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Ensaios-->Egito - costumes e curiosidades -- 11/09/2003 - 17:35 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Habibe!

Salamalico!

O presente texto é um extrato dos II e III Capítulos de meu livro “Egito – uma viagem ao berço de nossa civilização”, Editora Thesaurus, Brasília, 1995.

Leiam também “Egito – 5.000 anos de história” (Cap. I), e “Islã: conflito com civilizações?” (Cap. VIII), também disponível em Usina de Letras.

Espero que gostem, intchaalá!

Chukrán!

Fíliks

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EGITO – costumes e curiosidades


Comparados aos povos do Ocidente, os árabes são bas-tante conservadores. Isso pudemos notar pelos assuntos de suas conversas, por suas vestimen-tas, programas de televisão e pela leitura de jornais e revistas locais. Em-bora, como se diz, Cairo seja uma espécie de 'Paris do Oriente Médio', e o Egito - junto com a Turquia - muito mais liberal que qualquer outro país muçulmano, lá os costumes são bem diferentes daqueles encontrados no Brasil.

Embora haja muita influência do Ocidente, seja através das parabólicas que se multiplicam nos telhados das residências, seja através das músicas de rock ou dos filmes americanos na televisão, o Egito procura preservar a cultura árabe e a religião muçulmana com bastante rigor. Mesmo nos jornais mais liberais, pode-se observar as duras críticas feitas ao modus vivendi do Ocidente - principalmente dos EUA -, onde existe a degradação dos costumes, o incentivo à violência, drogas e apelo sexual. Pode-se dizer que é uma guerra de cultura que está apenas começando: Ocidente versus Oriente.

Coisas que se vê na televisão brasileira jamais en-trarão no Egito. Novelas brasileiras, talvez só A Escrava Isaura. Tieta, Pátria Minha, ou as peladas 'garotas do Fantástico', nem pensar. As produções egípcias não mostram sequer beijos. Filmes ameri-canos, às vezes, mostram alguns beijos, mas as cenas mais fortes são simplesmente cortadas. Ou então, a tela fica negra, sem imagens, só com o som. O filme de Franco Zefirelli que vimos - Romeu e Julieta - tinha um pouco mais da metade do tempo normal.

Apesar da qualidade precária da televisão egípcia, que é estatal, ela apresenta uma grande variedade de assuntos culturais que não se costuma ver no Brasil, ao menos nas emissoras mais famosas. Na apresentação de filmes, a TV não mostra nenhum comercial. Não há aquela quebra de inte-resse na estória. Em compensação, em alguns vídeos que vi-mos, a cada 5 minutos havia um comercial. Era de lascar.

Devido à diferença cultural, nem por nada que no início sentimos um 'choque' quando presenciamos alguns costumes egípcios, bastante estranhos sob o ponto de vista ocidental. No Egito eu vim aprender que, para o muçulmano, a mão direita é usada para fins nobres, ao passo que a mão esquerda é considerada 'suja', por ser utilizada para fins negativos e menos nobres, como lavar o ânus. A seguir são descritos alguns costumes egípcios que chamaram nossa atenção enquanto dávamos os primeiros passos naquele exótico país.


O beijo entre os homens

Em público, os beijos entre casais são proibidos. A de-sobediência a essa lei pode levar o indivíduo à delegacia de polícia. Ou à casa do pai da moça, para explicações, se ela não for casada.

Enquanto é proibido o beijo entre casais, para não des-pertar 'imaginações impuras', é comum o beijo entre os ho-mens: três beijinhos na face, às vezes bem molhados... O adido militar, na primeira vez em que se apresentou às autoridades militares egípcias, ficou corado de vergonha, todo vermelho, quando um general sapecou um beijo em seu rosto. Um não, três... Mas esses beijos entre os homens não chegam a causar a mesma estranheza no Ocidente como aqueles beijos na boca tipo 'desentupidor de pia' de antigos figurões soviéticos, que as manchetes estamparam em volta do mundo.

Existe o costume egípcio de os homens andarem de mãos e braços dados. Às vezes, só com o dedo 'mindinho'. Víamos, no início, com bastante surpresa oficiais ou praças, tanto das Forças Armadas quanto da Polícia, andarem de braços dados, mesmo fardados.

Depois nos acostumamos com isso e eu não via nenhum mal em meu filho Wagner, às vezes, em plena rua, quando fazíamos as costumeiras caminhadas pelo Cairo, também me dar seu braço. Era um sinal de aconchego e amor filial que eu não podia negar só por causa dos nossos costumes diferentes no Ocidente.

As moças egípcias, em princípio, casam virgens. Não é permitido à moça solteira manter conversa com homens. Nas escolas, os meninos sentam em bancos separados das meninas. Segundo os árabes, 'a mulher é uma flor tenra que precisa ser preservada'. Por isso o uso do purdah (véu), que esconde os cabelos das mulheres. A mulher muçulmana casada, no Egito, não mostra seus cabe-los a não ser para o marido e pessoas da família.

Há a nequab, uma vestimenta islâmica que cobre as mulheres da ca-beça aos pés, usada por uma quantidade razoável de mulheres no Egito, mas que não é normal. Com essas vestimentas, ape-nas são vistos os olhos das mulheres. A gente as chamava de 'mascaradas', algumas até apresentando figuras grotescas, quando colocavam óculos 'fundo de garrafa' por sobre a 'máscara'. Dava até para se assustar, quando encontradas, inopinadamente, numa dobra de esquina.

É bom lembrarmos que há 50 anos atrás, no Brasil, as mulheres também andavam com vesti-dos longos, até os calcanhares, e com véus nas cabeças. E a cor predominante era a preta, como posso ainda hoje observar em uma foto de minha avó junto com minha bisavó. Como as mulheres ocidentais mu-daram de traje em tão pouco tempo...

Há muitos egípcios que se vestem como os ocidentais, tanto homens quanto mulheres. Mas é grande o número de egíp-cios, de ambos os sexos, que vestem as longas túnicas, as galabeyias, principalmente os da classe mais pobre, como os beduínos que vêm do interior. Talvez agora tenha aumentado o número de mulheres com vestidos longos, pela imposição dos fanáticos muçulmanos funda-mentalistas. Enquanto Muamar Khadafi, da Líbia, se veste espalhafatosamente, cheio de panos esvoaçando ao vento, o Presidente egípcio, Hosni Mubarak, nunca é visto usando uma galabeyia.

Há mulheres que vestem galabeyias pretas, que é uma de-monstração de fidelidade ao marido. O desconforto deve ser imenso, pelo calor que provoca. O ideal seria usar túnica branca, como os sauditas, que reflete a luz e, portanto, o calor. Era comum vermos mulheres, aos bandos, todas vestidas de preto. O que levou nossas crianças a comentarem: 'Olha só, quantas Perpétuas!' (da novela Tieta).

Antes da ocupação francesa, todos os egípcios usavam barba e bigode. Como os franceses tinham o rosto escanhoado, o antigo costume começou a cair em desuso, embora com alguma resistência.

Antigamente, uma punição exemplar para os egípcios era cortar seu bigode à força, o que causava uma vergonha enorme. No tempo dos mamelucos, homens sem bigode não eram tolerados a entrar nas cortes de justiça e criminosos eram forçados a raspar o bigode e mandados a andar no lombo de burros, de costas, pelas ruas da cidade, para aumentar a ver-gonha.

Observa-se, ainda hoje, no Egito uma grande quantidade de homens que cultivam seu bigode com bastante esmero. Ge-ralmente são bigodes enormes, como os do ex-jogador de futebol Rivelino. Quanto à barba, esta é hoje cultivada, principalmente, pelos sacerdotes coptas e pelos fundamentalistas islâmicos.


O ouro das mulheres

Há muita pobreza no Cairo. Mas a quantidade de ouro que se vê em toda a cidade, em lo-jas simples ou sofisticadas, nos dá a real dimensão que esse precioso metal tem na vida árabe. As mulheres são extrema-mente vaidosas, se adornam com colares, pulseiras e brincos enormes, carnavalescos. Não colocam uma barra de ouro em cada orelha porque iria rasgar...

É comum mulheres, as mais ricas, usarem uma penca de pulseiras de ouro em cada braço. O ouro tem, para essas mulheres, o mesmo que para nós tem a função da caderneta de poupança ou a guarda de dólares: é um patri-mônio que a mulher leva consigo durante a vida e serve para fazer face a algum imprevisto, como doença ou separação do marido. No aperto, é só ir ao joalheiro e vender as jóias. Quando o dinheiro sobra, passa a comprar mais ouro. Desde quando é pedida em noivado, com autorização do pai, a moça já começa a receber jóias do futuro marido. Nos dias de fes-tas, que no Egito são muitas, ela continua a receber seu co-biçado ouro, assim como no dia do aniversário.

Mesmo as meninas e senhoras mais pobres não deixam de usar suas jóias. Ficávamos admirados em observar muitas des-sas mulheres, mal vestidas, de chinelos e pés sujos, porém exibindo seu reluzente patrimônio.

O uso ostensivo de jóias no Egito é possível pela ine-xistência de assaltantes. A lei é rigorosa, existe a pena de morte e não há essa demago-gia, como no Brasil, em que grupos de defesa dos direitos humanos geralmente só se lembram de defender bandidos.


O mês do ramadã

Com 30 dias de duração, o nono mês do calendário árabe, o ramadã, é o mês das preces e do jejum. O fiel muçul-mano, durante o dia, fica proibido de comer ou ingerir qual-quer tipo de líquido, a não ser por ordem médica. O crente deve também se portar de modo mais pacato, conservar os olhos baixos durante o dia, para não 'sofrer tentação' ao avistar uma mulher. A relação sexual também é proibida du-rante o dia. Outros pecados que devem ser evitados nesse mês são a luta e a perda da calma. A guerra também deve ser evitada, como diz o Corão, embora ela possa ser feita por uma 'causa justa', como foi a Guerra do Ramadã, de 1973, contra Israel...

O jejum pode ser quebrado com o anúncio dos alto-falan-tes nas mesquitas, ao anoitecer, ou então o fiel deve saber pelos jornais, rádio ou TV quando está apto a fazer a pri-meira refeição do dia, o ifthar. O horário, dia após dia, varia um pouco.

Como o calendário árabe é lunar, o início do ramadã é sempre uma incógnita. Pode ser num dia ou somente em outro. De-pende da acuidade visual do religioso para observar a ro ya, ou seja, a lua no início da fase do quarto crescente. Ao menos é isso que acontece em países mais conservadores, como a Arábia Saudita. No Egito, ficávamos aguardando, até próximo do início do ramadã, para que informassem a data precisa, embora os astrônomos, com muita antecedência, pu-dessem prever o aparecimento da lua quarto crescente.

No Cairo, uma característica única dentre os países muçulmanos, o anúncio do fim e do início do jejum, nos dias do ramadã, é feito com o disparo de um velho canhão alemão, que pode ser ouvido em muitos pontos da cidade. O canhão encon-tra-se numa colina perto da Cidadela de Saladino.

Como o descrito no jornal Al-Ahram nº 3 de 14 Mar 91, a tradição começou em 1811, por puro acidente. O canhão era tão velho que o Pasha (Governador) Muhammad Áli decidiu parar de usá-lo e fazer dele um monumento. Enquanto os soldados estavam limpando o canhão, este acidentalmente disparou um tiro. Os egípcios ficaram muito felizes, pois pensaram que era o sinal dado para a quebra do jejum, à tardinha. Os grandes sheikhs (xeques) foram agradecer ao Governador e este decidiu con-tinuar a disparar o canhão no início e no fim do jejum. Desde então, isto veio a se estabelecer como tradição. O ca-nhão também dispara em dias de festas e feriados nacionais.

O ifthar é a primeira refeição à noitinha, após o je-jum. Os mais pobres podem se servir em mesas que são arruma-das junto a muitas ruas da cidade. Cena interessante é você observar aquele povo humilde sentado à mesa, com mais de uma hora de antecedência, para garantir o lugar, com os talheres prontos para entrar em ação, como se fosse uma competição, e só iniciando a refeição com a devida autorização dos alto-fa-lantes das mesquitas.

Um ifthar tradicional começa com um prato de tâmaras embebidas em água ou leite, como o prescrito pela sunna (ensino religioso). Muitas famílias irão incluir no menu um prato de fuul (espécie de feijão com limão e óleo de oliva), assim como uma refeição normal que pode conter sopa, carne, ave, peixe e uma grande variedade de le-gumes.

Se durante o dia a barriga ficou a perigo, à noite, após o ifthar, outras refeições são feitas, até alta madru-gada. É a época em que mais se come no Egito - ao menos en-tre aquelas pessoas das classes mais altas - e muitos reli-giosos criticam isso, justamente por ser o mês do jejum. Açúcar e farinha de trigo você tem que fazer estoque em casa, para se prevenir contra a falta desses produtos em quase todos os armazéns da cidade.

O sohour, às 3 horas da manhã, é normalmente a última refeição, geralmente uma comida ligeira à base de iogurte e frutas, depois do que as pessoas vão dormir.

O brasileiro Zagalo, quando dirigia a seleção de fute-bol dos Emirados Árabes Unidos, teve um problema bastante difícil de resolver, ao assumir o trabalho na preparação para a Copa do Mundo na Itália, em 1990. Os treinos durante o ramadã só po-diam ser feitos à noite, pois, com a bar-riga vazia, os jogadores de modo algum se prontificavam a obedecer seu treinador...

Crianças do pré-escolar acreditam que o ramadã é uma pessoa, como Papai Noel, que virá trazer as lanternas e os doces, além dos presentes que são comuns nessa época.

A fanus (lanterna) é um costume unicamente egípcio e data da época dos fatímidas. Quando Al-Muz Lidin Allah Al-Fatimi transferiu a capital muçulmana para o Cairo, na sua chegada, à noite, os cairenses saíram às ruas para recebê-lo com lampiões coloridos para iluminar as ruas que o levaram até seu palácio.

No início, a lanterna era feita de vidro colorido e vela, com formatos hexagonal ou octogonal. Hoje, as lanternas utilizam pilhas elétricas e pequenas lâmpa-das para emitir luz através do material plástico. Durante o ramadã, pudemos observar os efeitos especiais dessas lanternas, com suas luzes coloridas em todos os pontos do Cairo, nas lojas, nas ruas, nas casas.

As crianças ficam impacientes em começar a jejuar e participar dos rituais do ramadã. Embora a idade 'oficial' seja de 9 anos, muitas crianças de 7 anos procuram imitar seus pais durante alguns dias. Muitos estrangeiros residen-tes no Cairo também jejuam alguns dias, durante o ramadã, in-dependentemente de sua religião. Que é, sem dúvida, bastante saudá-vel para o corpo.

Nas ruas e nos canteiros das avenidas são armadas muitas tendas, emolduradas com uma infinidade de pontos de luz para iluminar a noite do ramadã. Milhares de lâm-padas caem em cascatas do alto de alguns prédios, mormente hotéis. Árvores também são enfeitadas com lâmpadas multicoloridas, apresen- tando um espetáculo típico do nosso Natal. O ramadã é uma festa de som, luz e calor humano.

Na época do ramadã, durante o dia, o movimento dos veí-culos diminui muito depois das 14 horas. Porém, após a pri-meira refeição do muçulmano, à noitinha, a cidade do Cairo se transforma completamente. Todo mundo combina em sair ao mesmo tempo para as ruas e o leitor não pode imaginar o pandemônio que fica o trânsito da cidade.

Uma noite, durante o ramadã, fomos levar um amigo para-naense, Anwar El Tassa, até sua residência, no Khan Al-Khalili. Em um trecho que não se leva normalmente mais de 10 minutos de carro, ficamos presos no trânsito por mais de três horas.

Mas ninguém se incomoda com isso: todo mundo enche o carro, a família toda, cantando, a música no toca-fitas bri-gando com o volume das buzinas, e sai satisfeito da vida, enfrentando o trânsito infernal, até alta madrugada. Os mais pobres fazem piquenique nas praças e canteiros das aveni-das, com sacolas de comida, no estilo 'farofeiro' das praias brasileiras. Há muitos vendedo-res de milho assado na brasa, shai (chá) gelado, pipoca. As crianças andam no lombo de burrinhos. Ou correm atrás da bola.

O egípcio é fanático por fute-bol. O leitor não acredita o carnaval que fizeram, em 1990, quando conseguiram dois simples empates na Copa da Itália. Foi um buzinaço fenomenal que avançou madrugada adentro. Eles adoram o futebol brasileiro. Ima-gino que tenham vibrado muito com a nossa conquista do tetra.

No meio da confusão toda de automóveis, pessoas, burri-nhos, durante o ramadã pode-se observar, em todos os cantos da cidade, muitas charretes, parecidas com aquela que a ex-ministra Zé-lia Cardoso usou como táxi em Nova Iorque. No Egito, quando víamos uma dessas charretes (hantur, em árabe), a sugestão era imediata: 'Vamos andar no táxi da Zélia?'

O horário normal de trabalho, em todos os setores, é mais ou menos de 9:30 até às 15 horas. Durante o ramadã, o horário de trabalho encurta ainda mais, de 11 às 14 horas. A tarde é sempre utilizada para a sesta, tudo pára, nada funciona. O relógio biológico do egípcio é diferente do nosso: à tarde todos dormem, saem às ruas à noite e só dormem de madrugada, mesmo que não seja época do ramadã. O ritmo de trabalho normal do egípcio é muito lento. Durante o ramadã fica mais lento ainda. De certa forma, eles têm razão em não trabalhar muito. No verão, o clima é muito seco e quente, de torrar os miolos. Eu quero ver o leitor pegar no batente, no pesado mesmo, durante mais de 4 horas, com uma temperatura que, como medimos no Cairo, ultrapassava os 45 graus centígrados. O general Schwarzkopf não foi nada delicado ao chamar os soldados egípcios de 'tartarugas' nas operações militares que tiraram Saddam Hussein do Kuwait.

No final do mês do ramadã há a festa do Aid Al-Fitr, o Pequeno Bairã, 4 dias de feriado que servem como coroamento do sagrado mês do jejum e das orações.


A pechincha, um costume árabe

Os árabes são loucos por perfumes e roupas multicolori- das. Eles usam roupas que no Brasil só se prestariam para pular carnaval. Ou para subir no picadeiro. As mu-lheres usam vestidos superenfeitados, sapatos cheios de co-res e brilhos, uma penca de pulseiras de ouro em cada braço, brincos enormes, colares de proporções faraônicas. Os homens também usam camisas e blusas enfeitadas, sapatos floridos, às vezes na cor vermelha berrante ou, até, rosa.

Havia em nossa chancelaria um funcionário egípcio, Yu-nes Choucry, que gostava de se vestir com ternos de cores as mais esdrúxulas possíveis: cor rosa, verde. E sapatos colo-ridos, muito brilhantes. Até o ex-Presidente Collor, antes de assumir o mandato no Brasil, quando esteve no Cairo, não deixou escapar a oportunidade de se fazer fotografar ao lado de tão exótica criatura.

Os táxis andam enfeitados, muitos parecendo uma árvore de Natal ambulante, com luzes piscando e buzinas melódicas entrando madrugada adentro. O táxi funciona no sistema de lotação: pára somente se quiser e apanha o passageiro que seguir o itinerário já combinado com os outros passageiros a bordo. Quando pegam um estrangeiro, fazem a mesma coisa que no Brasil: esfolam o cara. Minha mulher Nice muitas vezes pagava 20 ou 30 libras egípcias por uma corrida de 5 libras. Depois, ela combinava de pagar o preço que pediam e, depois de saltar do táxi, pagava só a quantia correta, deixando o motorista a re-clamar e gesticular sozinho.


De modo geral, todo estrangeiro é explorado no Egito. Você começa cortando o cabelo a 12 libras, depois eles bai-xam para 8 e até 5 libras. Minha mulher, no início, era muito explorada quando ia ao salão de beleza. Cobravam até 60 dólares por uma pintura do cabelo e um permanente.

A pechincha, no Egito, é fundamental. Sabendo que você é estrangeiro, eles sempre jogam os preços nas nuvens. Quando o preço não está afixado no produto, você pode divi-dir por 2, 3 ou até 10 vezes o que pedem. E não adiantava eu perguntar o preço em árabe. Quando eles olhavam minha cara de gringo, já me respondiam em inglês, perguntando se eu era russo, alemão, holandês ou sírio. A Nice, por sua vez, tem alguns traços árabes - ao menos era o que diziam: 'you look like Egyptian'! (você parece egípcia) - e por isso mui-tas pessoas começavam a falar árabe com ela. Mas, quando abria a boca, também não convencia ninguém. Assim, tivemos que conviver com esse eterno jogo da pechincha.

