sabia como agir. Como gostaria de ser a pessoa que ela tanto procurava. Não sabia como, mas isso não se tornou motivo para nos separarmos. Pelo contrário, quanto mais a conhecia, mais se tornava misteriosa. Fomos à biblioteca, ela queria pegar um livro para ler a noite. Aproveitei e acessei a internet que lá havia, mandei uns e-mails e recebi apenas um dos meus pais. Respondi, contando-lhes sobre a Fê, sobre a briga e sobre o lugar. Foi meio estranho, mas aceitei que havia gostado do lugar. Já a Fê entrou também, depois de mim (só havia ali um computador com conexão, apesar de todos laboratórios possuírem os seus). Lembro-me que ela pediu meu e-mail, para podermos nos falar diariamente. Em vez de dar-me o dela, mandou um e-mail para mim com o título “Teste” para que depois eu pudesse gravar o e-mail dela. Levantamo-nos e saímos pelas escadas. Chegamos atrasados na palestra, mas nada que poderia nos comprometer. Tiramos o tempo para pensarmos em projetos juntos e víamos a oportunidade dela mudar-se para Brasília. Dessa vez, o moço da recepção não nos chamou a atenção: foi o próprio Jota que, inclusive, me levou para fora e tivemos uma boa conversa. Eu até gostava dele e falava-lhe abertamente. Ele foi o único dos coordenadores que não me tratou com indiferença, ele se preocupava comigo e eu o respeitava. Tornamo-nos bons amigos. Era daquele tipo que não fazia a cabeça pelo dinheiro, mas preocupava-se com o interior daqueles que ali estavam. Conversamos sobre a Fê por um bom tempo. Eu sabia que estava me enroscando com coisa séria, mas eu a amava. Incrível! Eu nunca esperava falar isso para ninguém, nem para meus pais eu diria, mas naquele momento tive que ceder a um verdadeiro amigo. Eu nem acreditei e pedi que ele não dissesse nada a ninguém e cheguei a ficar até sem graça, mas era a realidade. Eu havia achado a minha metade, como muitos dizem. Voltamos e pegamos só o fim da palestra. Ele me liberou o acesso ao laboratório central, pois meus projetos (inclusive um sobre programação que ele ficou impressionado) necessitavam de programas mais complexos. Após a palestra fui comer com a Fê na lanchonete, não estávamos a fim de almoçar direito e fomos direto para o laboratório central. Era um lugar muito bem adaptado para nossos projetos. Conversamos um pouco antes de iniciarmos e após digitar um pouco, fiquei mais convencido do que eu queria: ela era espetacular, muito inteligente, com alta capacidade de trabalhar no mundo da informática. Eu não imaginava que alguém conseguiria mexer tão bem com um computador, muito menos uma garota (realmente eu precisava mudar algumas de minhas concepções, principalmente com relação às mulheres). Fizemos primeiro um esboço para apresentar para o senhor Jota, pedindo a liberação de alguns horários (como depois do almoço havia um horário para práticas em grupo) e permissão para alguns donwloads (abaixar arquivos ou programas pela internet) ou por CDs (precisaríamos arranjar na cidade). Imprimimos e saímos rapidamente. Levamos o esboço para a sala dele. Disse que ia pensar com os outros coordenadores do evento.