O Egito é auto-suficiente em petróleo, porém é um produtor pequeno, se comparado aos ricos países árabes do Golfo Pérsico. A metade de sua produção (de mais ou menos 800 mil barris diários) é exportada, inclusive para Portugal. Outros produtos que o Egito coloca no exterior são: tâmaras (é o maior produtor mundial), cebola, alho, produtos em couro, algodão, perfume, cosméticos, cigarros, roupas, carpetes, tapetes, ônibus, móveis de cozinha, doces, peças para computador, hena para tingimento dos cabelos. Sem mencionar a grande quantidade de desenhos em papel-papiro e produtos metálicos levados como souvenirs pelos turistas.

A maior fonte de divisas estrangeiras o Egito obtém com a exploração do Canal de Suez. Seguem em importância o movimento de turistas - que em 1990 foram 2.600.000, sendo 46,7% de estrangeiros - e o dinheiro remetido ao Egito por trabalhadores espalhados pelo mundo árabe, especialmente nos ricos países do Golfo Pérsico. É fácil imaginar o impacto que teve sobre a economia egípcia a eclosão da Guerra no Golfo Pérsico, quando milhares de nacionais tiveram que voltar para casa, sem emprego. Só no Iraque trabalhavam mais de 1 milhão de egípcios. Com a onda de atentados contra turistas promovida por fundamentalistas muçulmanos, a segunda maior fonte de divisas - o turismo - sofreu duro golpe. De 1992 a 1994, já foram 12 os turistas assassinados no Egito. Os hotéis e os navios luxuosos que singram o Nilo entre Lúxor e Assuã perderam de 50% a 70% do seu movimento.


A circuncisão árabe - masculina e feminina

Há uma prática muito antiga dos árabes, que é também comum entre os judeus e era usada, ainda, pelos antigos egípcios da época dos faraós: a circuncisão. Aquele cortezinho no 'peru' do menino, uma cerimônia registrada no Antigo Testa-mento. O motivo é, sem dúvida, de se tornar mais higiênico esse importante apêndice masculino, fazendo com que o prepú-cio se 'descasque' com mais facilidade. Para a limpeza e para o ato sexual. Isso, todos sabemos.

O que eu não sabia é que há também a circuncisão apli-cada às meninas. Embora esteja caindo em desuso nos grandes centros, no interior do Egito ainda é muito comum. Consiste em se cortar um pedaço do clitóris da menina, para ela não sentir prazer sexual quando crescer. O prazer permitido às mulheres é terem filhos, muitos filhos. E os árabes, sem exceção, têm muitos filhos. Em 1994, uma mulher da Somália fugiu com sua filha para os EUA, onde pediu asilo. Motivo: evitar que sua filha fosse mutilada em suas partes íntimas.

Sempre nos perguntavam porque não tínhamos mais filhos, se a Nice não podia ter mais. Não conseguiam entender um ca-sal ter somente 2 filhos, como a gente. O Egito tem uma das maiores taxas de natalidade do mundo, cada mulher tendo em média 5 filhos. E o resultado aí está: superpopulação, falta de empregos e a vida miserável de mi-lhões de habitantes. Foi bem simbólica a escolha da cidade do Cairo para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Po-pulação e Desenvolvimento, no ano de 1994.

O motorista da aditância militar, Abdul, um dia convi-dou o meu chefe para que fosse participar de uma festa em sua casa. A festa era para a comemoração da circuncisão de sua filha.


Gordinhas do Egito

Como os judeus, os árabes não comem carne de porco. Di-zem que é impura. Além do porco, o Corão proíbe comer carne de qualquer animal que tenha morrido de morte natural. Ou ali-mento feito com sangue.

Muitas casas são facilmente encontradas na cidade, onde você consegue comprar pernil para assar no forno, ou presunto e até lingüiça. A carne de porco é muito boa, assim como o presunto. Mas a lingüiça você só compra uma vez. Tem uma casa, Morcos, que faz até anúncio em um jornal escrito em inglês, para vender carne de porco.

A população mais pobre não come carne nunca, a não ser na época do Aid El-Adha, a Festa do Sacrifí-cio, quando os ricos doam pedaços de carne aos pobres. A di-versificação dos pratos egípcios mereceria um capítulo espe-cial.

Dentre as comidas típicas, o fuul é bastante popular. Consiste de um feijão forte como soja, temperado com óleo de oliva e limão. É comido puro ou colocado dentro do aesh, aquele pão redondo, principalmente no café da manhã. Mas é preciso ter estômago de camelo quem não estiver acostumado.

Interessante era vermos as carroças passando nas ruas, com seus vasilhames enormes, de boca pequena, de onde era tirado o fuul para vender às mulheres que desciam dos apar-tamentos, ainda cedo pela manhã. Pelo tamanho reduzido da boca daquelas vasilhas, e a conseqüente dificuldade em lavar as mesmas, pode-se imaginar que a higiene não devia ser grande coisa.

Minha mulher adorava comer uára al-áinab, um bolinho de arroz e tempero enrolado em folha de videira. Em Brasília, um libanês faz o mesmo bolinho, só que utiliza folha de re-polho ou couve na falta de folha de uva.

O aesh baladi é um pão chato e redondo, parecido com boina de milico, o mais popular do Egito. Tem uma cor es-cura, talvez pela adição de milho ou batata. Dizíamos, brin-cando, que era feito de areia do deserto. Esse tipo de pão era também encontrado nas calçadas, estendido sobre jornais velhos, cheio de poeira e moscas em volta. Só comprávamos o aesh shami, mais branco e higiênico, encontrado nos super-mercados, também conhecido como 'pão sírio'. Há, ainda, no Egito o aesh shamsi (pão do sol), feito em Lúxor de acordo com a antiga prática de deixar crescer a massa com fermento do lado de fora da casa, e o aesh saraia (pão do palácio), de cor laranja, feito de grãos finos embebidos em geléia de frutas. Há, ainda, o pão uras, também redondo e chato, popu-lar nas festas cristãs coptas, e levado aos cemitérios para alimentar os pobres. Como se sabe, milhares de pessoas vivem nos cemitérios do Cairo.

Uma figura típica no Cairo é o ciclista que, com uma espécie de cesta rasa e muito comprida, feita de bambu, cheia de aesh, equilibrando aquilo tudo em cima da cabeça, sai pedalando em alta velocidade, dando fechada em carros e, vez por outra, dando uma trombada e espalhando o pão pelo chão, alguns rolando para longe. O sujeito, na maior calma, recolhe todos os pães na cesta, equilibra tudo de novo na cabeça e sai pedalando a destino. À vezes, a rua onde caiu o aesh é imunda, totalmente podre. Mafísh mushkêla! (Não tem problema!).

A taamiya é um tipo de lanche que faz sucesso entre os egípcios e os turistas que querem economizar seu dinheiro. É feito à base de feijão, legumes e salada.

O khusháf consiste de tâmaras e frutas cristalizadas com leite. Outro doce para o final das refeições é o kou-náfa, à base de nozes ou amendoim, coberto por um doce feito de farinha de trigo, açúcar queimado, água e gotas de limão. O khusháf e o kounáfa são pratos típicos do ramadã.

O kóshari é composto de arroz, tomate, macarrão, pi-menta, salsa e cebola frita. O que não pode faltar na comida árabe é pimenta, cebola, alho, páprica e salsa, usados em profusão.

A panqueca egípcia fitir é diferente daquela conhecida no Ocidente. Consiste de camadas de um tipo de massa espe-cial e é feito com vários ingredientes, incluindo carne ou queijo. Há, ainda, o tipo doce, muito delicioso também.

Era um espetáculo à parte vermos o chef da cozinha pegando um pouco de massa já preparada e golpeando a mesma no ar, em movimentos giratórios, com uma habilidade própria de malaba-rista de circo, tornando a massa do fitir fina e quase transparente. Gostávamos de comer fitir, a Nice e eu, quando voltávamos do British Coun-cil, à noite, onde estudávamos inglês.

O árabe é, antes de tudo, um comedor de salada. Isso eu já sabia, desde criança, quando um turco ia até o sítio de meu pai, em Santa Catarina, e levava consigo uma grande quantidade de verdura. Até uma espécie de caruru que a gente dava aos porcos e às vacas o turco levava para comer. No Brasil é usado erradamente o termo 'turco'. Muitas vezes são sírios ou libaneses e até egípcios. É que os países árabes durante muito tempo foram dominados pelos turcos otomanos, daí a generalização desse termo para todos os árabes prove-nientes do Oriente Médio.

As frutas encontradas no Egito são dulcíssimas. Com exceção talvez do abacaxi, que lá custa 6 dólares a unidade, todas as frutas que temos no Brasil também existem por lá. Como todas as plantações são irrigadas pelas águas do Nilo, não há o problema da falta de chuvas no Egito e vários tipos de frutas podem ser escolhidos para o cardápio durante o ano inteiro. Com o sol dardejando seus raios de fogo o ano todo no Egito, as frutas se tornam muito doces, a exemplo das do Vale do Rio São Francisco e da região do cerrado brasileiro, onde também há muito sol e calor. Laranja, figo, pera, melancia, melão, uva, tangerina, pêssego, manga, tâmara. Nunca em minha vida tinha degustado frutas tão saborosas.

Há milhares de quitandas espalhadas por todo o Cairo, onde podem ser encontrados legumes, frutas e verduras viçosas. Há legumes de proporções faraônicas, como a berinjela. Tem repolho que enche uma bacia. Em compensação, o melão é pequeno e há maçãs ácidas minúsculas, do tamanho de uma bola de gude.

Além das quitandas, podem ser observadas carroças percorrendo todas as ruas do Cairo, com vendedores anunciando seus produtos a brados altos. O mishmish (damasco), durante a época da colheita, é um dos produtos que mais se vê anunciado pelos carroceiros.

O egípcio é também um grande comedor de sementes. Em frente de armazéns, nas calçadas, podem ser vistas muitas sacas contendo sementes de girassol, melancia e abóbora, dentre outras. É incrível a habilidade que eles têm para descascar as sementes só com os dentes. Não ficam devendo nada a papagaios e araras. Durante as horas de folga, durante um bate-papo ou no recreio do colégio, é comum a gente ver egípcios mordiscando sua semente preferida.

No Cairo, é grande a quantidade de casas com doces. Em cada esquina você encontra enormes confeitarias, com tortas dos mais variados sabores, nozes cobertas com chocolate, suspiros. É uma tentação que as mulheres egípcias não conse-guem resistir. Por isso, elas normalmente são enormes. Tudo é conseqüência da grande quantidade de comida que ingerem, o dia todo, comendo sempre, muita coca-cola, doces, chicletes e chocolate.

Quando jovens e solteiras, as egípcias são bonitinhas. Mas quando casam, a tendência geral é ficarem mais parecidas com uma Wilza Carla do que, por exemplo, uma Lucinha Lins. É uma estética da época do Renascimento, com aquelas matronas rechonchudas e redondinhas. Enormes, as egípcias, ao andarem, jogam o corpo de lado, para facilitar o levantamento das pernas. E os egípcios têm uma preferência confessa pelas gordinhas.

Embora o Corão permita beber vinho no paraíso, os muçulmanos não podem ingerir bebida alcoólica na vida terrena. Os egípcios têm uma cerveja sem álcool, de marca Stella, que pode ser encontrada em todos os cantos do país. Essa cerveja não tem gosto de nada e só desce bem pela garganta depois de você atravessar o deserto, durante um dia inteiro, sem beber água.

Os antigos egípcios, além do vinho, também bebiam cerveja. E era uma cerveja bem forte. Como se pode ler numa reportagem do jornal O Globo de 6 Set 72, os egípcios já em 1500 a.C. espalhavam mensagens de advertência pelo país: 'Não faça de ti mesmo um desamparado, bebendo na cervejaria. Pois não adiantarão as palavras deste aviso serem repetidas pela tua boca, sem que tua inteligência as pronuncie também...'.

Fico imaginando: os antigos egípcios nos legaram o ano solar, foram pioneiros na astronomia, medicina e na escrita, foram precursores de entidades esotéricas como a sociedade Rosa-Cruz, fazem parte das Sagradas Escrituras, com a palavra 'Egito' aparecendo inúmeras vezes na Bíblia, criam na imortalidade da alma, construíram os primeiros monastérios cristãos, influenciaram os judeus e os primitivos cristãos coptas, e muitos dos costumes hoje em voga no Ocidente derivaram-se daquele antiqüíssimo povo. E nos deixaram como herança a deliciosa cerveja. O leitor tem alguma dúvida de que o Egito é o berço de nossa civilização?


Dura lex, sed lex

'A lei é dura, porém é lei', diz o provérbio latino. Não sei se o número de leis no Egito chega aos pés das deze-nas de milhares que devemos ter no Brasil. Mas que lá a lei é dura e muito mais eficaz que em nosso país, não tenho a menor dú-vida.

No Egito existe a pena de morte, feita por enforcamento. O funcionário egípcio Helmi Sultan, em 20 anos de serviço, já enforcou mais de 240 condenados. Motivo para este tipo de condenação no Egito: assalto com armas, assassinato, la-trocínio, estupro e tráfico de drogas.

Cansamos de ver pessoas sendo levadas a pescoções pela polícia até à delegacia. Direitos humanos? Segundo as autoridades egípcias, esses direitos só valem para a grande massa da população, que é séria e precisa ter preser-vados seus direitos e sua integridade física. Para os presos não há moleza na prisão e durante o dia vão quebrar pedra no deserto. Os ladrões, no Egito, muitas vezes acabam ficando com as mãos quase que mutiladas, de tanto levar pauladas. Na Arábia Saudita é pior: os ladrões têm as mãos decepadas.

A segurança que se tem nas ruas do Cairo deve-se ao espírito religioso da maior parte da população, das leis severas e da presença constante da polícia em todas as esquinas da cidade, milita-res com seus walkies-talkies e muito bem aparelhados, com viaturas e motos prontos para entrar em ação. Atualmente, com a crescente falta de recursos, esse aparato policial tem diminuído bastante, o que facilita as ações de extremistas islâmicos. Até camelos são utilizados no ser-viço de segurança, na área das pirâmides. Todas as pontes sobre o Nilo na ci-dade do Cairo têm barricadas instaladas à noite, com poli-ciais revistando todos os carros que por lá pas-sam.

Uma coisa me traz uma certeza definitiva: não é só a religião, levada bem mais a sério no Egito que em nosso país, que freia as ações dos marginais. O que diminui a ban-didagem é a presença da polícia, ostensiva e onipresente, e a dura lex que tornam a cidade do Cairo tranqüila, segura, onde você pode andar a qualquer hora do dia ou da noite sem ser importunado. No Brasil, infelizmente, é mais fácil você encontrar um pingüim andando no calçadão da praia de Copacabana do que encontrar um policial na rua.

Não posso deixar de registrar a violência que atingiu parentes e amigos no primeiro ano que estivemos no Egito: o tenente Adílson, do Rio de Janeiro, teve sua casa no Rea-lengo assaltada, tendo que se refugiar em um apartamento na Tijuca à procura de maior segurança. O sargento Arnaldo, da Escola de Instrução Especializada, no Rio, onde servi por 6 anos, foi assassinado. Até meu irmão Günther teve sua moto roubada, em Joaçaba, SC, comprovando que a falta de segu-rança no Brasil é total, mesmo nas pequenas cidades do inte-rior.

O adido militar no Egito, quando esteve de férias em 1991 no Rio, encontrou seus habitantes sitiados, trancados em seus apartamentos com milhares de fechaduras, temendo a violência a qualquer momento. Fazia lembrar o filme Fuga de Nova Iorque, uma cidade com muros de 20 m de altura, de onde ninguém podia fugir e onde cada um que resolvesse por si mesmo os seus problemas, a seu jeito.


Um Papa no Egito

Não é só a Igreja Católica que tem o seu Papa. O Egito também possui um, o Papa Shenouda III.

Como 116º sucessor de São Marcos, o Evangelista, que primeiro levou a religião cristã à África, Shenouda III é o Patriarca da Igreja Cristã Ortodoxa do Egito, a Igreja Copta.

Os coptas se consideram descendentes dos antigos egíp-cios. Pudemos observar que alguns coptas que trabalham na Embaixada do Brasil têm uma feição facial mais delicada, fina, se comparada com a dos árabes, que têm os traços geral-mente mais grosseiros. Os coptas trazem nos braços, numa espécie de tatuagem, o símbolo da cruz.

A liturgia na Igreja Copta, como pudemos observar algu-mas vezes no Cairo Velho, onde há muitos templos, é um pouco parecida com a antepassada liturgia da Igreja Católica, com muitos cânticos, parecidos com o canto gregoriano, as mulheres separadas dos homens, o cele-brante voltado de costas para os fiéis. Os sacerdotes coptas se vestem de preto e têm longas barbas.

O monasticismo cristão nasceu nos desertos do Egito com São Pacômio, no século IV de nossa era, e se espalhou pelo mundo inteiro. Inicialmente, os conventos eram só para homens, porém rapidamente surgiram conventos para mulheres, desde que a irmã de São Pacômio, Maria, também ingressou na vida celibatária.

Segundo alguns autores, a religião cristã copta, em sua fase primitiva, sofreu influência dos antigos egípcios, cujas entidades religiosas foram assimiladas também pela religião cristã em geral. J. Cerny, em seu livro Ancient Egyptian Religion, nos lembra que é muito grande a semelhança entre São Jorge matando o dragão com sua espada e o deus egípcio Horus matando seu inimigo, o demônio Setekh, em forma de crocodilo. O mesmo autor afirma que a escolha do dia 25 de dezembro como a data do nascimento de Jesus e a celebração do Natal apenas perpetuou a velha festividade solar do nascimento de Rá.

Mohamed Hussein, o Dr. 'Chimy', é um pintor bastante popular no Cairo. 'Chimy' tem belas coleções de esculturas e desenhos sobre a vida egípcia. Muitos cartões-postais com temas árabes, faraônicos e coptas contêm a marca 'Chimy'. As paredes da pizzaria Hut, no bairro de Dokky, têm gravuras suas. Além de telas a óleo, o Dr. 'Chimy' compôs belas coleções de gravuras da vida egípcia, com temas faraônicos, coptas ou islâmicos, a exemplo de Oásis de Siwa e Os antigos mosteiros e igrejas no Egito. Esta última coleção nos fez conhecer como são alguns dos mosteiros mais importantes do Egito, como os de Santo Antônio e São Paulo, junto ao Mar Vermelho; o famoso mosteiro de Santa Catarina, aos pés do Monte Sinai; o mosteiro de São Simeão, em Assuã e os mosteiros do Wadi El-Natrun.

No Museu Copta, no Cairo Velho, vêem-se muitos objetos dos antigos cristãos, como afrescos antiqüíssimos, vestimentas, instrumentos rudimentares de cirurgia, objetos em metal, madeira, marfim, ouro, prata, cobre, bronze e ferro. Uma das coleções mais interessantes e valiosas do Museu é a de ícones. Ícones são pinturas coloridas em base de madeira, com a parte superior arredondada, contendo normalmente figuras de santos. Um dos ícones no Museu representa Santo Antônio e São Paulo, o Ermita. Segundo a crença copta, o alimento diário de São Paulo consistia em meio pão, que lhe era trazido por um corvo. No dia em que Santo Antônio foi visitá-lo, o corvo levou um pão inteiro.

Antigamente, como Patriarca de Alexandria, a sede papal ficava naquela cidade. Posteriormente, a sede foi mudada para a igreja de Al-Mo allaqa, construída sobre os pilares de antiga fortaleza romana da Babilônia, no atual Cairo Velho. Atualmente, a sede de Shenouda III fica na catedral de São Marcos, no Cairo, no bairro de Abayssya, e é a maior basílica da África.

Muito dinâmico e popular, com aparições freqüentes na televisão e bem relacionado com as autoridades egípcias, Papa Shenouda participa de sessões na Assembléia do Povo - o Parlamento Egípcio -, mantém estreita ligação com o Grão-Sheikh da Mesquita Al-Azhar, Gad-Al-Haq Ali Gad-Al-Haq, e o grande Mufti do Egito, o Sheikh Muhammad Sayed Tantawi, os dois maiores líderes religiosos muçulmanos do Egito quando lá estáva-mos. Com aquelas autoridades religiosas, Shenouda algumas vezes participa do ifthar, o desjejum à noite, durante o mês do ramadã.

Contrastando com a intolerância dos fundamentalistas muçulmanos, para os quais nunca poderá haver qualquer espé-cie de ecumenismo, foi com grande satisfação que vi uma foto dos líderes religiosos muçulmanos comungando o if-thar com o Papa Shenouda, tendo na parede os símbolos das duas religiões: um crucifixo copta e o crescente islâmico. Em Mínia, cidade a caminho de Lúxor, durante um festival universitário, uma cruz copta e o crescente islâmico foram carregados à frente dos grupos de atletas que desfilaram no interior do estádio. O ex-Presidente Sadat também tinha um grande senso de ecumenismo quando quis construir aos pés do Monte Sinai o 'Centro de Descanso e Meditação', com uma mesquita, uma igreja e uma sinagoga. A obra, porém, nem sequer foi começada. Certa-mente, é por aí que se conseguirá construir alguma coisa de útil num país como o Egito - como em outro qualquer -, para a paz social de todo um povo, independente de sua fé.

De hábitos muito simples, Papa Shenouda gosta de sair do burburinho do Cairo e seguir para o deir (mosteiro) de Anba Bishoi, em Wadi El-Natrun, a oeste do Cairo, onde entra em contato com o trabalho braçal na fazenda dos monges, auto-suficiente em leite, queijo, frango, frutas e legumes.


Maalêsh! - Bukra, Intchaalá!

Maalêsh (o 'sh' com som de 'x' de xícara) é talvez a palavra-chave que exprime todo o pensar do egípcio, seu humor, sua filosofia de vida, a predestinação árabe. Quer di-zer 'perdão, desculpe-me', 'deixa p ra lá', 'não tem pro-blema'. Ou 'dane-se!'. Se o passador de roupa queimou tua camisa de seda, maalêsh! Se alguém te dá uma esfregada no carro - como acon-teceu comigo, quando um microônibus me imprensou na rua -, maalêsh! Se o mecânico não te entrega o carro no dia prome-tido, mas somente uma semana depois, maalêsh! Se o funcioná-rio não chega cedo ao local de trabalho, após uma série de escusas e mil explicações inexplicáveis, ele diz: maalêsh! E assim vai.

Como escreveu Dalia Baligh em um artigo no Herald Tribune de 14 Nov 83, 'maalêsh reflete a crença de muitos egípcios em fatalismo e na inevitabilidade daquilo que está escrito nas estrelas'.

O governo egípcio já tentou proibir a circulação de carroças no centro do Cairo. E também já chegou a fazer uma campanha para não se utilizar essa mágica palavra maalêsh, querendo bani-la do dicionário. Besteira. São dois símbolos vivos dos costumes egípcios. Seria o mesmo que querer acabar com o samba e a cerveja no Brasil.

Tivemos o privilégio de assistir a alguns pequenos aci-dentes de carro nas ruas do Cairo. Como já foi dito, o trân-sito é infernal, o fluxo de veículos é lento e as batidas de carros, normalmente, não passam de danos materiais.

Nesses acidentes, os motoristas saem de seus carros em altos brados, aparentemente agressivos, gesticulando muito. Os carros são deixados no meio da rua de qualquer jeito, o trânsito fica ainda mais caótico. A gente até aposta que uma briga feia terá início. Mas, que nada. Após uma acalorada discussão, com os contendores prometendo resolver a questão pelas vias de fato, grupos do 'deixa disso' segurando os machões, finalmente o problema é resolvido com um amistoso maalêsh. Ninguém paga o prejuízo do outro. E para selar o acerto de contas, antes de irem embora, os brigões se dão três beijinhos na face. Maalêsh!

Na época em que estivemos no Egito, pudemos observar a aplicação prática dessa filosofia do maalêsh, muitas vezes relacionada ao desleixo e à irresponsabilidade. Uma vez vi-mos, espantados, um motociclista carregando um garotinho de uns 4 ou 5 anos, possivelmente seu filho, e fazendo malaba-rismos na avenida congestionada, andando em cima de uma só roda, a moto empinada. Nas comemorações - Copa do Mundo na Itália, fim da Guerra no Golfo -, era comum as crianças an-darem em cima dos capôs dos carros, ou agarradas nos estribos, sem que os adultos tomassem qualquer inicia-tiva para coibi-las.

Outras vezes, víamos pessoas atravessando as ruas movi-mentadas sem precaução alguma, os carros tendo que frear bruscamente. Um dia, perto de nossa residência, uma mulher literalmente deu uma pirueta no ar, ao ser atropelada quando tentava atravessar a Rua da Liga Árabe, uma avenida larga e moderna. Ela entrou na rua movimentada como se estivesse andando despreocupada dentro de sua casa. O motorista do carro que atropelou a mulher escapou por pouco de ser agredido por uma pequena multidão que apareceu de re-pente. Em vez de levarem a acidentada imediatamente ao hos-pital, ficaram discutindo em altos brados, como costuma acontecer nesses casos. Aproximamo-nos do grupo e mistu-rando algumas palavras de inglês e árabe, como mustáshfa (hospital), parece que conseguimos o intento: o grupo deixou de discutir e embarcou a mulher no carro para levar ao médico.

A filosofia do maalêsh também se observa na falta de cuidado com as coisas. Na chegada ao Egito, quando tivemos que procurar um apartamento para morar, as residências normalmente tinham péssimo aspecto, com a cozinha impregnada de gordura pelas paredes e o fogão caindo aos pedaços. Preferem comprar um fogão novo a manter o mesmo limpo.

Um exemplo de desleixo, de maalêsh, o jornal semanal egípcio Al-Ahram, editado em inglês, nos brindou em sua edição nº 16, de 13 Jun 91: uma página inteira es-tava com a impressão às avessas. Porém, o jornal não perdeu o rebolado. No número seguinte pediu desculpas e, com hu-mor, garantiu que em outro problema desse tipo um espelho acompanharia o jornal... Maalêsh!

Apesar de existir o fatalismo do maalêsh, convém ressaltar a solidariedade dos egípcios uns com os outros. Nas rodovias, quando ocorrem desastres de automóveis mais graves, com mortos ou feridos, todos procuram parar para prestar ajuda. Várias vezes observávamos, no Cairo, a presteza de todos em correr com extintores de incêndio para auxiliar um companheiro em apuros, com o carro em chamas, o que ocorre com freqüência devido ao forte calor e à falta de manutenção dos veículos.

Um ato de solidariedade típica do egípcio observamos por ocasião do incêndio em uma escola pública do pré-escolar, aos fundos da Embaixada Brasileira. Todos os transeuntes procuravam ajudar os bombeiros, muitas vezes mais atrapalhando do que auxiliando, porém todos solidários na tentativa de extinguir o incêndio. Os carros nas imediações foram levados para longe com as forças das mãos, não se sabe como. Houve até cenas hilárias, como do rapaz voluntário, que segurou uma mangueira de bombeiro para ajudar no combate ao fogo e deu o maior banho na multidão em volta quando a água foi ligada.

Outra expressão muito conhecida no Egito é bukra, int-chaalá (amanhã, se Deus quiser). Esse amanhã, muitas vezes, pode ser amanhã mesmo, semana que vem ou no próximo mês. Tem uma tabuleta nas repartições públicas onde se lê: 'Alá aben-çoa os pacientes'.

Intchaalá é uma expressão que se ouve em toda conversação árabe, praticamente em cada frase. Na rua, no rádio ou na TV, da boca dos jogadores de futebol durante a Copa de 1990 na Itália, assim como nas entrevistas dos soldados indo ou retornando da Guerra no Golfo Pérsico, pudemos observar que a expressão intchaalá era constantemente usada. Isso demonstra a grande religiosidade arraigada nos costumes árabes, que não esquecem de afirmar que tudo conse-guirão, se Allah assim o permitir.


O bakshish

A corrupção no Egito é bastante grande. Há sempre um 'jeitinho' para tudo. As gorjetas ou bakshish são solicita-das a todo momento, tanto pelos pobres pedintes e garotos 'flanelinhas' nas ruas junto aos automóveis, quanto nas re-partições públicas.

Na rua, o bakshish tem seu ritual. Você não deve entregar a nota de dinheiro aberta. Deve dobrá-la várias vezes ou enrolá-la como um cigarro de palha, escondê-la sob a palma da mão e entregar com discrição. Principalmente se for para um policial...

Uma vez, no Museu do Cairo, um soldado que estava de serviço se aproximou da gente e, muito atencioso, nos levou para uma sala ao lado, para nos dar algumas explicações, que não entendemos, sobre algumas estátuas do período ptolomaico e romano, longe da vista de seu superior. Para, logo em se-guida, na maior cara-de-pau, nos pedir o bakshish.

Quando da transferência do carro Fiat Fura, do Edison Netto - meu antecessor - para o meu nome, em 1990, o bakshish solicitado foi de 400 libras, mais ou menos 150 dólares. O carro deve ficar no nome do estrangeiro du-rante 5 anos para depois poder ser vendido. Como só ficamos 2 anos, tempo de nossa missão no exterior, esse foi o 'jeitinho' arranjado para eu comprar o carro. O mesmo valor foi pedido posteriormente, em 1992, quando tive que vender o carro. Porém, o problema todo daquela transferência do carro para o meu nome não foi só o bakshish citado. Após obter o nada consta refe-rente a multas e outras exigências, tive que voltar vá-rias vezes ao Departamento de Tráfego local, com o contínuo que trabalha na aditância, Salah, me ajudando como intér-prete.

A cada entrada naquela repartição pública tínhamos que preencher fichas e comprar selos (no Egito, até os cheques ainda usam selos). Lá dentro, em cada escaninho - e são muitos - tivemos que deixar uma 'contribuição'. O engenheiro que checou o número do chassis do carro, depois de receber 20 libras, exigiu mais 10. E a gente correndo de um lugar para outro, com-prando selos aqui, formulários acolá, e cada um querendo a sua parte. Ninguém tinha pressa, muitos funcionários andando de um lado para outro, uns tropeçando nos outros, copos de chá quente sendo trazidos a todo instante.

Depois de quase 2 horas perambulando como alma penada, já perto do meio-dia, o funcionário que tinha a chave do cofre onde ficam os formulários dos certificados de propriedade a serem preenchidos disse que o 'processo' es-tava dando muito trabalho a eles e que o expediente já tinha encerrado. Lógico, era a senha para mais um bakshish...

Por último, deram-me um papel para assinar, es-crito em árabe, onde eu não entendia nenhum rabisco. Pergun-tei ao Salah do que se tratava e ele me garantiu que era uma declaração de que eu havia resolvido todos os trâmites buro-cráticos do veículo e que eu não tinha pago nenhuma gratifi-cação naquela repartição. Fazer o quê? Maalêsh! Passei a entender por que Alá abençoa os pacientes...

A corrupção é mesmo uma praga mundial. Em 1991, o Egito chegou a possuir uma 'bancada do pó', com 10 deputados suspeitos de pertencerem ao tráfico de drogas. Por ocasião do encerramento do exercício financeiro - em julho -, era comum no Egito aparecer incêndios 'casuais' em muitas lojas comerciais e repartições públicas. Muitos alunos egípcios das escolas públicas só conseguem passar de ano se deixarem uma quantia 'por fora' nas mãos dos professores.

Essa corrupção generalizada talvez seja resultado dos péssimos salários pagos aos funcionários egípcios. Na época, um fun-cionário público começava ganhando 80 libras egípcias, o que dava menos de 25 dólares por mês. Esse era também o salário de um subtenente do exército egípcio, meu colega de graduação naquele tempo. Um general egípcio ganhava o equivalente a 200 dólares. E um soldado recruta, 5 libras, mais ou menos 1 dó-lar e meio. Um engenheiro formado, com vários anos de ser-viço, recebia em torno de 200 libras, como nos disse o gerente italiano da Fiat no Cairo, Domê-nico, casado com uma brasileira.

O leitor certamente dirá: 'Mas o que vale é o poder aquisitivo. O preço das coisas no Egito deve ser baixo'. Nem tanto assim. Senão vejamos.


A miséria da classe mais pobre

Embora uma parcela da população egípcia tivesse, na época em que lá estivemos, uma espécie de 'vale de ração', com o ob-jetivo de mensalmente adquirir uma cesta básica em armazéns públicos por um preço bastante baixo, devido aos subsídios do governo, os produtos não eram baratos para o povo em ge-ral. Agora, com a ingerência do FMI depois da Guerra do Golfo para sanear as fi-nanças do Egito e com o governo cortando todos os subsídios de alimentos e serviços públicos, além de manter um câmbio artificial entre a moeda egípcia e o dólar americano, a si-tuação é muito pior. Dois terços dos alimentos são importados. O 'povão' nunca come carne.


Vejamos alguns preços de produtos, à época, encontrados no Cairo, em libras egípcias (LE) e dólares americanos (US$):

- café em pó, 1 kg LE 12,80 ou US$ 3,86;
- café solúvel, 200 g LE 10,20 ou US$ 3,08;
- carne para bife, 1 kg LE 12,00 ou US$ 3,62;
- batata, 1 kg LE 1,25 ou US$ 0,37;
- açúcar (cristal), 1 kg LE 2,00 ou US$ 0,60;
- queijo, 1 kg LE 15,00 ou US$ 4,53;
- frango, 1 kg LE 5,00 ou US$ 1,51;
- banana d água, 1 kg LE 3,00 ou US$ 0,90;
- maçã local (ácida) 1 kg LE 3,00 ou US$ 0,90;
- maçã red, 1 Kg LE 12,00 ou US$ 3,62;
- uva branca, 1 kg LE 1,50 ou US$ 0,45;
- pão de forma LE 2,60 ou US$ 0,78;
- coca-cola, 2 l LE 3,00 ou US$ 0,90;
- leite em pó, 400 g LE 5,75 ou US$ 1,73.

O câmbio utilizado foi de 1 dólar para 3,31 libras, a co-tação de 26 de agosto de 1991, data em que terminei de escrever uma 'cartinha' de 29 folhas datilografadas para parentes e ami-gos no Brasil. Aquela 'cartinha' acabou se tornando o gérmen deste livro. Quando saímos do Egito, em abril de 1992, o câmbio era de 1 dólar para 3,33 libras. O câmbio pouco tinha mudado. Porém, o pão de forma tinha aumentado para 5 libras e o queijo para 17 libras o quilo.

Muitos egípcios se mostraram bastante criativos frente à alta dos preços. Como me confidenciou um amigo que recentemente voltou do Egito, alguns comerciantes sem escrúpulos descobriram um meio bastante simples de não aumentar os preços: diminuiram o tamanho das embalagens. Os preços do feijão e do arroz não subiram. Mas as embalagens foram decrescendo com o correr do tempo e por fim só continham 400 gramas do produto... Maalêsh!

A verdade é que o povo humilde do Egito só come carne uma vez por ano, na época da Festa do Sa-crifício, quando são abatidos carneiros e ovelhas para lembrar Abraão, que quase sacrificou seu próprio filho, ocasião em que os ára-bes mais ricos distribuem carne aos mais pobres. Senão, no resto do ano, a única alimentação da classe humilde é o aesh, aquele pão redondo, com algumas folhas de alface ou algumas fatias de tomate conseguidas nas 'xepas' de final de feira. E o indispensável e onipresente shái (chá), que pode ser local, do Sudão ou do Sri Lanka.

Um chá muito popular no Egito é o de karkadeh (ibíscus), de grande valor medicinal. Uma das bebidas preferidas durante o mês do ramadã, o ibíscus é rico em proteínas, minerais e óleo orgânico, e bom para asma e problemas do estômago.

Com os salários muito baixos e os preços nas nuvens - o mesmo que acontece no Brasil, onde os oligopólios e os co-merciantes sem escrúpulos espoliam o povo -, é fácil imaginar a penúria em que se encontra a população mais pobre do Egito. E pobreza, no Egito, é pobreza mesmo. As favelas cariocas, com muitas ca-sas em alvenaria, luz, água por perto, não se comparam, em conforto, aos ranchos de barro batido com estrutura em bambu e cobertura de folhas de tamareira que são os barracos en-contrados na periferia do Cairo, ao longo de muitos canais do Rio Nilo e no interior do país. Aquilo é, realmente, po-breza. Miséria semelhante vimos, também, em alguns barracos de refugiados palestinos na cidade de Jericó, quando viajamos a Israel.

Em compensação, a classe mais abastada costuma esban-jar. A mesa sempre tem que ser muito farta. Por isso, há muito desperdício. Foi o que pudemos notar quando íamos a restaurantes ou lanchonetes: invariavelmente, eles pediam uma quantidade enorme de pratos diferentes e deixavam tudo pela metade. Nós, que pedíamos só o que conseguíamos comer, devíamos ser taxados de sovinas.

Alguns preços no Egito eram melhores que no Brasil. Por exemplo, baixelas em aço inox, sapatos, camisas, roupas de couro. Sem dúvida, devido à baixa remuneração da mão-de-obra local. No Brasil deveria ser o mesmo, com os salários, de modo geral, muito baixos. O Brasil consegue a proeza de co-locar no mercado produtos com preços de 1º Mundo, pagando salários não de 3º mas de '5º Mundo'.


O casamento egípcio

A bem da verdade, o que conseguimos decifrar naquele mundo exótico e surrealista - o Egito - é que a classe mais alta, bem instruída, que tem parabólicas, que fala inglês e passa as férias na Europa, tem um modo de vida bem diferente da classe mais hu-milde, que deve ser a única a sofrer as desvantagens prove-nientes dessa sociedade onde os homens ditam as normas.

No Cairo, é uma coisa, a mulher é bastante liberal. No interior do Egito é bem diferente. Lá há ainda o costume do pai exigir um dote para entregar a filha ao futuro marido: pode ser dinheiro, ouro, camelos, bois, ovelhas, carneiros ou terras. Nos grandes centros isso já não acontece.

A virgindade da noiva é uma exigência que muitos egípcios não abrem mão, podendo o noivo anular o casamento se descobrir na noite das núpcias que sua mulher não é mais virgem. Há ainda o costume de muitos noivos exibirem o lençol manchado de sangue, na manhã seguinte à primeira noite, para provar aos familiares e aos amigos que sua mulher era virgem e que foi deflorada. Convém lembrar o aspecto religioso da virgindade, já que o Corão promete mulheres virgens ao fiel muçulmano que atingir o paraíso.

Os rapazes, desde muito cedo, são iniciados no jogo do sexo. Assim, muitos homens, ao se casarem com moças bem mais novas e virgens que não tiveram nenhuma experiência anterior, sentem a responsabilidade da primeira noite e muitas vezes não conseguem completar a relação. A pressão é muito grande para a virilidade do homem. Soumaya Namane Guessous, escritora marroquina que se notabilizou com o livro Além de Todo Pudor, afirmou que há regiões em seu país em que aparece um homem encarregado de intervir nesses casos para completar o defloramento.

A moça árabe, antes do katb al-kitab, o contrato formal do casamento, recebe o shabka (presente) do futuro marido, que são jóias em ouro e diamantes, após chegar a um acordo com o pai da moça. Nessa ocasião, é oficializado o noivado, com a leitura da fatihah, capítulo de abertura do Corão. A fa-mília do homem, geralmente, é responsável pela compra ou aluguel da casa. À família da mulher compete providenciar o mobiliário. No Egito, o divórcio é permitido e regulado por leis religiosas.

As jóias que a mulher recebe no noivado e durante sua vida de casada é, de certa forma, uma 'poupança' que ela vai fazendo ao longo da vida, para enfrentar algum revés. Alguns egípcios, com salários muito baixos, nos con-fidenciavam sua agonia em não poderem se tornar noivos, nem se casarem, pois o dinheiro não alcançava o dote exigido pela fu-tura noiva. Muitos se casam com idade avançada, quando só então conseguem dar o dote inicial à noiva.

Embora não seja mais freqüente no Cairo - aliás, muito difícil mesmo -, há casos em que um homem tem duas, três ou até quatro mulheres. Quatro mulheres é o máximo que o Corão permite que o fiel muçulmano tenha. O Amir (Emir, Príncipe) do Kuwait, quando esteve no Rio de Janeiro por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, trouxe 'apenas' 10 das 300 mulheres que possui em seu harém. A interpretação do Corão, para ele, assim como para os reis e príncipes da Península Arábica, é mais livre. Naqueles países, cada homem rico pos-sui muitas mulheres, algumas sendo meninas de 11 ou 12 anos compradas na Índia ou na Tailândia por 50 dólares. Em uma coisa o Corão é ta-xativo e não deixa dúvidas: todas as mulheres têm o mesmo direito, em todos os sentidos. Na sala, na cozinha, na cama.