A noite chegou rápido. Fui ao quarto e peguei minhas coisas. Antes que eu chegasse ao refeitório, o Jota me parou e disse quão satisfeito estava com o projeto. Disse que ia à cidade e queria que eu fosse junto. Perguntei se eu poderia levar a Fernanda para me ajudar, ele disse que não e pediu desculpas porque o carro estava cheio. Fui ao refeitório correndo e a encontrei me com ela que já estava me esperando. Pedi desculpas por não poder janta com ela e contei o que iria fazer. Ela ficou extremamente feliz por terem aceitado o projeto. Mandou-me ir rápido para não perder a carona e passou-me alguns nomes de programas que eu sequer sabia. Deu-me um beijo na bochecha e saí. Jota, que havia visto o beijo, chegou a dizer que eu já havia ganhado a parada. Ri e entrei no carro. Na cidade, fomos ao shopping e visitei várias lojas. Achei todos os CDs necessários e os que a Fernanda me passou. Demoramos mais um pouco, ele até me levou para fazer um lanche. Não comia hambúrguer há muito tempo. Inclusive até dei a idéia a ele de substituir a janta por um lanche. Ele gostou da idéia e perguntou-me sobre a fazenda, o que eu poderia inovar, acrescentar ou tirar, tudo para proporcionar o melhor ambiente para uma boa educação de seus participantes. Aproveitei para abrir o verbo, contando tudo que eu via de errado. Acabei entrando no assunto do Beto, como eu queria apenas uma oportunidade para acertar minhas contas com ele. Foi aí que entrou o lado dele em que eu sempre confiava. Ele me fez pensar sobre o assunto. Para que me vingar, se só o fato de estar com a Fernanda já o deixava uma fera?! Nisso ele me perguntou se já havia rolado alguma coisa entre nós. Eu disse não com certa timidez, dizendo que eu não sabia se era eu a pessoa certa pra ela. Ele puxou minha orelha e disse que eu estava demorando muito. Eu disse que não saberia como tomar a atitude adequada, afinal, nunca tive uma experiência. Quando ele contou a história dele, não adiantou nada, pelo menos me fez rir. Voltamos rapidamente, pegamos o final da palestra e fomos para o chá. Encontramos a Fernanda e mostrei-lhe o que trouxe. Quase fomos para o laboratório para testarmos, mas o Jota nos impediu. Dei um beijo nela e fui para o alojamento. Antes de nos separarmos, o Jota deu-me aquela olhada básica, como se eu queria algo com aquele beijo (é... até que eu queria). Fui dormir cedo, mas demorei a pegar no sono. Parei aquela noite para pensar como eu diria a ela que eu a amava. É nesse momento que a timidez não presta. Rolei por um bom tempo, mas não vinha nenhuma idéia.
Ao acordar, fui dar uma volta pelo lago. Tirei aquela manhã para correr sozinho. Eu havia emagrecido um pouco e minha aparência estava bem melhor do que quando havia chegado. Enquanto corria, pensei como aborda-la. Fiz diversas frases, quase compus um poema e não estava satisfeito. Quando me toco, ela estava correndo do meu lado. Que vergonha! Quase morri do coração. Ela perguntou porque eu estava falando sozinho, fiquei calado por um bom tempo. Pensei em falar algo, mas o grupo de Beto passou por nós. Barram nossa passagem. Beto tirou, com o braço, Fernanda do meu lado (um dos três a segurou enquanto tudo ocorreu). Ele veio na minha direção e começou a me empurrar, dizendo que eu estava encrencado. Nunca fui de briga, mas nunca imaginei que seria capaz de dar um gancho tão perfeito de direita na cara dele. Corri e encaixei meus ombros na barriga dos outros dois e os joguei contra uma parede. A Fernanda pisou no pé do último que ainda permanecia em pé e deu-lhe duas cotoveladas, uma na barriga, e outra no queixo. Começamos a correr. Não sabíamos o que fazer direito. Mas eu ainda não havia me vingado. Fomos ao Edifício Geral, contando com a sorte para nos sairmos bem. Ao entrar, decidimos nos separar. Ela foi para biblioteca e eu, para o andar dos laboratórios. Beto a seguiu e os três vieram atrás de mim. Para o azar