A explicação que um egípcio me deu dessa vantajosa po-sição masculina era de que o profeta Muhammad (Maomé) permi-tia a poligamia por causa das guerras de conquistas islâmi-cas que havia na época, com um 'déficit' muito grande de ho-mens, que morriam nas guerras, deixando muitas viúvas e muita moça para 'titia'. Que era para evitar a prostituição e para que as mulheres sem marido não enlouquecessem. Eles de-vem ter gostado do costume: as guerras de conquista acabaram (com exceção de uma ou outra que acontece quando aparece um Saddam Hussein) e os haréns continuam a proliferar por lá, principalmente na Arábia Saudita e nos emirados do Golfo Pérsico. A bem da verdade, deve-se acrescentar que no Ocidente pratica-se uma poligamia mais sucinta, como é o caso daqueles que se divorciam várias vezes durante a vida para procurar novos parceiros. Ou escancarada, caso das pessoas casadas ou solteiras que trocam de parceiros com a mesma freqüência com que se troca uma cueca.

No Egito, a prática da poligamia se restringe às pes-soas de muitas posses e não é freqüente nos grandes centros urbanos. Há casos em que várias mulheres dividem a mesma casa com um só marido. E os filhos ficam agradecidos: em vez de uma, eles têm duas mães. Aceitam esse costume com mais naturalidade do que nós, porque desde muito pequenos já convivem com essa tradição.

A poligamia, embora permitida no Egito, traz múltiplos problemas. De acordo com estudos recentes, 50% dos homens que têm uma segunda mulher o fazem devido às diferenças entre eles e suas mulheres ou suas respectivas famílias e 14% porque a mulher não lhes pode dar criança ou lhes dá somente meninas. Outras razões incluem a viagem do marido para o exterior, quando a mulher não o quer acompanhar, ou então quando a mulher adquire doença crônica e não pode mais cumprir com as 'obrigações' de esposa. Deve-se destacar que na Turquia - um país muçulmano bastante liberal em seus costumes - a poligamia é proibida.

Casar jovem no Egito é um luxo somente acessível aos ricos. As moças egípcias, que tradicionalmente se casam muito novas, são, dessa forma, muitas vezes incentivadas a se casarem com homens bem mais velhos, às vezes já casados.

O casamento egípcio é muito bonito. O carro que trans-porta a noiva é todo enfeitado com flores e fitas coloridas. Normalmente, o casamento acontece às quintas-feiras, véspera do feriado semanal muçulmano.

A festa de casamento egípcio começa com uma 'procissão' na rua, a zaffa, com tambores, tamborins e trom-petes, que produzem uma música rítmica e ensurdecedora. Mulheres emitem um grito característico, o zagharit, como um trinado, ao agitarem rapidamente a língua - como os gritos de índios que se vê nos filmes de faroeste. Não sei como elas conseguem emitir aquele grito característico, qual a técnica utilizada. Mas é bem interessante.

Na frente da procissão vêm os músicos e dançarinos, vestidos com roupas brancas e vermelhas. As damas de honra, normalmente em número de seis, vestindo roupas brancas e carregando longas velas ou candelabros adornados com fitas e flores, marcham ao lado dos noivos, três de cada lado. Um pequeno garoto ou menina, à frente da zaffa, joga pétalas de rosas vermelhas sobre os noivos.

A noiva usa um longo vestido e véu brancos. A procissão chega ao local da recepção e o casal troca cumprimentos com os convidados, para depois se dirigir à kosha, poltrona pra-teada com grinaldas de flores, no alto de uma plataforma, para uma melhor vista do salão com os convidados.

Após a recepção, os noivos passam juntos a lailat al-dokla (a primeira noite), na mesma cidade onde ocorreu a re-cepção. Irão passar a noite num hotel ou num apartamento va-zio de algum amigo, porém nunca na casa dos pais, o que é con-siderado de mau agouro. A noiva dá de presente ao marido pi-jamas de seda, enquanto ele dá uma peça de jóia.

Enquanto os mais pobres fazem apenas uma zaffa na rua, os ricos alugam hotel 5 es-trelas, com custos muitas vezes chegando a mais de 60 mil dólares. A festa é de arromba: bufê sofisticado, lembranças em ouro para os convidados, bolo gigantesco e a khosha decorada que pa-rece um sonho, com cadeiras ricamente enfeitadas, onde ficam os noivos. A zaffa é feita em pleno salão, com muita música, cantos-solo de can-tores populares famosos, além dos gritos estridentes imitando índio. E - ponto alto de toda festa egípcia - não pode faltar a dança do ventre, com dan-çarinas escolhidas a dedo.

No oásis de Siwa, perto da Líbia, as celebrações de casamento duram de 7 a 15 dias. A noiva troca de vestido todo dia. Assim, a partir dos 9 anos, as meninas de Siwa começam a preparar os vestidos de noiva com a ajuda da mãe e da avó.
As noivas dos beduínos do Sinai vestem um véu chamado konaa, decorado com moedas de ouro ou prata, conforme o sta-tus financeiro da família. O boro, que cobre a face da noiva, é também decorado com ouro ou prata e é considerado parte do dote.
Cada governadoria do Egito tem sua dança nupcial característica. No Alto Egito, por exemplo, há a dança do tahtib, dança da vareta, na qual dançarinos esgrimam com suas varetas ao som do miz-mar, um instrumento de sopro rudimentar.


Al-oud, avô do violão

Um aspecto muito importante na cultura árabe é a mú-sica. Ao contrário da música ocidental, que normalmente é escrita em tom maior, as melodias árabes são escritas em uma escala exótica, fazendo com que as músicas pareçam soar em tom menor. Isso confere uma certa gravidade e tristeza à mú-sica. Enquanto nós usamos uma escala musical de tons e semi-tons, eles utilizam uma escala que tem intervalos, entre as notas, de até 1 tom e meio, parecendo um pouco com a escala cigana. No início, a música árabe chegava a agredir nossos tímpanos. Mas, aos poucos, fomos nos acostumando a tirar prazer da exuberante música oriental.

A música egípcia é executada, invariavelmente, em compasso quaternário. A cadência é um pouco parecida com o bolero, às vezes em ritmo lento, outras vezes em ritmo frenético. O que não pode faltar na música árabe são os infindáveis trinados, floreios e mais floreios emitidos pelos instrumentos musicais, que nos fazem lembrar um pouco a música barroca.

Os egípcios da época dos faraós nos legaram o alaúde, al-oud em árabe. Levado para a Espanha durante a dominação mourisca, o alaúde se popularizou em toda a Europa, modifi-cando-se através do tempo, tornando-se o avô do violão. O compositor Joham Sebastian Bach também escreveu músicas para alaúde.

Há 3 mil anos atrás, o alaúde era feito de casca de coco, e as cordas de crina e rabo de cavalo. Depois, as cordas eram feitas de tripa de gazela. É o mais antigo instrumento musical oriental de cordas e a base da maior parte das músi-cas e cantos árabes. Foi primeiro usado no antigo Egito, no período do Novo Reino (1580-1085 a.C.). Uma tumba faraônica, em Lúxor, pertencente a dois altos funcionários do faraó Tu-thmosis IV, mostra uma cena com homens e mulheres tocando alaúde.

Convém acrescentar que, além do alaúde, o antigo Egito conhecia ainda outros instrumentos musicais. Uma pintura faraônica mostra 3 mulheres tocando instrumentos distintos de música: a da direita com harpa, ainda sem a coluna para apoio; a do meio com uma espécie de violão com longo braço e uma única corda; e a da esquerda com uma espécie de flauta com 2 tubos. Até parece um rascunho da pintura cubista Os três músicos, de Picasso.

Atualmente, o alaúde é feito de nogueira, pessegueiro ou sândalo, e as cordas - em 5 ou 6 pares - de fios de nay-lon. A ponta do braço do alaúde, onde são fixadas as cordas, é 'quebrada', entortada para trás. O alaúde é fabricado em 3 tipos: o egípcio, o shami (região da Síria, Líbano, Palestina e Jordânia) e o turco. O alaúde egípcio é re-sistente e tem um som genuinamente 'oriental', enquanto o shami é mais fraco e fino. O alaúde turco fica no meio-termo. No Egito, o alaúde tem o formato de uma meia-pera, medindo a caixa 55 cm de largura e 84 cm de comprimento, e o braço 1/3 do comprimento da caixa.

Além do oud, outro instrumento musical bastante popular no Egito é a ribaba. Rudimentar, com uma ou duas cordas e parecida com o berimbau brasileiro, a ribaba é tocada com o auxílio de um arco. O som é estridente e o instrumento consegue emitir uma gama razoável de notas musicais. A ribaba é também um instrumento de auxílio para o recital da Sirra Al-Hilaliyya, a 'Ilíada' árabe, um poema épico que é ainda recitado no Alto Egito.

Músicos egípcios famosos como Abdel Wahab, considerado o pai da moderna música egípcia, falecido em 1991, utiliza-ram o oud de uma maneira muito particular, principalmente como instrumento-solo em orquestras. Poucas horas depois da Revolução de 23 de julho de 1952, o músico egípcio Al-Son-bati pegou seu alaúde e compôs, espontaneamente, a famosa canção nacional Misr, Misr, Misr Omuna (Egito, Egito, Egito nossa Mãe).


Sibha, o 'rosário' islâmico

A sibha era conhecida nos tempos antigos e usada como ornamentação e amuleto e, acredita-se, foi introduzida no mundo cristão e árabe pelos chineses e in-dianos.

Várias religiões usam a sibha de um modo ou de outro. As palavras podem ser diferentes mas o propósito é o mesmo: louvar a Deus. A palavra sibha provém de tasbeeh, uma palavra que re-conhece a perfeição de Alá através da fala de seus '99 nomes perfeitos'.

A sibha tem diferentes partes: as contas, um contador e uma mizana, que significa 'minarete' e está na parte mais alta da sibha.

Há dois tipos de sibha largamente conhecidos no isla-mismo: aquela de 33 contas e uma outra de 99 contas. A pri-meira é 1/3 da sibha total e é a mais utilizada pela popu-lação do Cairo. Víamos a profunda religiosidade dos egípcios muçulmanos rezando com seus 'rosários' nos mais diferentes locais: no táxi, nas ruas, sentados nas calçadas. Como sabemos, o fiel muçulmano não deve proferir o nome de Alá, porém os seus vários nomes perfeitos, como por exemplo: Al-Khabir (o Grande), Al-Alim (o Onisciente), Al-Basir (o Onipresente).

As contas da sibha podem ter diferentes formas, como a de oliva, de uma lágrima ou semente de trigo. As contas po-dem ser feitas com material barato, como plástico, ou mate-rial caro, como pedras preciosas ou ouro.

Os materiais mais utilizados para fabricar sibha no Egito são pó de âmbar, osso, madeira de sândalo e yousr, uma espécie de coral. No Egito, contas já lapidadas de rubi, jade, esmeralda e lazulita são importadas do Brasil, Itália, Alemanha e dos EUA.

Há quadros egípcios que contêm gravados os '99 nomes perfeitos de Alá', todos eles começando com o artigo 'Al'. Podem ser pequenos tapetes de lã ou seda pura, ou quadros com fundo negro com os nomes em dourado, encontrados com freqüência nas lojas e nas residências dos egípcios.


Dr. Ragab e a reinvenção do papiro

Os egípcios foram pioneiros em vários ramos da ciência, como medicina, astronomia e a escrita. A escrita egípcia co-meçou com simples pinturas de objetos (pictogramas), evoluiu para a pintura da idéia (ideograma) e ter-minou com o hieróglifo (fonograma) traçado no papiro, palavra que deu origem, mais tarde, ao vocábulo 'papel'. Há mais de 5.000 anos e num período de 3.000 mil anos dominaram esse método de imprimir caracteres e desenhos em papiro, até que em 105 de nossa era os chineses inventaram o papel. O papiro, a partir de então, entrou em desuso e sua técnica de fabricação foi esquecida. Além do Egito, o papiro crescia também na Síria e na Mesopotâmia.

A papirologia é uma ciência auxiliar da História, abrangendo documentos que datam do II milênio a.C. até o século XII d.C. O interesse pelos papiros começou em 1752, com as descobertas feitas nas ruínas de Herculano, onde foram encontrados mais de 1.800 rolos de pa-piro, incluindo obras filosóficas de Filodemo, cuja publicação só ocorreu em 1793.

Na aldeia de Medinet, na região de Fayyum, ao sul do Cairo, foram descobertos mais de 100 mil papiros. Desses, 70 mil foram adquiridos pelo arquiduque Rainer e mais tarde doados à Hofbibliotheck, atual Biblioteca Nacional de Viena, que tem a maior coleção do mundo.

Encontra-se em papiro a maior parte do que se conhece da literatura do Egito antigo, incluindo os textos litúr-gico-funerários do Livro dos Mortos. Em papiro conhecemos elementos para a história econômica, política e administra-tiva da antigüidade, bem como estudos matemáticos, tratados médicos, princípios de zoologia e botânica.

Para os estudos bíblicos, a papirologia se mostrou de grande importância: é em papiro que se conhece o mais antigo texto dos Evangelhos, o fragmento de João, 18: 31-33 e 37-38, além de escritos apócrifos e dos Evangelhos Coptas.

O Dr. Hassan Ragab, nascido no ano de 1911 em Helwan, sul do Cairo, graduou-se em engenharia, com estudos suple-mentares em Paris. Foi adido militar em Washington e embai-xador na China, onde pela primeira vez se interessou pelo papiro, vendo a fabricação do papel-bambu dos chineses.

O Dr. Ragab, a partir dos anos 60, começou a pesquisar o segredo da manufatura do papiro. A planta só foi encon-trada por Ragab no sul do Sudão e na Etiópia, de onde trouxe as pri-meiras mudas que tem na sua plantação de papiro, na chamada 'Ilha Faraônica', no Rio Nilo, junto ao Cairo. Após vários anos de pesquisas, o Dr. Ragab conseguiu descobrir a técnica de fabricação do papiro que é hoje utilizada por muitos centros produtores nas imediações do Cairo. A 'Ilha Faraônica' é as-sim chamada porque o Dr. Ragab instalou na mesma uma espécie de Disneyworld local, com dezenas de atores que se vestem como os antigos egípcios e cultivam a terra como nos tempos faraônicos. Uma festa para as filmadoras dos turistas.

A planta de papiro é na realidade um talo longo, de 2 a 3 m de altura, com folhas ralas na parte su-perior. Além do papel-papiro, a planta também era utilizada pelos antigos egípcios para a fabricação de barcos.

Para a confecção do papiro, corta-se o talo da planta em fatias e deixa-se na água por algum tempo para dissolver materiais estranhos, principalmente glicose (açúcar). Em se-guida, as tiras são entrelaçadas, horizontal e vertical-mente, e colocadas numa prensa para uma perfeita adesão. Não há necessidade de cola. A própria planta possui substância para essa adesão. Depois de seco, o papel-papiro é cortado em tamanhos diversos e os grandes centros de produção contratam um pequeno batalhão de pintores, principalmente estudantes da Faculdade de Belas-Artes do Cairo.

No caminho das pirâmides de Gizé até as pirâmides de Sakara, junto a um canal do Nilo para a irrigação, encontram-se os mais importantes centros produtores de papiros do Egito. Disputam a preferência dos turistas papiros simples, que na rua custam 1 libra, até os que cobrem uma parede inteira e valem um pequena fortuna. Antigos coo-peradores do Dr. Ragab, depois de aprenderem o ofício, abri-ram suas próprias fábricas. No mesmo caminho podem ser visitados também grandes centros produtores de tapetes. Embora não tenham a fama dos tapetes persas, turcos ou paquistaneses, há tapetes egípcios para todos os gostos, desde tapetes minúsculos de lã, que custam 60 dólares, até os luxuosos tapetes 2x3 m, em seda pura, que custam até 20 mil dólares.

Pela durabilidade do material e por causa de sua signi-ficação histórica, importantes documentos governamentais egípcios são, ainda hoje, redigidos em papiro. Anos atrás, no Brasil, muitos diplomas de engenheiros e médicos eram também feitos em papiro, como me confidenciou um amigo.

Conhecemos os Institutos de Papiro Dr. Ragab, no Cairo e em Lúxor, ambos os museus instalados em barcos ancorados no Nilo. Nesses museus pudemos observar muitos desenhos em papiro, tanto reproduções de cenas faraônicas encontradas em templos e tumbas, como motivos muçulmanos do Corão e até desenhos coptas, como a Sagrada Família que fugiu para o Egito. Nos museus há fo-tos do Dr. Ragab com personalidades do mundo inteiro, como Henry Kissinger e Jimmy Carter, demonstrando o prestígio do inventor.

Há também os espertalhões que, ao invés de utilizarem a planta de papiro, fazem uso de folhas de bananeira ou cana, obtendo um produto semelhante, porém de péssima qualidade e nenhuma durabilidade.


Os núbios - um povo que perdeu sua terra

Em 1971, foi inaugurada a Represa de As-suã, construída com ajuda técnica e financeira da antiga União Soviética. A Represa inundou todo o território fértil da Núbia, no Vale do Nilo, originando-se a formação do Lago Násser, de 500 km de extensão. O termo 'núbio' é generica-mente aplicado ao povo que habitava entre a 1ª Catarata, em Assuã, e Dongola, no Sudão. A Represa passou a regularizar a vazão do Rio Nilo, evitando as enchentes. Porém, o Vale do Nilo, de Assuã até o Delta, passou a não mais receber a pre-ciosa terra negra, o húmus que as enchentes traziam e ferti-lizavam o Vale. Com isso, os terrenos estão ficando muito salinizados e não se sabe ainda o impacto que isso poderá ter no futuro.

Para evitar a submersão de numerosos templos e estátuas faraônicas, devido à construção da Represa de Assuã, a UNESCO promoveu uma gigantesca operação de engenharia, fa-zendo resgate de numerosas obras e transferindo de local templos inteiros. O complexo de Abu Simbel, o maior monu-mento no local, com templos e estátuas de Ramsés II medindo 20 m de altura, foi cortado em enormes blocos e reconstruído nas imediações, em local mais alto. O templo de Philae, coberto pelas águas da antiga Represa de Assuã, construída em 1902, também foi desmontado pela UNESCO e reconstruído, pedra sobre pedra, em outra ilha, pró-xima do local original.

Em Abu Simbel observa-se outra prova do avanço da as-tronomia no antigo Egito: nos dias 20 de fevereiro e 20 de outubro, dias do equinócio, os raios do sol passam por uma porta e iluminam uma estátua do faraó no fundo do templo.

Durante os 10 anos antes do final da construção da Grande Represa, a população total da Núbia foi re-tirada de sua terra natal. Uma metade foi colocada no Egito, em Kom Ombo, 15 km ao norte de Assuã e a outra metade assen-tada no nordeste do Sudão, em Qashim Al-Girba. Anterior-mente, outras represas menores, construídas a partir de 1902 e cada vez mais altas, começaram a inundar as terras núbias e seu povo tinha que, cada vez mais, se afastar de seu torrão natal.

Os núbios são facilmente reconhecidos no Egito pela sua pele preta, mas sem os traços negróides da África subsaa-riana. Os núbios são altos e esguios, de olhos amendoados, nariz pequeno e lábios finos. Até hoje mantêm suas tradições e sua linguagem própria e poucos se casam com egípcios propriamente ditos.

Os árabes conquistaram a Núbia no século VII e retiraram-se após concluirem um tratado com o rei núbio cristão, que durou 600 anos. Os núbios concordaram em enviar, todos os anos, 350 escravos ao Cairo em troca de alimentos, cava-los e roupa. A partir do século XI, começaram a se estabele-cer tribos árabes na área, que se integraram aos núbios, vindo a ser conhecidos como Beni Kanz (Filhos de Kanz), um nome ainda aplicado aos núbios do norte.

Os núbios sempre foram uma presença constante no Egito, como os barqueiros do Nilo junto às rochas graníticas de As-suã, os guardas dos monumentos do Alto Egito, empregados domés-ticos, copeiros e cozinheiros. Atualmente, muitos se desta-cam como doutores e cientistas provenientes das melhores universidades egípcias.

As mulheres núbias são conhecidas como exímias artífi-ces de joalheria feminina, principalmente aquela feita de contas de vidro. Entre seus produtos destacam-se as tiras de taha, fitas de contas afixadas na frente do véu preto que as mulheres egípcias usam, criando um efeito bonito para a ca-beça. As taha são usadas, ainda, como cinto e nas golas em 'V' de vestimentas femininas. As núbias costumam, ainda, fazer tranças nos cabelos, umas nas outras.

Uma outra marca registrada da cultura núbia são os ta-petes de lã ou algodão, de acabamento rústico. Normalmente, os tapetes núbios retratam cenas árabes, com camelos, tama-reiras, casas com coberturas abobadadas - típicas da região -, em tons preto-e-branco, destacando-se ainda as figuras hu-manas estampadas em tapetes, como se fossem máscaras de atores teatrais.


Criação de cabras em apartamento

Mohandeseen era o bairro onde morávamos, na cidade de Gizé, agora abocanhada pelo Grande Cairo. Nome proveniente de muhandis (engenheiro), o 'bairro dos engenheiros' é bastante novo ainda, moderno, muitos espigões estão em fase de cons-trução.

Há 20 anos atrás a área comportava granjas, hortas e pomares. Muitos dos antigos colonos vende-ram suas terras para construção de prédios, ganhando 2 ou 3 apartamentos em troca. Alguns granjeiros, até hoje, não mu-daram de profissão, embora morem em edifícios. Continuam criando suas cabras e galinhas. Só com um detalhe: criam os bichos dentro dos apartamentos em que moram. Do apartamento de uma antiga Conselheira da Embaixada Brasileira, podiam ser vistas cabras recolhidas numa varanda, num prédio em frente. As cabras e galinhas, como os outros morado-res do prédio, têm direito a utilizar o elevador...

Pouco depois que chegamos ao Cairo, ouvimos, à noite, alguns estampidos. Minha mulher logo disse que eram tiros. A princípio eu não quis acreditar. Várias vezes à noite voltá-vamos a ouvir tiros, sem saber o que acontecia. Al-gum tempo depois, consultando um mapa da cidade, editado em inglês, matamos a charada: tratava-se do Shooting Club (Clube de Tiro), onde se praticava tiro ao alvo em plena madrugada.

E tiro também se ouvia fora daquele Clube. Os filhos gêmeos do adido militar, uma noite, viram um soldado ati-rando num cão, em plena rua da cidade. O tiro atingiu o ani-mal, que correu ganindo e mancando. Depois eu soube que era normal esse tipo de 'limpeza', os soldados não se importando no risco de uma bala perdida atingir alguma pessoa.


Duas mulheres e vinte camelos

Apesar de se considerarem muito independentes - e o são, em relação a outros países árabes -, as mulheres egíp-cias ainda são bastante discriminadas. Há muito preconceito. Embora possam ter seus próprios bens e não precisar adotar o nome do marido, elas têm liberdade bastante restrita.

As egípcias não podem freqüentar certas mesquitas, não são vistas em cafés, são separadas em algumas escolas e há filas diferentes, para homens e mulheres, para pagamentos em ban-cos.

Apesar de pertencer a uma sociedade machista, no inte-rior do Egito 49% das mulheres, entre a classe mais pobre, são chefes de família e o salário só depende delas. Os moti-vos vão da morte do pai de família, ou da emigração dos fel-lahin (camponeses) para a cidade ou para o estrangeiro em busca de futuro melhor.

Minha mulher Nice, uma vez, me disse que estava admi-rada com o aspecto geral das mulheres egípcias. A pele do rosto e das pernas era bonita, não tinham varizes e os seios pareciam ser bem durinhos. Passamos a imaginar que tudo isso era próprio do clima seco, onde tudo é mais rijo. Porém, andando um dia pelo centro da cidade, ao passarmos em frente a uma vitrine, deciframos a charada dos lindos seios das mulheres egípcias. Não que elas estejam familiarizadas com os soutiens hi-tech da atualidade, que realçam os seios. Elas, ainda hoje, utilizam enormes porta-seios, verdadeiros corpetes da época de nossas avós.

A mulher egípcia não é vista com bons olhos quando ar-ranja um emprego. Mesmo os jornais menos conservadores não deixam de lembrar que os poucos empregos que se criam são cada vez mais preenchidos por mulheres, que deveriam cuidar das crianças em casa, para que os homens não ficassem desem-pregados. No Egito, o desemprego é crônico e muitos ho-mens casados vão tentar melhor sorte no estrangeiro, princi-palmente nos ricos países do Golfo Pérsico. E os jovens com alguma instrução, não sendo filhos de famílias ricas, sonham em se estabelecer na Austrália, Canadá, Alemanha ou Estados Unidos.

A prostituição é mais freqüente do que se possa imagi-nar, pela facilidade da entrada a hotéis, sem identificação alguma. E é comum se ver mulher bem vestida saltar de táxi e entrar em Mercedes ou algum outro carrão, em locais escuros ou pouco iluminados. Como se vê, o que vale, muitas vezes, é a apa-rência. Aliás, já diz um ditado: 'Quanto maior o vestido, mais sujeira ele oculta'. No Egito, para muitas mulheres, cai como uma luva.

As estrangeiras, de modo geral, têm má fama. Os egípcios acham que todas elas são de vida fácil, prostitutas. O pior é que eles têm alguma razão, porque um bocado de gente vai até o Egito para 'fazer a vida'. Há muitos cassinos, corre muito dólar, princi-palmente quando aparecem os sauditas no Cairo para farrear. As brasileiras têm fama de serem 'muito quentes'. Algumas que passaram pelo Cairo deram o que falar...

Devido a isso, eu tinha que conviver com os egípcios com bastante diplomacia. Não eram todos. Mas uns poucos, às vezes, importunavam minha mulher, dizendo alguma piadinha ou soltando um assobio babaca, mesmo eu estando de braço dado com ela. Melhor era fazer de conta que eu não estava ou-vindo. Porém, vez por outra, o saco estourava e eu gritava bem alto um ibn sharmuta! (efedepê). O sujeito olhava abos-tado, mas não esboçava nenhuma reação.

Um dia um desses egípcios inconvenientes seguiu minha mulher e minha filha até em casa e passou a cantarolar uma milonga árabe do lado de fora da porta, como se fosse um autêntico seresteiro. Minha mulher teve que chamar a Zina, mulher do bauab (porteiro), para botar o sujeito para correr.

No famoso bazar do Khan Al-Khalili, aconteceu um fato que não posso deixar de registrar. Enquanto víamos alguns objetos em metal numa loja, seu dono me propôs, à queima roupa, a troca de minha mulher pelas duas que ele tinha e mais 20 camelos... Não sabia se ria, agredia ou xingava o su-jeito. Mas perguntei se a mãe dele vinha junto. Como o leitor sabe, tocar no nome da mãe é sempre meter o dedo na ferida, no Brasil, no Egito, em qualquer parte do mundo.

Brincando, eu disse à minha mulher que daria para come-çar um bom negócio no Brasil, quando eu retornasse, se fi-casse de posse das 2 mulheres e dos 20 camelos: montaria um circo. Enquanto as crianças andassem a camelo, os adultos poderiam se deliciar com a dança do ventre...


Chuva no telhado, pingo na lata

No Cairo nunca chove, a não ser durante o inverno, principalmente em dezembro e janeiro. Mas é uma garoazinha bem sem-vergonha que não molha nada. Chuva mesmo, para va-ler, não poderá haver nunca no Cairo. Seria um caos total para a cidade. A inesperada tromba d água que caiu na região de Assiut, em 1994, provocando incêndio em um depósito de combustível e matando mais de 500 pessoas, atesta bem a falta de condições do Egito em enfrentar uma chuva forte.

As varandas dos apartamentos não possuem ralos. Da mesma forma, as ruas não possuem galerias pluviais nem são construídas de modo a facilitar o escoamento das águas du-rante a chuva. Quando uma chuva mais forte cai sobre a ci-dade, tudo vira uma piscina de água imunda que dá gosto de ver. Se você ficar debaixo de uma árvore durante um chu-visco, fica todo salpicado de sujeira, por causa da poeira e da fuligem da poluição que haviam se grudado nas folhas da árvore e se desprendem com a chuvinha.

As primeiras chuvas são verdadeiras chuvas ácidas. A poluição acumulada nas nuvens desce sobre a cidade e os campos de plantação, causando danos à saúde das pessoas.

Os egípcios adoram o inverno, quando podem ver alguma coisa parecida com chuva. Porém, eles não andam pelas ruas com a cara levantada aos céus para pegar as sagradas gotas de água no rosto - como escreveu a revista Veja em uma de suas reportagens.

Num homework (dever de casa) do British Council, onde eu estudava inglês, um egípcio escreveu uma redação bem interessante. Com o título fornecido pelo professor, If I were a millionaire, o aluno escreveu que, se milionário fosse, compraria uma mansão à beira de um lago, com muito verde em volta, neve nas montanhas, em um lugar que chovesse bastante. Queria ter o prazer de ouvir a chuva caindo no telhado e gotas de água pingando numa lata. Todo o sonho do egípcio era ouvir, à noite, com a cabeça junto ao travesseiro, o singelo pingar da chuva numa simples latinha...


Inglês, o esperanto que deu certo

O árabe desisti de aprender no Egito. Sabia um pouco que havia estudado com dificuldade, chegava no mercado e co-meçava a falar em árabe, iniciando com os cumprimentos salám alíkum (a paz esteja contigo) ou sabáh al-hír (bom-dia). Po-rém, os egípcios apenas se limitavam em me retribuir os cum-primentos em árabe. Vendo a minha cara de gringo, eles todos logo queriam treinar seu inglês mixuruca como o meu e o resto da con-versa era, invariavelmente, em inglês.

A pronúncia de muitos egípcios que falam inglês é lastimável. Tra-tavam-nos por 'míssiu', querendo dizer mister (senhor). Logo que chegamos ao Cairo, passando por uma quitanda, ao comprar umas frutas, o egípcio disse que eram 'siri baun'. Que-brei a cabeça para saber o que isso significava, mas quando ele me mostrou três dedos entendi que eram three pounds (três libras). Aquele 'th' inglês, que o Lula, o Vicentinho e o Ro-mário pronunciam tão bem, eles convertem em 'z' ou 's' e es-tamos conversados. Nas aulas de inglês, quando a professora pedia para repetirmos tudo o que falava, quando dizia alto-gether (todos juntos), o coro árabe era sempre o mesmo: 'oltuguézer'.

Quando cheguei no Egito, pensei que sabia alguma coisa da língua inglesa. Mas foi uma decepção. Você ouvindo as pessoas falando rapidamente, tendo que responder em seguida, é outra história. Hoje, embora não fale com muita fluência, já consigo entender bem uma conversação, noticiá-rios na TV e no rádio, além de ler revistas e jornais sem nenhum problema. No Egito, até me arrisquei a alçar vôos mais altos, lendo Death on the Nile (Morte no Nilo), de Agatha Christie, e The Beginning and the End (O Começo e o Fim), do escritor egípcio Naguib Mahfouz, vencedor do prêmio Nobel de Litera-tura em 1988. O que me fez perguntar: quando nosso escritor Jorge Amado, bastante conhecido no Egito, irá também receber essa mesma honraria?

Já que o árabe era difícil de aprender devido à falta de colabo-ração dos egípcios, passei a me dedicar ao inglês mais a fundo. Os egípcios já tiveram o francês como sua segunda língua, devido à influência napoleônica. Mas, no momento, o inglês é a língua estrangeira mais importante para eles, de-vido à longa ocupação britânica sobre aquele país. O inglês é tão importante no Egito que até o dinheiro, a libra egípcia, tem numa face desenhos faraônicos e tudo escrito em inglês. Noutra face, com desenhos islâmicos, o valor é escrito em árabe. As placas, nas ruas da cidade e no interior do país, têm letreiros em inglês e árabe, muitas vezes só em inglês. As grandes lojas mostram, também, letreiros bilíngües, por vezes trilíngües.

A Nice e eu estudamos no British Council, da Embaixada Britânica, e o Wagner e a Cristiane, no International Lan-guage Institute, o ILI. É que no British só aceitavam pes-soas com mais de 16 anos e o Wagner tinha, na época, 11 anos e a Cris, 9.

Observamos o rápido desenvolvimento de nossas crianças no inglês, a Cris tendo a melhor pronúncia em casa. O que prova que quanto mais cedo você começa o aprendizado de uma língua estrangeira, melhor. Ela até fez uma pequena poesia, como dever de casa. Você quer conhecer?

'What is this?
What is that?
It s a cat,
It isn t fat.'

Minha mulher também teve um desempenho muito bom no British, estudando dois níveis completos. E ficou craque. Por duas ou três vezes, ouvi a Nice sonhar em inglês...

Para meu aperfeiçoamento, procurava ler de tudo em in-glês, além de ouvir os noticiários de TV e da rádio BBC de Londres. Lia regularmente as revistas Time e Newsweek e dia-riamente os jornais Egyptian Gazette e International Herald Tribune. Lia, também, o jornal semanal Al-Ahram (As Pirâmides), editado em inglês a partir de 28 de fevereiro de 1991. Esse jornal me deu muitas infor-mações valiosas sobre a vida egípcia, o dia-a-dia das pes-soas, locais de interesse turístico, tanto da cultura árabe, copta, quanto do antigo reino dos faraós. Muitos tópicos rela-tados neste livro tiveram aprofundamento extraído do Al-Ah-ram.

Há no Cairo três canais de televisão, todos de propriedade do governo. No Canal II podíamos ouvir noticiários em francês, às 19 horas, e em inglês, às 20 horas. Era um pro-grama bastante compacto, de 20 minutos, que só mostrava imagens da Europa e dos EUA, além do Egito e do mundo árabe. Dificilmente apare-cia alguma imagem sobre o Brasil. A TV egípcia é muito pre-cária, há intermináveis lacunas entre um programa e outro, com a tela em azul. A técnica é rudi-mentar, com os apresentadores lendo diretamente os textos no papel sobre a mesa. Nada de teleprompter. Lá pudemos constatar, bem como em Roma e Paris, que as emissoras de TV no Brasil estão entre as primei-ras do mundo, esbanjando técnica e qualidade. Não ficam de-vendo nada para ninguém. Porém, levam mole o troféu de programação mais irresponsável do planeta. O lixo que se vê nelas não é brincadeira.

Após a invasão iraquiana no Kuwait, em 2 de agosto de 1990, a TV egípcia transmitia, durante algumas horas diá-rias, o canal americano CNN. Esse canal era o nosso referen-cial durante a Guerra do Golfo, já que o noticiário local é censurado e pouco mostrava sobre o assunto. Porém, em maté-ria de informação, a CNN também foi uma decepção. Todos sa-bemos o quanto os americanos dificultavam o acesso às infor-mações, segundo eles, por motivo de segurança.

To improve (para aperfeiçoar) meu inglês, sempre que podia eu escutava a BBC de Londres. Durante o conflito no Golfo Pérsico, todo dia, às 8 horas da manhã (6 horas em Londres), eu sintonizava o rádio naquela emissora famosa e era com grande expectativa que ouvia a introdução: This is London. It s 6 o clock Greenwich Mean Time. (Aqui é Londres. São 6 horas, hora média de Greenwich). E a apreensão em saber dos últimos acontecimentos, mais um Scud caído em Israel ou na Arábia Saudita, mais 3 mil incursões aéreas dos aliados con-tra o Iraque, Israel prometendo revidar a agressão.

Através da BBC ouvimos também algumas notícias do Brasil, na maioria das vezes nada agradáveis, como a matança de crianças, conflitos de terras, a morte de mais um líder sindical, choques de ga-rimpeiros com índios. Também tivemos notícias boas, como as 4 vitórias consecutivas de Ayrton Senna sobre Nigel Mansel em 1991, e que acabou se consa-grando campeão na Fórmula 1.

Durante uma aula de inglês com a professora Yvone, de origem britânica, a pergunta inicial era o que significa national anthem. Por acaso eu era o único a saber que era 'hino nacional' e a professora pediu para eu explicar aos outros que não sabiam. Fiquei surpreso quando a professora me pediu para cantar o nosso Hino Nacional. Foi com bastante emoção que comecei a cantar nosso lindo Hino, apesar de ter ficado com receio de não sabê-lo mais por com-pleto. Felizmente, minha memória não falhou e fui até o fim da primeira estrofe sem problemas. Fui aplaudido por todos. Interes-sante é observar a coincidência do nosso Hino da Independên-cia com o Hino Nacional Egípcio: a primeira frase musical, em am-bos os hinos, é muito semelhante.

Uma das coisas boas que eu aprendi na caserna foi dar valor aos símbolos pátrios, tão esquecidos dos nossos colégios hoje em dia. Até Educação Moral e Cívica tiraram da escola, porque os nossos doutos educandos de hoje acharam que aquela disciplina foi obra dos governos militares e, portanto, deve ser enterrada para sempre.

Uma coisa me deixou convicto de vez, visitando outras localidades, como Israel, Roma e Paris. O inglês é mesmo fundamental no mundo moderno. Muitos podem até não gostar do way of life americano, de seu poder se estendendo sobre o mundo todo como a única superpotência que sobreviveu à guerra fria. Porém, da Europa à China, da Escandinávia ao Pólo Sul, você não pode passar sem essa maravilhosa língua que quebra todas as barreiras culturais, se faz entender e é entendido nessa nossa formidável Torre de Babel que é o pla-neta Terra.

Neste nosso vasto Brasil, unido pela mesma linguagem, não sentimos falta de qualquer outro idioma. Com a entrada em vigor do MERCOSUL, passaremos a sen-tir a necessidade de sabermos um pouco mais de espanhol, talvez mais do que o inglês. Porém, embora em nosso país o inglês só sirva para guias turísticos, estudiosos, empresários, ricaços e artistas que viajam muito pelo mundo, que me desculpe Zamenhof, mas o inglês é na rea-lidade o esperanto que deu certo.

Um detalhe me chamou a atenção no Egito. Quando faláva-mos com italianos ou espanhóis, passei a observar que eu en-tendia mais facilmente a linguagem deles do que eles a nossa. Analisando melhor, é fácil entender porque temos um vocabulário mais rico que o deles. Como Portugal sempre foi muito mais influenciado pe-los países vizinhos do que conseguiu influen-ciar a estes, o vocabulário português tornou-se extremamente rico, talvez um dos mais completos do planeta, com muitas palavras extraídas do espanhol, do francês e do italiano. Sem mencionar os árabes, de quem recebemos inúmeros vocábulos pelo longo pe-ríodo em que dominaram a Península Ibérica.


A 11ª praga do Egito

Sabemos pela Bíblia que após as 10 pragas que afetaram todo o povo egípcio, o Faraó - provavelmente Ramsés II - per-mitiu que os hebreus partissem. Mas, depois que os he-breus desapareceram atrás das dunas de areia, o Faraó perse-guiu-os e seu exército acabou por se afogar no Mar Vermelho, depois que todos os hebreus tinham passado a salvo.

Os hebreus trabalhavam como escravos na construção de uma cidade chamada Pi-Ramessés, citada na Bíblia, nome pro-veniente de Ramsés. Aquela cidade ficava no sítio da antiga Avaris, capital dos hicsos, perto de um canal ligado ao Nilo, ao norte da atual cidade de Ismailia.

Ismailia é, atualmente, cortada pelo Canal de Suez e possui muitos lagos em suas imediações. Perto de Port Said, já próximo ao Mediterrâneo, há também muitos desses lagos salgados. Segundo um livro que li sobre Ramsés II, que esqueci de anotar, os hebreus, quando saíram de Pi-Ramesés em direção ao Sinai, não pas-saram propriamente pelo Mar Vermelho, bem mais ao sul. Te-riam atravessado um desses lagos salgados, que tinha li-gação com aquele Mar. Aproveitando a maré baixa, passaram sem dificuldades. E quando o exército do faraó tentou fazer o mesmo, a maré estava subindo e um vento forte poderia ter revolvido com vigor aquelas águas, ocasionando o afogamento dos soldados. Não se pode afirmar se essa versão é verdadeira. Porém, o simples fato de os he-breus terem passado incólumes e os egípcios terem se afogado já demonstra um milagre.

Ainda hoje, quando vemos campanhas como a do Betinho, contra a fome, acontece também o milagre da multiplicação dos pães, que aparecem para matar a fome de muitos famintos, a roupa para vestir muitos maltrapilhos, a população se to-cando e colaborando de alguma forma.

E a 11ª praga do Egito, qual seria?

No período do governo real que antecedeu a Revolução de 1952, houve quem trouxesse da Argentina uma planta ornamental de nome 'jacinto aquático', que servia para embelezar os lagos dos palácios e casarões do Egito. É uma planta que cresce muito rápido naquele clima quente e úmido, e logo se alastra como praga.

Quando essa planta começou a se desenvolver nos inúme-ros canais que levam a água do Nilo para a irrigação das plantações, começou a ser chamada de 'a 11ª praga do Egito'. O jacinto aquático rapidamente cobre os canais, seus baraços se entrelaçam formando um tapete verde rígido que impede a navegação dos barcos. Além desse inconveniente, a extensa rede formada por esse vegetal consome uma quantidade de água fenomenal. Em contrapartida, o Egito bem que poderia ter mandado para a Argentina, como castigo, e não para o Brasil, o aedes Aegypti, o mosquito transmissor da dengue...