deles, eu conhecia cada canto dali. Fui ao laboratório central, entrei pela porta dos fundos e corri para a porta central. Mal a tranquei, eles apareceram do outro lado. Corri e tranquei a dos fundos, além de desligar a força do andar. Agora, o assunto era outro. Ai daquele mala se tocasse um só dedo na Nanda. Ao subir, encontro-os próximo ao elevador. Caminhei lentamente até eles. Quanto mais eu me aproximava, mais eu podia ver o medo nos olhos dele. Fui me achegando. Ele segurou-a com o braço na altura do pescoço. Eu estava com tanta raiva que seria capaz de espanca-lo com ela na frente. Fui com toda cautela para que nada acontecesse. Quando cheguei numa posição ainda estável, Fernanda deu-lhe uma mordida no braço e correu para o meu lado. Desculpe-me os mais defensores pela paz: nunca amei tanto o ato de espancar alguém. Naquele momento, descobri o quanto ele era fingido, falso e vulnerável. Só parei depois que ela pediu-me insistentemente. Vi que não era mais preciso e o soltei. Seu rosto estava todo machucado, em nada se comparava com o meu daquele dia atrás. Foi nesse momento que vi o que havia feito. Olhei para os seus olhos. Eu o havia colocado em seu semblante todo o meu medo. Estiquei minha mão para levanta-lo, não sabia o que dizer, apenas “desculpe”. Ele segurou firme na minha mão e, com dificuldades, levantou-se. De tão arrependido, ajudei-o a descer pelo elevador. Paramos no segundo andar para soltar os outros e ajuda-lo também. Chamei o Jota e contei tudo o que havia feito. Ele entendeu tudo e levou-o à enfermaria. Quando voltei, não agüentei diante de minha extrema estupidez: abracei a Nanda e comecei a chorar. Deus foi tão maravilhoso para comigo por ter me dado aquela pessoa tão perfeita. Ela compreendeu-me e levou-me ao refeitório.
Estávamos no refeitório, sentados numa daquelas mesas para dois. Ela foi buscar um copo de água e eu já estava mais calmo. Com o tempo, fui esquecendo de tudo que havia passado. Ela era perfeita nesses momentos de agonia (na verdade, era perfeita a toda hora). Convidou-me para irmos à biblioteca, para jogarmos a tal partida de xadrez. Finalmente achei algo em que eu era melhor do que ela. Comecei atacando, mas ela até que se defendia bem. Nunca havia visto um jogo tão coeso, tão racional. Cada peça na sua perfeita ordem, no seu momento certo. Até que a hora chegou:
- Xeque-mate. – eu disse, posicionando meu cavalo na casa tão indesejada para ela.
Ela deu aquela olhada como de quem quer ter certeza da derrota, percebendo sua desatenção e tudo mais. Ao remontarmos o tabuleiro, ela olhou para mim e disse:
- Prepare-se. Agora vou jogar melhor ainda. Vou jogar com tudo que tenho e mais um pouco. Se eu fosse você, jogaria com o coração.
Ao ouvir isso, percebi minha oportunidade. Tomei o meu rei e coloquei-o deitado sobre o tabuleiro (quando alguém age assim está desistindo do jogo, geralmente convencido da derrota) e exclamei:
- Sinto muito, mas assim não posso jogar.
- Por que não? – perguntou ela olhando nos meus olhos, sem compreender.
- Não posso. Você já conquistou meu coração. Não tenho nenhuma chance, não tenho como jogar.
Ela olhou-me novamente, mas desta vez, não consegui descrever tanta beleza. Sorriu e levantou-se da mesa. Meio sem graça, levantei-me também. Ela veio na minha direção e circulou meu pescoço com seus braços tão macios e carinhosos. Abracei sua cintura frágil, mas firme. Ela acariciou meus cabelos (ainda curtos) por uns segundos e depois me beijou. Acho que o silêncio expressa bem o que senti na hora. Eu me sentia no céu. Nunca senti tamanho sentimento por alguém e aquela era minha maior comprovação do quanto a amava. Quando paramos, eu estava todo corado. Ela acariciou meu rosto com aquelas mãos; sorria por causa da minha vergonha, mas a destruía a cada beijo que iniciava. Ficamos uma meia hora sem falar sequer uma palavra, até que ela rompeu o silêncio:
- Também te amo!