O trabalho para erradicar essa praga é tarefa perdida, ao menos do modo braçal como é feito. Esse tapete verde que cobre os canais não deixa de ter alguma utilidade: é um fil-tro natural para purificar a água imunda e fétida que o Nilo apresenta na região do Cairo. A trama desse tapete é tão firme e resistente que consegue sustentar pessoas. Os egípcios, sempre prontos para exagerar qualquer coisa, afirmam que muitos desses canais podem ser atravessados por jipes, tão resistente é o emaranhado do ja-cinto aquático...


Um corpo que cai

Há muitos edifícios sendo construídos no Cairo. Fica difícil imaginar de onde vem tanto dinheiro, já que o país é pobre e a infitah, a política de 'portas abertas', é só relativa e ainda espanta investidores estrangeiros.

Os arranha-céus que crescem em todo o Grande Cairo são feitos sem nenhuma segurança para os operários. Os andaimes são improvisados com troncos de eucalipto e cordas.

Segundo nos afirmaram várias pessoas que moram no Cairo há bastante tempo, muitos operários já despencaram de pré-dios que hoje emolduram os cartões postais junto ao Nilo, como o Hotel Ramsés Hilton e as torres gêmeas, de concreto e vidro fumê, do Misr Bank (Banco Egípcio), muito parecidas - embora bem menores - com as do World Trade Center de Nova Iorque, que tremeram após um atentado terrorista.

O desleixo com a segurança não acontece só em prédios em construção. Na semana em que chegamos ao Cairo, próximo à Embaixada do Brasil despencou uma janela de ferro, matando um homem que passava na calçada.

Alguns meses antes de retornarmos ao Brasil, começaram reformas no prédio da Embaixada do Brasil, no último dos seus 13 andares. Você acertou, leitor. Caiu mesmo alguma coisa do prédio. Mas não foi um operário. Foram restos de cimento e pedaços de tijolo que num dia quebraram o vidro do Mercedes-Benz do nosso Embaixador e no outro, em 6 de novembro de 1991, o vidro traseiro do nosso Fiat. Nesse mesmo dia, o Emir do Kuwait fazia pose para as câmaras e apagava, atra-vés de controle remoto, o 732º e último poço de petróleo que ainda ardia, incendiado por Saddam Hussein.

Arguído, o engenheiro dono do apartamento em obras nos deu uma explicação bem razoável quando apresentei a conta do pre-juízo: ele não era culpado pelo acidente, não havia jogado nada de propósito em cima do carro, lamentava muito o ocor-rido e nada podia fazer. Traduzindo, não ia pagar uma pias-tra.

Fui então dar queixa na polícia, sabendo de antemão que não ia resolver nada. Apenas como precaução, já que as obras continuavam e o carro poderia sofrer prejuízo mais grave no futuro.

Chegamos à delegacia e um funcionário nos informou que logo um tenente nos atenderia. Como demorava, perguntei ao Salah, que levara como intérprete, o motivo da longa espera. Após as explicações, o Salah traduziu informando que o te-nente estava rezando na mesquita e que já estava vindo.

Depois de meia hora, finalmente fui atendido. O tenente achou interessante a minha foto da carteira de motorista, que estava de viés. Quando mandei plastificar o documento, o operador da máquina tirou os grampos que prendiam a foto e esta correu um pouco durante a plastificação. Como o Egito é a terra do maalêsh, do 'deixa prá lá', usei aquele docu-mento durante os dois anos que lá estive, sem nenhum pro-blema. Até carteira de motorista internacional tirei com aquele documento.

Enquanto me inquiria, toda hora um coronel numa sala distante chamava o tenente e este, após pegar o quepe deixado na mesa, ia atender com presteza, nos deixando a esperar mais um pouco. A operação bota-quepe-tira-quepe se repetiu umas 10 vezes e quase 2 horas após nossa chegada na delegacia a ocorrência estava devidamente registrada sob o número 2333/91.

A delegacia era de uma pobreza franciscana. Um escani-nho atrás do tenente, com alguns papéis, era todo o mobiliá-rio da sala, além do balcão e alguns bancos de espera. A ocorrência foi minuciosamente escrita em 2 folhas de papel-jornal, onde assinamos embaixo. O que foi uma temeridade. Assinar embaixo de um texto árabe, com aquelas letri-nhas parecendo macarrão, e não entender nada, é o mesmo que assinar em branco. O tenente nos garantiu que o engenheiro responsável pelo es-trago no carro seria chamado para dar explicações. Como o esperado, ficou tudo por isso mesmo. Fazer o quê? Maalêsh!


Dinheiro do Langoni e do Galvêas

Quando chegamos no Egito, em 5 de março de 1990, 1 dó-lar valia 2,67 libras egípcias (LE). Quando saímos do Cairo, em 14 de abril de 1992, dia do aniversário de minha mulher Nicinha (tomamos champanhe no avião, que chique!), o dólar valia LE 3,32. Em mais de 2 anos, a libra tinha se desvalorizado apenas 24,34% em relação ao dólar. Naquele período, obvia-mente, a inflação foi maior, porque o governo egípcio man-teve, e ainda mantém, um câmbio artificial, que não reflete a realidade. Porém, para comparação, no Brasil a inflação em fevereiro de 1994, de apenas 28 dias, foi em torno de 40%.

No primeiro ano em que moramos no Cairo, os preços quase não mudaram. Meses e meses, até as piastras (centavos de libra egípcia) eram as mesmas, como a gente podia observar nas latas de leite Ninho.

Com o apoio dado aos aliados ocidentais contra Saddam na Guerra do Golfo Pérsico, o Egito teve perdoada toda sua dívida militar com os EUA e 50% de sua dívida externa com os EUA e a Alemanha, desde que cumprisse a cartilha do FMI, que passou a monitorar a economia egípcia e exigir me-didas duras para saneamento de suas finanças. O governo co-meçou a retirar vários subsídios, tanto de produtos alimen-tares básicos, como também de combustíveis e serviços públi-cos - luz, gás e telefone. E os preços aumentaram bastante.

A moeda foi controlada ferreamente pelo governo e a libra egípcia não se desva-lorizou como era de se esperar. Por isso, no segundo ano deu para perceber a perda do valor da moeda a cada compra no mercado. Mas, não foi nem de longe o absurdo da in-flação vista nos últimos anos no Brasil. Interessante é observar que, apesar da inflação continuar subindo no Egito, até o final de janeiro de 1995 o câmbio pouco tinha mudado - um dólar valia menos de 3,40 libras egípcias.

Vez por outra, o contínuo que trabalhava co-nosco na aditância militar, Salah, nos trazia dinheiro bra-sileiro e perguntava se ainda tinha valor, se eu podia tro-car por libras egípcias. Eram pessoas que chegavam à Embai-xada e tentavam trocar o nosso cruzeiro, cruzado ou cruzado novo, assinados por Galvêas ou por Langoni - os que me lem-bro - e não entendiam que aquele dinheiro não servia para mais nada, nem para mim que era brasileiro. O vexame era grande, pois nós, que temos um país riquíssimo, nos colocávamos nessa situação ridícula e eles, espremidos naqueles fia-pos de terra cercados por deserto, tendo que importar 2/3 da alimentação, nos estavam dando exemplo de como ter uma moeda digna, confiável.

Por falta de eficácia do nosso governo e medidas mais duras contra os especuladores, não há plano econômico que sensibilize de vez industriais e comerciantes sem escrúpulos. Um exemplo cristalino pode ser dado a respeito. Na implantação do real, em 1994, os preços em cruzeiro real deveriam ser divididos por 2.750. Porém, as aves de rapina do comércio e da indústria apenas riscaram 3 zeros, ou seja, dividiram os preços apenas por 1.000. Por isso temos produtos três vezes mais caros que nos EUA e na Europa. Os salários foram fixados no rodapé enquanto que os preços foram parar no teto. Apesar disso tudo, os preços continuam subindo. O povo humilde, de baixos salários, e os aposentados mais uma vez se estreparam. Por uma questão de justiça deve-se afirmar que, ao menos por ora, possuímos uma moeda mais decente e já passamos a ter uma certa noção do valor dos preços - embora entre os mais altos do mundo.

Há pouco tempo, até os portugueses faziam piadas a nosso respeito, pela incapacidade de colocarmos um pouco de racionalidade em nossa moeda. No retorno ao Brasil, em 1992, vimos um outdoor em Lisboa, onde a revista Fortune dizia que o presidente Collor devia mandar nosso Ministro da Fazenda ler aquela publicação para resolver nossos problemas econômicos.

Para mostrar claramente como nossa moeda se depreciava, o Herald Tribune de 15 Nov 91 deu um exemplo bem prático: as 200.000 cópias do livro Zélia, uma Paixão, com preço de capa de Cr$ 6.500,00. Este valor, em março de 1990, quando Zélia Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, equivalia a 170 dólares. No lançamento do livro, era menos de 7 dólares.

Assim, o que eu poderia ter dito ao egípcio sobre uma moeda podre que fazíamos questão de gastar com a máxima ve-locidade, que não dávamos valor algum? Que nem o nosso go-verno a queria e já a havia substituído por UFIR e tantos outros tipos de unidades monetárias? Que tinha que dizer a meu filho: 'Vá correndo gastar sua mesada, que amanhã tudo estará mais caro!'? Depois da URV e do real, o que mais nos espera? Continuaremos a ter uma moeda que não serve nem para os colecionadores?


5º Jogos Africanos: Olimpíada Mubarak

Além da Copa do Mundo na Itália, em 1990, que acompa-nhamos pela televisão, houve outro evento esportivo de grande interesse no Egito: os 5º Jogos Africanos, realizados no Cairo e algumas cidades próximas, como Alexandria e Is-mailia, a partir de 20 de setembro de 1991.

É uma copa africana em que quase todas as modalidades esportivas são disputadas, de 4 em 4 anos.

Foi construído um ginásio coberto, de alto gabarito, para completar a cidade esportiva em Heliópolis, onde tam-bém fica um grandioso estádio de futebol. A cidade esportiva é constituída de muitas edificações, uma verdadeira vila olímpica, com muitos ginásios, parque aquático, centros de convenções. Creio que estariam habilitados a sediar os jogos olímpicos sem muita dificuldade. Aliás, um dos sonhos do Presidente Mubarak.

Na cerimônia de abertura, à noite, toda a área próxima à vila esportiva ficou com suas ruas congestionadas. Muitas dele-gações estrangeiras nem chegaram a assistir a cerimônia de abertura, retidas nas ruas de Heliópolis. Voltávamos de Port Said e no engarrafamento perdemos o mesmo tempo que havíamos gasto na viagem de 220 km até o Cairo. Vimos passar a comitiva presidencial, armada até os dentes, com muitos guardas, batedores e até um pequeno carro de combate. Todo cuidado no Egito é pouco para a segurança de seu Presidente. Que o diga o ex-Presidente Sadat. Eu gos-taria de ver o ex-Presidente Itamar, como presidente do Egito, se ele ia ficar brincando de gato-e-rato com sua equipe de segurança, dispensando sua guarda pessoal. Como é bom o nosso país e muitos não sabem!

Um amigo nos contou que na cerimônia de abertura dos Jogos os cristãos coptas praticamente não tiveram acesso ao estádio, tantas eram as dificuldades criadas.

A abertura dos Jogos Africanos foi abrilhantada com a dança de 1.800 meninas adolescentes seguida de show faraônico. Desfilaram carruagens faraônicas, soldados vestiam roupas simbolizando a antiga história egípcia, faraós e rainhas eram carregados por 'escravos'em cadeiras fechadas. Com um bonito painel humano desenhando a palavra 'PAZ' em 6 idiomas - devido à Conferência de Paz, entre árabes e judeus, prevista para iniciar naquele ano em Madri - e ou-tras interessantes evoluções pelo campo, a tônica do evento foi uma exaltação ao Presidente Mubarak. Como já foi afirmado, com amplos poderes sobre o país, Mubarak é um 'Ramsés' dos tempos modernos. Na realidade, os Jogos Africanos foram a 'Olimpíada Mubarak'.

Em muitos eventos, esportivos ou culturais, pode-se notar o empenho que os egípcios fazem em exaltar seus ancestrais. No encerramento de um festival internacional de cinema, pudemos observar o palco do teatro todo adornado com motivos faraônicos, incluindo portais de templos religiosos e obeliscos. Esse aspecto é sempre enfatizado pelos egípcios, embora anacrônico e já sem muito apelo. Os fundamentalistas islâmicos simplesmente abominam esse relacionamento com os antigos egípcios, principalmente por terem sido um povo politeísta. Por isso, criticam o governo por apresentar essa faceta como a mola propulsora do turismo no país - a história dos faraós com seus templos e suas pirâmides. Na morte de Sadat é bem significativa a afirmação de um dos assassinos do Presidente: 'Matei o faraó!'.

Durante os Jogos, os egípcios fo-ram rápidos em aplicar seus ippons nos adversários - só que fora do tatame. Mil e uma mutretas foram armadas em cima dos estrangeiros. Viaturas que levavam delegações de outros países, às vezes enfrentavam 'casualmente' tráfegos infernais, so-mente chegando aos locais da competição quando a mesma já havia acabado... Não é preciso dizer que o Egito ficou com o maior número de medalhas, prejudicando os outros 45 países estrangeiros.

No mês seguinte, em 11 de outubro, começou o VI Campeo-nato Mundial de Voleibol Masculino Juvenil, no Cairo, do qual o Brasil também participou.

O Brasil começou arrasador, ganhando da China, Vene-zuela, Iugoslávia, Bulgária e Japão. Mas tropeçou na Itália, ficando em 4º lugar. O campeão foi uma 'zebra': a Bulgária.

Houve um fato interessante naquele campeonato. O time da então União Soviética não conseguia entender, no seu primeiro jogo, por-que as cortadas de seus atletas saíam muito fortes, fora da quadra adversária, acabando por perder para a Tchecoslová-quia.

Posteriormente, mataram a charada quando resolveram medir a quadra: estava com as dimensões inferiores à medida oficial... Maalêsh!


Passeios a cavalo e a camelo

Um hobby nosso, às sextas-feiras, dia de folga no Egito, era ir até a área das pirâmides para andar a cavalo ou a camelo. Mais a cavalo do que a camelo. Os camelos eram 'pachorrentos e cansadíssimos de guerra', como diria Moacir Werneck de Castro, do Jornal do Brasil. Às vezes só encontrávamos matungos para montar. Po-rém, na maioria das vezes tínhamos sorte em andar em cavalos bem nutridos, que comprovavam a fama dos cavalos ára-bes, fortes, esbeltos, luzidios.

No primeiro passeio fomos literalmente 'depenados' - como todo turista desavisado que não sabe o preço das coi-sas. Pelo passeio de uma hora pagamos 20 libras egípcias (6 dólares) por cada cavalo e o mesmo preço por um camelo, quando de-pois aprendemos que o preço normal eram 5 libras por cabeça. Maalêsh!.

No Egito, via de regra, os preços são mais altos para os estrangeiros, ao menos no que se refere a diárias em hotéis, entradas a museus e mensalidades escolares. Uma assinatura anual do jornal semanal egípcio Al-Ahram, em inglês, custa para os egípcios LE 26,00 (menos de US$ 8,00), para os outros países árabes US$ 60,00 e para o resto do mundo US$ 150,00. Fica a pergunta: estaria implícita a cobrança de uma espécie de juro aos 'imperialistas' estrangeiros que exploraram o Egito por tantos séculos?

Os camelos na área das pirâmides são todos muito enfeitados e coloridos, como se fossem bonecos de brinquedo. Bastante fedorentos, muitos deles beijam o dono na boca após emitir um grunhido estranho. Um sucesso para as filmadoras dos turistas.

O passeio a cavalo ou a camelo começa numa área onde há vários estábulos, próximo a um teatro aberto, em frente às pirâmides, onde todas as noites há um show de som e luzes, com os alto-falantes discorrendo sobre a história faraônica em vários idiomas. Um passeio mais longo e não muito concorrido leva os turistas até as pirâmi-des de Sakara, a uns 20 km ao sul das pirâmides de Gizé. O passeio que sempre fazíamos nos levava até um local mais elevado, no deserto, de onde tínhamos toda a vista das pirâmi-des e, ao fundo, o Vale do Nilo e a cidade do Cairo. Daquele local pode-se ver não só as três grandes pirâmides mas 9 pirâmides ao todo. As pirâmi-des menores eram destinadas aos filhos e às mulheres dos faraós. Pode-se ver, ainda, ao sul do Cairo, os arranha-céus de Maadi, com as mais altas torres da cidade. Maadi é um bairro chique, com bastante arborização, onde moram principalmente americanos.

Um belo dia, fazíamos a costumeira cavalgada na área das pirâmides, com breves trotes e galopes, o beduíno que nos servia de guia fustigando os cavalos. Num desses galo-pes, eu estava um pouco à frente de minha família e de re-pente ouvi gritos. Olhando para trás, vi uma cena que não foi nada fácil para minha mulher: ela tinha caído do cavalo e ficara presa com um pé no estribo, sendo arrastada pelo cavalo a galope. Instintivamente, ela se desviava das patas do animal, que quase a golpeavam no rosto e no peito.

Rapidamente saltei do cavalo para acudi-la e chegamos juntos, o beduíno e eu, para frear o cavalo e socorrê-la, que a essa altura tinha desmaiado.

Quando voltou a si, a Nice me deu a maior bronca do mundo, por não tê-la socorrido de imediato. O pesadelo devia ter durado uns 10 ou 15 segundos, mas para ela foi uma eter-nidade.

Uma radiografia no pé tirou todas as nossas dúvidas. Não havia nada de mais grave, nenhuma fissura no osso, só uma marca roxa no pé que ficara preso no estribo. Coincidência ou não, depois desse dia não passamos mais a cavalgar na área das pirâmides. Seguro morreu de velho.

Há no Cairo uma excursão de 5 dias, em lombo de camelo, até um oásis. Um conhecido nosso contou a epopéia que é fazer um passeio dessa natureza. São dois dias para se chegar até o oásis, um dia para descansar dos solavancos do camelo e mais dois dias para a volta. Uma experiência que não vale a pena repetir.


Kkamsín, o vento de 5O dias

Khamsín (pronuncia-se 'ramsín', o 'r' carioca), em árabe, quer dizer cinqüenta. No Egito, khamsín é o vento que normalmente aparece na primavera - se é que no deserto possa haver primavera -, lá pelos meses de março e abril. Não apa-rece todo dia, nessa época, mas esporadicamente, num período de mais ou menos 50 dias. Por isso o nome de khamsín.

Ás vezes, esses ventos são verdadeiras tempestades de areia que deixam o Cairo com aspecto de fog londrino. De-sert Storm (Tempestade no Deserto) foi a operação militar do Ocidente que expulsou os iraquianos do Kuwait. Nome bem apropriado, por sinal.

Em 1990, nós vimos pela primeira vez uma dessas tempes-tades cobrindo o Cairo de poeira. Mal dava para ver os edi-fícios do outro lado do Rio Nilo. Improvisando um rústico bazar, um quitandeiro amarrou entre duas casas um toldo que virou vela de navio, fazendo ruir a parede de uma das casas e machucando várias pessoas. Reclamaram quando bati uma foto.

Porém, um khamsín violento vimos no dia 3 de fevereiro de 1992 - um pouco antes da primavera. Durante o dia todo, o vento soprou forte, a poeira do deserto cobriu toda a cidade do Cairo, muitas árvores foram arrancadas, casas destruídas, tanto no Cairo quanto em Alexandria. Morreram umas 10 pes-soas.

A poeira provocada pelo khamsín é como talco, penetra em toda parte, entrando por baixo da porta, pelas janelas fechadas e formando uma camada de pó na casa toda, inclusive dentro dos armários. O nariz fica uma meleca só. Não há proteção contra o khamsín, por mais fechadas que estejam as portas e janelas.


A ópera Aída

Inicialmente, a ópera Aída era para ser o grand finale das comemorações da abertura do Canal de Suez, construído pelo francês Ferdinand de Lesseps, em 1869. Mas houve con-tratempos. Embora seu autor, o italiano Giuseppi Verdi, ti-vesse finalizado a obra em 1869, a première só foi apresen-tada no Cairo em 24 de dezembro de 1871, num teatro que mais tarde um incêndio devorou.

Nas comemorações de seu 120º aniversário de apresen-tação, em 1991, as-sistimos à famosa obra no Cairo Opera House, junto à Torre do Cairo, um moderno complexo de salas para teatro, ópera e shows, construído e doado ao povo egípcio pelo governo japo-nês.