Para mim, a sociedade perdeu a noção do que significa um beijo, do que significa o casamento. Estão tão desorientados, cegos pelo seu mau uso, que desconhecem sua realidade. Naquela hora, pude desfrutar dessa realidade. Só não desfrutei mais por um motivo: estávamos atrasados para a palestra. Restava-nos, ainda, quatro dias. Desde então desfrutamos o máximo possível. No início eu achava esse papo de andar de mãos dadas uma tolice, mas, com ela, a história era outra.
A partir daí, lembro-me pouco do que ocorreu fora da nossa esfera. Lembro que o Jota nos liberou de muitas atividades chatas para voltarmos nossa atenção para o projeto e, além disso, ele mudou muitas coisas na fazenda (entre elas, trocou a janta por um lanche melhor). Fizemos um campeonato de xadrez no qual ganhei (Nanda não quis participar, porque, como ela disse, estava satisfeita por já ter me vencido). O pior foi que ela me venceu depois do campeonato numa revanche (tudo porque não vi um pião). Ocorreram várias coisas até o penúltimo dia.
No último dia, enquanto conversávamos no café, Beto e sua turma apareceram na nossa mesa. Enquanto se aproximava, colocava-me em pé. Ele ficou extremamente próximo, estendeu a mão e disse:
- Obrigado, amigo. Desculpe pelo que fiz com vocês, mas você abriu os meus olhos. Tentei vingar-me da não correspondência da Fernanda por um amor que não existia. Mesmo assim sou ainda muito imaturo e vou continuar sendo o mesmo, mas tomarei cuidado com cada passo que darei a partir de agora.
Deu-me um abraço simples (daqueles que amigos dão ao se encontrarem ou ao irem embora) e saiu. Olhei para Nanda e ela respondeu-me com aquele olhar de quem diz “não acredito”. Sentei-me e continuamos a conversa, até que surgiu uma idéia maluca: a de eu ir para Floripa com ela. Ela correu ao orelhão e ligou para os pais dela: eles aceitaram (ela disse que tinha certeza). Mas e eu? Será que meus pais deixariam? Liguei para eles com poucas esperanças. Contei a eles tudo o que havia ocorrido, desde as brigas, até meu relacionamento com a Nanda. Além disso, falei sobre o projeto e, por fim, sobre minha viagem para Floripa, pedindo-lhes permissão. Para minha surpresa eles disseram que sim. Comentaram que precisavam de mais tempo lá e, por isso, eu poderia ir. Mais tarde até descobri que tudo era mentira. Eles haviam ligado para o Jota e ele contou tudo, o quanto eu havia mudado e o quão útil eu seria fora dali. Assim, eles ficaram de acordo.
Sairíamos às cinco da tarde. Depois de desligar, perguntei a ela se poderia lavar umas roupas lá na casa dela. Ela me deu um tapa no braço e começou a rir da minha cara, perguntando se eu sabia lavar, pelo menos, uma meia. Confessei que havia aprendido, mas não sabia ainda passar roupa direito. Como teríamos a tarde toda juntos, logo após o almoço, ainda demos mais uma volta. Tomei um banho antes de sair e coloquei uma das minhas melhores roupas. Saímos para a cidade juntos, mais especificadamente para a rodoviária. Lá tirei dinheiro que meus pais me mandaram naqueles saques eletrônicos e comprei minha passagem. Íamos lado a lado. Aproveitamos que ainda faltava meia hora e demos um passeio rápido pela cidade. Comprei para ela um anel. Não era um pedido de casamento, mas já era um bom começo. Chegamos à rodoviária, como sempre, atrasados. Ao embarcarmos, sentamo-nos na frente. Ela me disse que a viagem seria rápida em relação à de volta a Brasília. Enquanto viajávamos, ela foi me contando sobre seus pais, como são e o que os faziam tão importantes lá. Já eu, contei minha vida passada. Todas minhas experiências, badernas, problemas com a polícia e outros mais.