A ópera Aída é a história de amor de um general egíp-cio, Radamés, apaixonado por uma escrava negra etíope, Aída. Acusados de traição, acabam sendo sepultados vivos.

A orquestra foi conduzida pelo maestro italiano Da-nilo Belardinelli e os cantores eram todos egípcios, nenhum Pavarotti.

No primeiro ato, sobressai a romântica ária Celeste Aída, o cenário todo é composto de motivos faraônicos, colu-nas imensas, um templo ao fundo - idêntico aos portais do templo com obeliscos do filme Os Dez Mandamentos. Na parte inicial, a ópera é muito movimentada, com danças típicas executadas por escravos. Em cena, as preparações de guerra dos egípcios, na cidade de Mênfis, antiga capital do Egito antigo unificado, para fazer face aos etíopes no Baixo Egito, em Tebas, atual Lú-xor.

O segundo ato é sem dúvida o ponto alto da ópera. A famosa Marcha Triunfal, com Radamés retornando vitorioso da campanha, é executada durante todo esse ato. A entrada dos vencidos depositando suas riquezas em frente ao faraó, as danças de escravos negros, o grande coral ao fundo, tudo prende ao má-ximo nossa atenção.

Nos terceiro e quarto atos há uma diminuição de ação. Os cená-rios ficam na penumbra, é mostrado o Rio Nilo banhado pelos raios da lua. E - heresia para os aficcionados do gênero - acabamos tirando uma ligeira soneca. A ópera começou às 20 horas e acabou depois da meia-noite.

Um imprevisto nos chamou a atenção durante o segundo ato. Na saída do coral, que era muito grande, havia uma coluna gi-gantesca que devia estar em falso e começou a balançar peri-gosamente, para lá, para cá, mas não caiu.

Porém, na noite de estréia, o fiasco foi maior, segundo soubemos pelos jornais. No início do segundo ato, enquanto as cortinas se abriam, havia ainda muitos trabalhadores em cena armando o palco. Uma coluna 'levitava', sendo colocada no devido lugar. O contraste era bem forte: enquanto na platéia os homens estavam todos de terno e gravata e as mulheres com seus longos vestidos, muitos cordões e pulseiras de ouro, no palco um grupo de homens trabalhava com roupa jeans... Como dizem os egípcios, maalêsh!

Uma montagem exuberante da ópera Aída ocorreu em 1987. O local não poderia ter sido melhor: a frente da fachada do Templo de Lúxor e sua avenida com esfinges. Em 1994, para a comemoração dos 125 anos de criação da obra, houve uma montagem de Aída em frente de um dos mais esplêndidos templos do antigo Egito, construído em 1500 a.C. pela rainha Hachepsut, em Deir El-Bahri, próximo ao Vale dos Reis, em Lúxor. Celeste Aída!


Fodak, Ribacas, Made in Inland...

É notória a perseguição americana contra produtos far-macêuticos brasileiros, cujos fabricantes não pagam royal-ties pelo uso da fórmula química de muitos remédios. Não se precisa mencionar a pirataria em que se transformou o comércio de informática no Brasil, com equipamentos contrabandeados e softwares indevidamente copiados.

No Egito, observamos que os direitos autorais também não são respeitados. Há fitas 'piratas' de vídeo e som que podem ser adquiridas em todos os cantos da cidade do Cairo, até em grandes lojas de departamentos. Há fitas de vídeo que os 'piratas' não se deram ao trabalho mínimo de revisão, com repetições de cenas, falhas de toda ordem, falta de som.

O picolé Hebon, no Brasil, virou Sem Nome, por causa da pressão da Kibon. No Egito, a Kodak ainda não conseguiu fazer sumir as câmaras Fodak, feitas em fundo de quintal. A Ray Ban, da mesma forma, não conseguiu banir a pirata Ray Fan. Nem a Reebock conseguiu sustar a fabricação dos tênis Ribacas, que podem ser encontrados em muitas vitrinas cai-rotas.

No Cairo, a McDonald s também se faz representar, inde-vidamente, pela MaDonna, com aqueles mesmos arcos amarelos que identificam a famosa empresa americana de fast-food.

Mas, o mais interessante foi observar algumas bebidas alcoólicas que encontramos no centro do Cairo, à Rua 26 de Julho, que liga os bairros de Átaba e Mohandeseen. Em algu-mas dessas garrafas, com um líquido parecido a uísque, es-tava a arapuca: Made in Inland. Para um desavisado, a idéia é que estaria adquirindo alguma preciosidade da Inglaterra (England). Só que Made in Inland pode signifi-car 'Produto Nacional' ou até 'Feito no Interior'. Ou seja, não significa nada...


Aluguéis no Egito

No Egito é gravíssimo o problema de moradias, por culpa de lei iníqua do governo. O aluguéis não podem ser reajus-tados e o inquilino tem todo o poder de fazer modificações no apartamento que ocupa. Além disso, torna-se 'sócio' do proprietário: o dono do apartamento só consegue retirá-lo se oferecer outra moradia.

De modo geral, é como o conhaque Dreher, 'de pai para filho'. O apartamento alugado o inquilino pode depois passar para seu filho, depois para o neto e assim por diante. Por conta deste absurdo, há em torno de 2 milhões de apartamen-tos fechados em todo o Egito. Preferem deixá-los vazios, entregues às moscas e à poeira, em vez de 'socializá-los'. Ou então, alugá-los por temporada aos sauditas e demais ára-bes ricos da região do Golfo Pérsico. Ou ainda para estran-geiros que trabalham em embaixadas ou em companhias multina-cionais operando no Egito. Sabem que não terão o problema do 'inquilino-sócio'.

Conhecemos uma brasileira, casada com um egípcio, que só pagava 10 libras de aluguel, o equiva-lente a 3 dólares. Como moradores antigos e a lei não auto-rizando nenhuma espécie de aumento, apesar da inflação, mo-ravam de graça.

O problema de moradia é tão grande que milhares de pessoas no Cairo moram nas 'Casas dos Mortos', como são chamados os cemitérios naquela cidade. Esses cemitérios fi-cam nas proximidades da Cidadela de Saladino e as pessoas circulam pelas tumbas com a maior desenvoltura. Muitos desejam transferir os cemitérios para longe da cidade, no meio do deserto, para que aquele local possa comportar conjuntos habitacionais para a população. Outros opinam por criar uma outra capital para o Egito, em pleno deserto, para aliviar a pressão populacional sobre o Cairo.

Várias cidades já foram construídas em pleno deserto, como a Cidade Seis de Outubro, entre o Cairo e Fayyum, e a Cidade de Sadat, a meio caminho entre o Cairo e Alexandria, na Rodovia do Deserto. Perto de Heliópolis, em pleno deserto, foi construída a Cidade de Násser, hoje um subúrbio do Cairo. O ideal seria que todas as cidades ficassem no deserto, preservando o Vale do Nilo para a agricultura. O Egito se ressente cada vez mais da perda dessas terras férteis para a construção de moradias, tendo que importar 2/3 dos alimentos pela absoluta falta de terra para a plantação. E não pense o leitor que não é viável construir cidades no deserto. Basta que a água chegue até lá. A Cidade de Násser possui largas avenidas, edifícios modernos, muita arborização e uma qualidade de vida que não se observa na maioria dos subúrbios do Cairo.


A mídia

A revista Veja escreveu um artigo sobre o Egito, no qual garantiu que muitos cairenses moram em cemitérios enquanto cães disputam ossos de defuntos... Com certeza, deviam ser ossos de cabras ou ovelhas, animais de abate muito comum no Egito. Como se observa, a imprensa muitas vezes distorce a realidade, mais engana do que informa, sua linguagem muitas vezes é cí-nica, cheia de meias-ver-dades e mentiras-inteiras.

Por essas e outras deve-se ter um cuidado redobrado com o '4º Poder' de nossa República, se não o 1º: a mídia. Ávi-da por vender cada vez mais o seu produto, com 'focas' sem escrúpulos para mostrar serviço ao dono da empresa, cada dia que passa devemos estar mais atentos com ela.

Quem ainda não presenciou com os próprios olhos algum fato coberto pela imprensa e depois viu nos noticiários sair tudo distorcido?

Um jornalista de renome contou um caso interes-sante para exemplificar a falta de pudor de certos profis-sionais da imprensa. Em uma cobertura de desfile militar do Sete de Setembro, em Brasília, aplicando técnica de contagem da população presente que aprendera na universidade - distância poste a poste, largura da calçada, densidade das pessoas presentes, número de postes na rua do desfile, etc. -, o jornalista cal-culou em 60 mil o número dos assistentes. Depois, ao passar por um grupo de companheiros de profissão, ouviu que estes estavam confabulando para chegar a uma conclusão sobre o número da assistência. Um deles sugeriu que deviam ser uns 30 mil. Outro retrucou: 'Que nada, não vamos dar essa moleza para os milicos, 15 mil está ótimo!'. Depois de alguma dis-cussão, chegaram a um número comum para colocar nos jornais: 20 mil...


Pass Comfort exótico

No Egito, as mulheres não passam roupa. Essa regalia é exclusiva dos homens.

Há centenas de lavanderias nas áreas residenciais de classe alta e média, com os seus passadores de roupa, todos homens. A mulher egípcia de certa posição vive como prin-cesa. Nem água para ferver ela coloca no fogão, para o tradicional chá de todos os minutos. Assim, é lógico que não irá perder tempo passando roupa.

Nós também tínhamos um passador de roupa, que vinha a cada quinzena.

No primeiro dia em que veio o passador, enquanto estava na sala ensinando as crianças, minha mulher ouviu um ruído es-tranho vindo do quarto de meu filho Wagner, local onde o beduíno estava passando roupa. Pensou que o mesmo estivesse passando mal, foi até lá, mas estava tudo bem. Ninguém en-tendia o idioma do outro, mas através da mímica - minha mu-lher ficou doutora nisso no Egito - o beduíno deu a entender que não tinha nada. Depois, mais duas ou três vezes o mesmo ruído. A Nice foi conferir e o passador novamente deu a entender que estava tudo certo, não estava passando mal. Estava kúlo kuáis (tudo bem).

Então, pé ante pé, a Nice foi espiar para ver que diabo estava acontecendo. E acabou descobrindo, entre pasma e in-crédula, que a água que ela tinha deixado para o sujeito be-ber estava tendo outro destino. O beduíno enchia a boca com a água da garrafa o quanto podia e borrifava a roupa para amaciar e dar aquele alisamento legal com o ferro elé-trico. Fazia isso com uma técnica perfeita, um esguicho forte, com bastante precisão, que não permitia o desperdício de nenhuma gota d água fora da roupa. Perfeição igual, só com uma garrafa spray da Pass Comfort. Que, por sinal, o beduíno tinha deixado de lado para exercitar seu exótico espargimento.

Posteriormente, na rua, em algumas biroscas, vimos al-guns passadores também cuspindo água na roupa. E olha que sai bem passadinha...


Cruz Vemelha e Crescente Vermelho

Todos conhecemos a Cruz Vermelha, aquele organismo in-ternacional dos 'capacetes brancos' que oferece ajuda humanitária nas guerras e ca-tástrofes em geral, e que age sempre em nome da neutrali-dade.

Os judeus têm seu similar, a Estrela Vermelha de Davi. E os árabes, o Crescente Vermelho. Como se vê, ninguém aceita o símbolo que não o da própria religião. É fácil en-tender porque os árabes não aceitam o símbolo da cruz. Seria o mesmo que se render à nossa fé, aos ocidentais 'infiéis' que somos e que, segundo alguns fundamentalistas religiosos, se-remos condenados a arder eternamente no fogo do inferno.

Assim, os árabes têm em suas ambulâncias o desenho da hilal (lua crescente), o Crescente Vermelho. O mesmo símbolo que se vê no alto das mesquitas.

No Cairo, tivemos a oportunidade de conhecer o presi-dente local do Crescente Vermelho, o médico palestino Dr. Fathi Ara-fat, irmão do líder da OLP, Yasser Arafat. Sósia do irmão famoso, mas sem o uniforme militar e o famoso lenço (keffiyeh) na cabeça, o palestino Fathi muito elogiou o Brasil, que conheceu há anos atrás. Em duas oportunidades, tivemos contato com o Dr. Fathi. Na pri-meira vez, batemos até uma foto juntos com ele, a Nice e eu, na casa de um amigo boliviano, Dr. Yussef Eid Torrico, casado com uma brasi-leira, Vera. O Dr. Yussef servia na Embaixada da Bolívia no Cairo, também é médico e, sendo descendente de palestinos, tinha uma íntima ligação com o Dr. Fathi.

Em Heliópolis, tivemos uma segunda oportunidade de re-ver Dr. Arafat, quando visitamos o Museu Palestino. Com muitas peças de arte e vestimentas características da Pales-tina, o museu nos abriu os olhos para aquele povo que tem uma longa história, muitas tradições e costumes singulares, e que agora vive sua diáspora, espalhado pelo mundo todo, sem direito a morar em sua própria terra. O mesmo que já ha-via acontecido com os judeus.

Após a visita ao museu, subimos para um patamar, onde foi servido chá e pudemos dar algumas tragadas na 'shisha', aquele sofisticado 'cachimbo' árabe. Um rapaz palestino, du-rante esse tempo, tirava trinados tristonhos de sua flauta, que aumentava a tristeza nos semblantes de todos os presen-tes. Por vezes, a conversa era interrompida e um silêncio pungente reinava sobre o patamar. Era a meditação profunda de todos os presentes. Dos palestinos, que lamentavam a falta de sua pátria. E dos estrangeiros, que respeitavam a justa tristeza dos palestinos.


Ver a sorte no café turco

No Cairo são inúmeros os bares, com cadeiras até nas calçadas. Grupos de pessoas, a maioria de galabeya (túnica egípcia) e turban-te, sentam-se para jogar dominó, cartas ou gamão, além de fumar sua shisha (pronuncia-se xíxa) e tomar seu chá ou café turco. É o happy hour predileto do egípcio, assim como beber cer-veja à tarde é a predileção de muitos brasileiros.

Nessas cafeterias, ou al-kahwa, não se vê mulheres. A fumaça toma conta dos locais, com a enorme quanti-dade de shishas sendo usadas por um e por outro, em rodízio, como se toma chimarrão no sul do Brasil: todos colocando o bico no mesmo aparelho.

A shisha é uma peça interessante para se fumar. Em me-tal ou vidro, na parte superior há um recipiente onde são colocadas brasas e, sobre estas, o fumo. A esse estranho aparelho é conectada uma mangueira emborrachada ou de plás-tico, com uma espécie de piteira na ponta, por onde é tra-gada a fumaça. Só que a fumaça, antes de chegar à boca do fumante, passa por um recipiente de água no fundo da peça, para filtrar a nicotina e o alcatrão do fumo. Na realidade, a shisha é um 'cachimbo' bastante sofisticado.

Quando fomos comprar uma shisha em Khan Al-Khalili para guardarmos de lembrança, minha mulher perguntou ao ven-dedor se ele tinha 'haxixe'. Ele olhou para os lados, amen-drontado, disse que não tinha esse tipo de produto e pediu que não pronunciássemos mais aquele nome. Quando entendeu o que procurávamos, riu do ocorrido e expli-cou a grande diferença que há entre 'haxixe' e 'shisha'...

Artistas locais famosos também freqüentam as kahwa, como fazia o idoso escritor Naguib Mahfouz, prêmio Nobel de Literatura. Naquele ambiente, em contato direto com o povo, Mahfouz ex-traiu muitos temas para seus romances, a exemplo da famosa Trilogia do Cairo: Palace Walk, Palace of Desire e Sugar Street. Obviamente, os títulos estão em inglês, não sei se já foram vertidos para o português. O falecido e famoso músico egípcio Mohammad Abdul Wahad também costumava freqüentar as kahwa.

Madrugada adentro, nas kahwa também podem ser en-contrados ópio e haxixe, duas drogas preferidas dos trafi-cantes no Egito, além de filmes pornôs. Muitos egípcios vi-ciados utilizam o hashish (haxixe), em vez do fumo, em suas shishas. Para estes, hashish e shisha passam a ser mais do que um sim-ples trocadilho. São também comuns os problemas domésticos, com os homens freqüentando as kahwa e retornando para casa muito tarde da noite, sob a bronca de suas mulheres.

Além do chá, que é tomado a todo instante por todos nas kahwa, há muita gente que prefere o café turco.

O café turco, na verdade, é um café comum que se toma com borra e tudo. Superamargo. A borra que fica no fundo do copo pode ter um significado decisivo para muita gente. Assim como alguns egípcios supersticiosos buscam as sibilas das bolas de cristal para prever seu futuro, além de buscar interpretações para as linhas de suas mãos, outros acham que os de-senhos formados no fundo do copo com borra de café servem para prever o sucesso nos negócios, a chegada do amor, muito dinheiro e felicidade eterna. Basta saber interpretar os es-tranhos desenhos da borra de café que se formam no fundo do copo de vidro.


Viagens pelo interior do Egito

Além do Cairo, onde moramos durante 25 meses, conhecemos várias outras cidades do Egito. Constantemente íamos a Ain Sukhna, no Mar Vermelho, perto de Suez, para tomar banho de mar. A paisagem é desoladora naquela região. Terreno acidentado, muitas montanhas com rochas nuas, nenhuma vegetação à vista, pedras até a entrada no Mar, sem areia na praia. Porém, a água azul e morna do Mar Vermelho é um milagre que acontece naqueles ermos.

A Porto Said fomos duas vezes para algumas compras que aquela zona franca de comércio nos facultava. Porto Said, no Mar Meditarrâneo, é o término da viagem pelo Canal de Suez dos superpetroleiros que buscam o óleo bruto no Golfo Pérsico com destino à Europa.

Fizemos algumas viagens mais longas, especialmente a Alexandria e El-Alamein, a Sharm El-Sheikh e a Lúxor.


Viagem a Alexandria e El-Alamein

Aproveitamos os dois dias de festa da Páscoa copta de 1991 para conhecermos Al-Iskandariya (Alexandria) e El-Alamein. Assim, no dia 7 de abril viajamos para conhecer aquelas cidades junto ao Mar Mediterrâneo.

Viajamos de carro pelo interior do Delta, passando por cidades como Benha, Tanta, Damanhur e Kafr Salim. 'Kafr' é um nome judeu e significa 'aldeia', da mesma forma que Cafarnaum (Kafr Naum), em Israel, diz respeito à 'aldeia de Naum'.

O que chama a atenção no percurso de 220 km é que parece que a gente não saiu do Cairo, pela continuidade das edificações que há em todo o Delta, provando que a superpopulação egípcia não é uma ficção. No caminho pudemos admirar o eficiente sistema de irrigação em toda aquela região, com muitos canais secundários, de tamanhos decrescentes, como se fossem vasos capilares do corpo humano. Bombas a gasolina e o velho sistema de tração animal da época faraônica são ainda vistos puxando a água dos canais para a irrigação da plantação, normalmnente por meio de rodas d água ou parafuso-sem-fim. Vimos culturas de cana, milho, alfafa e muitos pomares, além de alguns pastos em pequenas fazendas de gado leiteiro.

Durante o caminho, impressionou-nos o barulho de algo que parecia um avião a jato. Era apenas o rápido trem francês que liga o Cairo a Alexandria a mais de 100 km por hora.

No Delta do Nilo, bem como em todo o país, são muito comuns as construções em forma de cones, caiadas com um branco lavado, que servem para a criação de pombos. Com furos nas paredes e extensões de varetas para o pouso das aves, esses abrigos têm ainda a função de ajuntar, em seu interior, o guano, o estrume dos pombos, que é um fertilizante valioso. Um prato típico no Egito é a sopa de pombo, conhecida como molukhiya. Uma figura impagável é aquela observada em feiras-livres, com a mulher forçando a alimentação do pombo, colocando milho à força goela abaixo da ave, numa operação boca-a-boca. Essa cena vimos numa feira no centro do Cairo. Acredite se quiser. Ou veja uma foto no jornal Al-Ahram nº 165 de 21-27 Abr 94.

Alexandria é a segunda maior cidade do Egito, com mais de 3 milhões de habitantes. Fundada por Alexandre, o Grande, em 332 a.C., a cidade outrora comportou a 'Civilização Alexandrina', onde floresceu importante centro de artes, ciências e escolas de filosofia. Hoje contém um movimentado porto e a cidade estende-se, principalmente, em uma estreita faixa de terra de restinga.