Eram umas dez horas da noite. Ela ainda não havia pegado no sono. Perguntei se estava com sede, pois ia buscar água lá trás. Ela afirmou ainda sonolenta. Dei-lhe um beijo e fui. Ao chegar ao fundo, percebi que quase todos já dormiam. De repente, ao abrir a tampa do congelador, lembro-me apenas do alto som da bozina. Nosso ônibus bateu contra um caminhão que não conseguira terminar uma ultrapassagem a outro caminhão. Nosso ônibus ainda caiu num barranco e rolou umas duas vezes. As coisas que estavam naqueles guarda-malas que ficam acima dos bancos começaram a cair. Até que, enfim, parou. O desespero foi geral. Consegui abrir uma das saídas de emergência, mas meu desespero estava em saber como a Nanda estava. Corri contra toda aquela “correnteza”, contra o desespero, contra o choro. Ao chegar, lá estava ela, extremamente machucada. Os quatro bancos da frente haviam sido destruídos. Dali podia-se ver que o acidente foi muito mais feio que eu imaginava.
Coloquei-me na frente dela. Ela ainda respirava, mesmo com dificuldades. Pôs a mão esquerda sobre um corte que tive na cabeça, acima da orelha. O sangue escorria pelo meu pescoço, mas eu não sentia. Eu só via uma coisa nos olhos dela: a dor, o medo. Corri para pedir ajuda. Graças a Deus, uma ambulância já havia sido chamada e já estava próxima. Estava muito escuro, mas podia ver um brilho nos seus olhos, um brilho diferente. Ela sorria, mesmo naquela situação ela sorria. Via que eu estava bem, mas não conseguia dizer uma palavra. Os bombeiros chegaram e a tiraram lá. A ambulância chegou logo após isso. Entrei com ela na ambulância, segurando um pano úmido sobre o corte e com a outra mão segurava a mão dela, firme. Ela não tirava os olhos de mim. Eu tinha medo, medo de não ver mais aqueles olhos, de sentir aqueles lábios, ver aquele rosto. De repente, o primeiro susto: o coração havia parado de bater. Conseguiram reanima-la, mas seus olhos continuavam ali, abertos, como que me vendo. Ela arriscou falar uma palavra, mas não deu tempo: novamente teve uma parada cardíaca e não conseguiram reanima-la. No hospital fomos separados. Duas enfermeiras me levaram para uma sala e fizeram um curativo não só na minha cabeça como nos meus braços (só ali pude ver o quanto havia me machucado). Saí correndo pelo hospital atrás dela, até que a encontrei: estava tampada por um lençol branco, até a cabeça. Eu não consegui acreditar. Não sentia mais meu corpo, não sentia mais nada. O médico me tirou dali e me colocou, sentado, num sofá. Confessou-me que tentaram fazer o máximo, mas, com o acidente, os órgãos dela foram praticamente perfurados pelas costelas. A hemorragia interna não podia ser evitada. Fiquei desnorteado. O acidente foi já próximo de Floripa e os pais dela vieram me ver e leva-la para lá. A vida para mim não tinha mais sentido. Tive diversas crises e, numa delas, destruí todo o apartamento do hotel. Pelo menos, até o dia do enterro. Eu não consegui aceitar aquilo. Apesar de terem morrido oito pessoas naquele acidente, só ela me importava. Não larguei do caixão, fiquei ali do lado dela, segurando sua mão como na ambulância. Não conseguia esconder o choro. Na verdade, nem me importava mais. Tudo que eu aprendi, tudo que experimentei, tudo que vivi estava sendo enterrado com ela.
Depois do enterro, fiquei em Floripa mais três dias. Durante esses dias, fiquei na casa dos pais dela. Conhecei o quarto dela, a varanda onde ela adorava ficar. Não conseguia mais dormir. Só vinha-me o rosto dela. Quase enlouqueci. Chegava a passar dias chorando. Até que meus pais me enviaram uma passagem de avião. Voltei para Brasília. Ao chegar, meus pais entenderam minha dor, meu sofrimento e fizeram de tudo para que eu melhorasse. No entanto, nada adiantava. Não saía mais, não comia direito, nem dormia. Passava dias olhando para uma foto que tiramos na rodoviária antes de partirmos.
Um dia, minha mãe trouxe o café (eu amava sua insistência). Contou-me que o Jota havia mandado um e-mail para mim e que seria bom que eu respondesse. Deixei, pela primeira vez desde quando havia chegado, a foto de lado e liguei o computador. Enquanto ligava, fui arrancando todos os adesivos, um por um e, com um durex, prendi a foto dela acima. Ao ligar o computador, acessei a internet por um daqueles provedores grátis. Entrei na hp e digitei minha senha (como o computador era só meu, só eu entrava na internet). Ao entrar, o e-mail do Jota estava acima. Respondi, mentindo que estava bem, que estava tranqüilo. Pensei duas vezes antes de enviar, mas acabei mandando. Após enviar, decidir deletar todos os outros. Enquanto deletava, encontrei um que me deixou em estado de choque: “Teste” de Fernanda Dias. Lembrei do e-mail que ela havia enviando na biblioteca há semanas atrás. Abri, curioso, para saber o que ela havia escrito.
Teste
Testando...
Para saber se aí há alguém aí...
Se há alguém que me ama...
Que é capaz de deixar o mundo, deixar a vida...
Para amar-me...
Se você quiser, estarei aqui...
Amando-te...
Até o dia em que você abra a porta...
A qual ninguém mais fechará...
Só peço-te uma coisa: não me deixei esperando...
Estou sofrendo a falta desse amor...
Sinto muito a sua falta...
Ao ler, esqueci da foto dela. Parei para pensar. Quão idiota eu fui. Ela me amava desde o começo e eu não soube aproveitar. Eu a deixei esperando, a deixei sofrendo, deixe amando-me. O ódio tomou meu coração, eu simplesmente me odiava. Não conseguia mais acreditar que eu fiz isso com ela. Por isso ela sorria, sorria enquanto morria: ela me amava e, finalmente, foi correspondida. Comecei a destruir meu quarto. Quando minha mãe chegou no quarto, o armário já estava no chão. Minha cama não existia mais. Meu espelho, esmiuçado pelo chão. Minha mãe correu e me segurou pelos braços. Ainda chorando a abracei, gritando o quanto me odiava. Ela me levou pro quarto dela e me pôs deitado. Quando voltou com um copo na mão, eu já estava no meu quarto, na frente do computador (foi a única coisa que ainda ficara no lugar), mandando e-mails para o e-mail dela. Confessei o quão falho eu era e o quanto a amava. Eu não conseguia me perdoar, mas prossegui nos meus e-mails. Dias se passaram e eu não saia da frente do computador. Até o dia em que me foi avisado que a caixa dela estava cheia. Decidi, então, tentar descobrir a senha dela, para continuar contando tudo o que eu queria. Ainda havia muito a desabafar, mesmo sabendo que ninguém jamais lia ou respondia. Coloquei o endereço eletrônico dela e comecei minhas inúmeras tentativas. Até possuía uns programas hacker para isso, mas nem me lembrava deles. Naquela semana saí da frente do computador apenas uma vez: fui pegar, na estante da sala, um dicionário. Fiz todas combinações possíveis.
Ao que me resta contar dessa história é que, na quinta-feira, quando minha mãe levou o café (mesmo sabendo que eu não o tomaria novamente), acho-me debruçado sobre o teclado. Quando me tocou, o susto a tomou: eu havia morrido durante a noite. Sem comer e sem dormir não há como um organismo sobreviver. Mas que essa história seja um exemplo para todos vocês: aproveitem o que a vida tem para vocês, por pior que ela seja, por pior que parece, aproveitem. Saibam aceitar, com amor e com verdade, tudo o que ela tem para apresentar. Tudo isso para que a luz que tem guiado (ou quer guiar) suas vidas jamais se apague.