Alexandria é a cidade onde morou Cleópatra. Como muitos políticos brasileiros da atualidade, a rainha Cleópatra também mudava de 'partido' com bastante freqüência. Desposada com um irmão, Ptolomeu XIV, Cleópatra aliou-se a Júlio César quando este invadiu o Egito. Na guerra contra César, Ptolomeu XIV foi morto e Cleópatra desposou um irmão mais moço. Depois de envenenar a este, Cleópatra acompanhou o imperador Júlio César a Roma. Para César era interessante a aliança com Cleópatra, mantendo-a rainha do Egito - embora só de fachada -, pois Roma necessitava muito do trigo egípcio.

A exemplo de Cleópatra, no antigo Egito era comum a prática do incesto: casamento entre irmãos, do pai com a filha, da mãe com o filho. O faraó Ramsés II, além da rainha Nefertari, sua esposa predileta, chegou a possuir em torno de 200 mulheres, algumas sendo suas próprias filhas.

Após o assassinato de César em 44 a.C., Cleópatra seduz Marco Antônio, então com o controle do império romano oriental, até ser derrotado por Otaviano na batalha naval de Actium. Quando este entrou em Alexandria em 30 a.C., Marco Antônio havia se suicidado e Cleópatra, com mais de 40 anos de idade, não conseguiu dominar Otaviano com seu charme. Presa para ser levada à frente da procissão vitoriosa de Otaviano em Roma, Cleópatra preferiu suicidar-se com a ajuda de uma ou duas cobras venenosas apertadas contra seu seio.

Cleópatra é mais lembrada por sua beleza e sedução e esquecida pelo seu senso político prático frente ao domínio romano. Ela reintroduziu a fala dos antigos egípcios, quase totalmente esquecida, assim como trouxe de volta os antigos cultos religiosos faraônicos. Ela tinha pretensão de entregar a Palestina aos filhos que tivera com os generais romanos e convenceu Marco Antônio a lhe dar as cidades costeiras da Palestina, assim como os bosques de bálsamo de Jericó, de fama mundial. Marco Antônio, porém, em atenção a seu aliado Herodes, o Grande, negou entregar-lhe o resto da Palestina. Herodes, junto com Otaviano, foi um dos poucos homens que conseguiram resistir frente à sedução de Cleópatra.

A cidade onde morou Cleópatra oferece muitos pontos de atração turística, com museus e mesquitas de beleza única no Egito. A fortaleza de Qait Bay é um imponente castelo que parece ter surgido de repente da Idade Média. Velhos canhões que guarneciam as praias de Alexandria ainda apontam para o Mediterrâneo. Atualmente, comporta um pequeno museu naval em seu interior. O castelo de Qait Bay fica na Ilha de Faros e foi construída pelos árabes no século XV sobre escombros do Farol de Alexandria, uma das 7 maravilhas do mundo antigo. Arqueólogos pensam desobstruir imensas colunas de pedra no fundo do mar, onde acreditam possam se esconder restos do famoso farol, destruído por um terremoto.

Conhecemos também o Monumento ao Soldado Desconhecido, em mármore branco de Carrara, que fica no lado norte da Praça Orabi. Nesse local é celebrada uma cerimônia de colocação de flores junto ao Monumento, realizada por militares brasileiros, a cada dois anos, quando o Navio-Escola Brasil passa pelo Canal de Suez e Alexandria, com seus guardas-marinhas recém-formados pela Escola Naval. Em 1991 o NE Brasil não passou pela região devido à Guerra no Golfo Pérsico.

A mesquita Sidi Abu Al-Abbas é um lindíssimo edifício que contém uma composição muito bem trabalhada de arabescos em suas 4 cúpulas, assim como em volta de todo o prédio e do minarete espetando os céus. Como era época do ramadã, à noite a profusão de luzes tornava ainda mais bonita essa que é uma das mais espetaculares mesquitas do Egito.

O Museu Greco-Romano de Alexandria comporta importante coleção do que restou do antigo período em que foi o centro vital de toda a cultura egípcia durante a dominação grega, o período ptolomaico e o domínio romano. Além disso, contém ainda objetos de outras partes do país, bem como da civilização faraônica.

Segundo a tradição, Alexandre, o Grande, foi enterrado em Alexandria em uma tumba secreta, dentro de um sarcófago de ouro maciço. Muitos aventureiros e donos de antiquários, no final do século passado, estavam convencidos de que o local secreto era a cripta da Mesquita de Daniel, porém não obtiveram permissão dos religiosos muçulmanos para continuar as investigações. No final de janeiro de 1995, autoridades do Conselho Superior de Antigüidades do Egito garantiram que a tumba de Alexandre foi encontrada no oásis de Siwa, próximo à fronteira líbia. Como a múmia encontrada não se manifestou ainda, resta aguardar exames mais acurados para comprovar tal achado. Em Siwa, hoje, a população predominante é de origem berbere, de pele mais preta que o egípcio típico. Durante a época faraônica havia um templo religioso importante naquele local.

O Palácio de Muntazah, cujo significado é 'lugar de passeio', foi construído pelo Khedive (Vice-Rei) Abbas e serve ainda hoje como moradia oficial de verão dos governantes egípcios. Muitos dos despachos do Presidente Hosni Mubarak são realizados naquele palácio. Násser também utilizava aquele palácio em Alexandria para receber delegações estrangeiras, como o relatado por Moacir Werneck de Castro no Jornal do Brasil de 5 de dezembro de 1993.

Fomos até à praia, que estava quase deserta. Havia um velho navio enferrujado encalhado na areia e não arriscamos a entrar na água por ser época do ramadã e não ofender os muçulmanos com nossos trajes de banho, já que não havia ninguém na praia vestido à moda ocidental.

Seguimos então acompanhando a orla marítima de Alexandria, de carro, em direção a seu Porto, no lado ocidental. Foi muito difícil encontrarmos um local que desse acesso à praia. Muito depois do Porto, finalmente conseguimos um caminho para nos levar às verdes águas do Mediterrâneo. Estacionamos perto de um prédio abandonado em sua construção, por apresentar falhas estruturais e quase estar ruindo. Mas a decepção foi grande. Quando chegamos à praia, suas areias estavam enegrecidas de óleo, tornando impraticável o banho.

Chamou-nos a atenção durante o percurso a grande quantidade de casas e pequenos prédios semidestruídos que se viam em ambos os lados da estrada. Parecia que um furacão tinha passado pelo local. Provavelmente, foi o khamsín, a tempestade de areia e ventos fortes, que atingiu o Egito em fevereiro daquele ano, ocasionando várias mortes.

Seguimos em frente até El-Alamein. No caminho pudemos observar a enorme quantidade de vilas turísticas sendo construídas. Hoje, com o ataque dos fundamentalistas no Egito, devem ter pouco movimento.

As águas do Mediterrâneo naquela região são de um verde profundo. Churchill uma vez disse que a região de El-Alamein possui o melhor clima do mundo. Com certeza, não conhecia o clima e os verdes mares do litoral do nordeste brasileiro.

À tardinha chegamos em El-Alamein, local de famosa batalha da II Guerra Mundial. A Operação 'Lightfoot' (que significa 'na ponta dos pés'), codinome da Batalha de El-Alamein, começou em 23 de outubro e se estendeu até 4 de novembro de 1942. Enfrentaram-se o lendário Marechal Rommel, a 'raposa do deserto', e os não menos lendários 'ratos do deserto' do general britânico Montgomery. As perdas de Rommel foram enormes: 59.000 homens mortos, feridos e capturados; perda de 500 tanques, 400 canhões e grande quantidade de outros veículos. O VIII Exército de Montgomery perdeu 13.000 homens entre mortos, feridos e desaparecidos e 432 tanques foram colocados fora de ação. A vitória de Montgomery sobre o Afrika Corps de Rommel salvou o Canal de Suez das mãos dos alemães e italianos que poderiam, depois, ter acesso às ricas jazidas de petróleo do Oriente Médio.

Em El-Alamein há cemitérios que comportam os restos mortais de soldados alemães, italianos e aliados, onde todos os anos são reverenciados os mortos da guerra em solenidade que traz militares de todos os recantos do mundo, independente de vencedores ou vencidos daquela guerra.

Há também um museu bastante rico em ilustrações de combates, com maquetes mostrando as manobras e as batalhas ocorridas em Siwa, na Depressão de Qatara, em Marsa Matrouh, além de El-Alamein. Vestimentas de soldados alemães e dos aliados também são vistas no museu, destacando-se vários utensílios e roupas de uso pessoal de Rommel e Montgomery. Em frente ao Museu muitos canhões silenciosos nos lembram aquele gigantesco combate que foi a Batalha de El-Alamein.

Voltamos para Alexandria e nos hospedamos no Hotel Palestina, bastante modesto, porém com varandas voltadas para o Mediterrâneo. A praia em frente, sinuosa, lembrava a de Copacabana.

No outro dia, voltamos ao Cairo pela Rodovia do Deserto.

A Rodovia do Deserto que liga Alexandria ao Cairo é uma auto-estrada de boa pavimentação, pouco movimento e serve como opção à engarrafada rodovia do interior do Delta. Localizada um pouco fora do Delta do Nilo, no lado ocidental, a Rodovia tem também a finalidade de atrair habitantes ao longo de seu curso, onde se vê muitas construções em andamento e estufas para o cultivo de plantas diversas. É um inteligente método de aos poucos ir tomando as áridas terras do deserto para serem ocupadas por plantações e habitantes. A única coisa que falta é a água, pois o terreno é fértil. Como ela chega até lá em encanamentos, aos poucos o deserto vai sendo dominado pelo homem e se tornando verde.

No meio do percurso, também de 220 km, existe a Cidade de Sadat (Madinat Al-Sadat). Construída em pleno deserto, parece uma miragem que de repente surge ante nossos olhos. Caixas de água em forma de enormes cálices dão boas-vindas e entramos para conhecer aquela cidade, com prédios muito bem construídos, muitas praças e muito verde, porém sem nenhum habitante na época. Um pouco adiante há um complexo industrial para dar emprego aos moradores da Cidade de Sadat.

No Cairo perguntei por que a Cidade de Sadat ainda não estava habitada e se não havia perigo de invasão de moradores. Disseram que, apesar da falta de emprego e do problema crônico de moradias, muitos preferem ficar no Cairo, com todos os problemas que apresenta, a se estabelecer no deserto, longe de suas raízes. Por isso, talvez até hoje aquela cidade não esteja plenamente habitada.

O mesmo problema acontece na Cidade Seis de Outubro, perto de Fayyum, em pleno deserto, ao sul do Cairo, onde muita gente trabalha durante o dia naquela cidade industrial e depois enfrenta um percurso de horas para o retorno ao lar. Alguns estudantes no British Council me garantiram que enfrentavam diariamente aquele percurso, de ida e volta, para trabalhar em multinacionais alemãs e italianas estabelecidas naquela cidade.

Na chegada ao Cairo, depois de passar perto de uma gigantesca pirâmide e contornar algumas montanhas, pudemos observar a pesada poluição que paira sobre a cidade, que só desaparece quando algum khamsín, a tempestade de areia, leva aquelas nuvens pesadas de enxofre e gás carbônico para o deserto.

As pirâmides de Gizé nos diziam que estávamos bem perto de casa no retorno daquele belo passeio que fizemos até Alexandria e El-Alamein.


Viagem a Sharm El-Sheikh

Na época em que tentaram aplicar um golpe em Gorbachev, na então União Soviética, em agosto de 1991, viajamos a Sharm El-Sheikh, um balneário no sul da Península do Sinai, junto ao Mar Vermelho, entre o Golfo de Suez e o Golfo de Ácaba.

O balneário fica não muito longe de Gibal Moussa (Monte Moisés), como é chamado pelos egípcios o Monte Sinai que co-nhecemos da Bíblia, onde Moisés recebeu as tábuas de pedra com os Dez Mandamentos. Aos pés do Monte Sinai, de 2.285 m de alti-tude, há o famoso mosteiro de Santa Catarina, cercado por altas muralhas, que foi construído em 527 pelo imperador Justiniano. É um pequeno oásis entre montanhas desérticas, pelo verde exuberante encontrado em suas imediações. Natural de Alexandria, Santa Catarina foi martirizada no século IV por causa de sua fé. Próximo daquele local fica o ponto culminante do Egito, o Gibal Katherinah (Monte Santa Catarina), com 2.367 m de altitude.

No Sinai, perto da cidade jordaniana de Ácaba - palco de importante batalha vencida pelo aventureiro inglês 'Lawrence da Arábia' e os árabes contra os turcos otomanos na I Guerra Mundial -, fica uma importante cidade turística, Taba. Quando Israel completou sua retirada do Sinai, em 1982, recusou-se a sair daquela região, dizendo que era parte de seu território. Após arbitragem internacional, Taba foi devolvida ao Egito em 1989.

O Museu de Taba, criado em 1994, exibe objetos faraônicos, greco-romanos, coptas e islâmicos, além de descobertas arqueológicas do Canal Al-Salam, que está em construção e vai levar a água do Nilo à Península do Sinai. O Museu inclui uma coleção valiosa que foi levada do Sinai por Moshe Dayan, ex-Ministro de Defesa de Israel, e devolvida ao Egito há pouco tempo.

Ao norte do Sinai, passando por El-Arish, ficava o famoso 'caminho de Horus', por onde a Sagrada Família passou quando fugiu para o Egito e por onde também passou o general árabe Amr Ibn Al-Ass para conquistar aquele país. Horus é o nome de um deus egípcio, com cabeça de águia, e é o símbolo da Egypt Air, a companhia aérea estatal egípcia. Os antigos faraós já tinham descoberto no Sinai as ricas jazidas de cobre e pedras preciosas e estabeleceram seu domínio sobre a região.

As Minas do Rei Salomão, provavelmente, não ficavam no Sinai, na antiga localidade de Timna, ao norte de Taba, sítio de antigas minas de cobre, como se acreditava. As últimas especulações dão como endereço a Arábia Saudita, onde havia a rica mina de Ofir, possivelmente no local da atual mina de Mahd adh Dhahab, cujo significado é 'Berço de Deus'. Porém, o sítio da antiga Ofir nunca foi determinado com precisão. 'Então foi Salomão a Asiongaber, e a Ailat, à praia do mar Vermelho, que está na terra de Edom. E o rei Hirão mandou-lhe, por meio dos seus servos, naus e marinheiros práticos do mar, que foram com a gente de Salomão, a Ofir, e de lá trouxeram ao rei Salomão quatrocentos e cinqüenta talentos de ouro' (Segundo Livro dos Paralipômenos 8: 17-18). A cidade de Ailat - balneário israelense atual - fica entre Taba e Ácaba.

Na Península do Sinai é grande o número de beduínos. Povo nômade, mudam de lugar com freqüência em busca de alimentação para seus animais. As mulheres dos beduínos, além dos vestidos longos, usam véus negros adornados com moedas de ouro ou prata, que cobrem quase todo o rosto, e que indicam o status de riqueza da família. Elas apascentam os animais, principalmente ovelhas e cabritos, com cães magricelas, em busca de vegetação que quase não se vê. Os homens usam túnicas longas e véus brancos com um laço negro para prender os mesmos à cabeça. Eles cozinham, tomam conta dos camelos e fazem fogueiras de varetas de acácia para aquecer o chá em latas enegrecidas pela densa fumaça.

O beduíno, porém, é um homem muito desconfiado. Totalmente isolado, suspeita de todos, até dos parentes mais próximos, que possam roubar sua escassa vegetação para o rebanho e a pouca água disponível. Um provérbio beduíno exemplifica bem sua filosofia básica: 'Eu contra meu irmão; meu irmão e eu contra nosso primo; meu irmão, eu e nosso primo contra o mundo'.
Um pouco ao sul de Suez, no Sinai, encontra-se importante sítio de peregrinação, que é a Vertente de Moisés. Segundo a tradição, a água era salobra e Moisés tornou-a potável quando fincou nela um cajado, durante o Êxodo dos hebreus para a Terra Prometida.

Após descrever um pouco sobre o Sinai, voltemos à nossa viagem ao balneário de Sharm El-Sheikh, onde ficamos uma semana. Encostado numa enseada de águas mansas e mornas, Sharm El-Sheikh é um pa-raíso para turistas de todas as partes do mundo. Local de pesca e escafan-dria, os turistas se deliciam com a água cristalina, o sol sem fim, os corais multicoloridos e os peixes apresentando as cores e as formas as mais exóticas possíveis. Muitos grupos de excursionistas utilizam submarinos ou barcos com o fundo em acrílico para poder melhor observar os corais e os peixes do Mar Ver-melho. Há alguns barracões parecendo guarda-sóis gigantes em volta da enseada, construídos pelos israelenses durante a ocupação do Sinai, que apresentam o desenho estilizado da Estrela de Davi, símbolo judeu por excelência.

Ficamos hospedados no Hotel Marina. No complexo daquele hotel há muitos 'iglus', cabanas arre-dondadas, feitas de material sintético, porém confortáveis, com ar-condicionado.

A viagem até Sharm El-Sheikh fizemos num ônibus de fa-bricação brasileira, da Marcopolo. Havia TV e vídeo a bordo, além de ar-condicionado, que é necessário em todos os ônibus turísticos do Egito por causa do calor infernal. Le-vamos quase 8 horas para chegar até lá, com a televisão no volume máximo, que não nos deixou dormir quase nada à noite. Mas foi ótimo para desintoxicar nossos pulmões do ar poluído do Cairo e pegar um bronzeado carioca. Na viagem de volta, du-rante o dia, pudemos ver muitas plataformas de petróleo no Mar Vermelho. E muitos cavalos-de-pau, em terra, trabalhando em seu balanço sem fim para sugar o ouro negro do fundo do solo.

Em Sharm El-Sheikh nos sentimos quase que em casa. En-quanto que em outras praias, como as do sul de Suez, minha mulher não podia ficar à vontade porque os egípcios ficam com os olhos caindo da cara quando vêem um maiô ou um biquíni, naquela localidade não tivemos esse tipo de problema. A maioria dos turistas era composta de estrangeiros. Encontramos alemães, italianos, japone-ses, ingleses e espanhóis nos cinco dias que lá passamos. Mas havia algumas famílias árabes também.

Uma imagem inesquecível é você ver muitas das mulheres árabes, as mais conservadoras, entrarem na água de gala-beyia, aquela túnica longa até o calcanhar, e com o lenço na cabeça, enquanto os maridos estão vestidos com minúsculos calções e, às vezes, só de cuecas... As mulheres, com as roupas molhadas coladas ao corpo, me fazem lembrar de José Acúrcio, o 'José Português', que naquele sotaque característico e vocabulário bem realista nos contou uma vez: 'Enquanto estes gajos se banham nestas minúsculas cuecas, estas donas, com a roupa toda molhada, com as tetas apontadas para a frente, ficam muito mais pornográficas do que se estivessem vestidas de biquíni!'. Ora pois, pois...

Além da fauna exuberante encontrada sob as águas de Sharm El-Sheikh, havia uma outra fauna bem variada em terra. Um camelo todo enfeitado pas-seando pelas praias, uma tróica de bichas italianas rebo-lando com tangas lilás e rosa e... incrível!, até top-less.


Viagem a Lúxor

No dia 30 de março de 1992, duas semanas antes do nosso retorno ao Brasil, fomos conhecer Lúxor, no Alto Egito. A viagem fizemos em um trem de certo luxo, com poltronas macias, e bastante rápido. Como era à noite, nada pudemos ver no caminho. Heródoto, em seu livro História, relatou que levou mais de dez dias viajando de barco pelo Nilo, de Heliópolis até a antiga Tebas. Nós levamos apenas 9 horas.

Lúxor dista 720 km do Cairo e fica no sítio da antiga e gloriosa cidade de Tebas, capital do Império Egípcio por quase mil anos, chamada por Homero em sua Ilíada de 'Tebas das cem portas, só os grãos de areia superam a quantidade de tuas riquezas'. A partir do Novo Império, Tebas passou a ser a capital do reino dos faraós e atingiu seu apogeu durante o longo reinado de Ramsés II (1298 a 1232 a.C.).

Em Lúxor, hoje, destacam-se os templos de Amon-Rá e de Karnak, parcialmente em ruínas, na margem oriental do Nilo, e os Vales dos Reis e das Rainhas, na margem ocidental.

O Templo de Amon-Rá, 'rei dos deuses', também conhecido como Templo de Lúxor, é um dos poucos testemunhos que restaram do glorioso passado egípcio em Tebas. Sua construção se deve aos faraós Amenofis III e Ramsés II. As fachadas da entrada do Templo lembram o filme Os Dez Mandamentos, cercadas por dois obeliscos. Atualmente, resta apenas um obelisco, de 25 m de altura, já que o outro se encontra na Praça da Concórdia, em Paris, próximo ao Museu do Louvre, desde 1836. Duas enormes estátuas de Ramsés II guarnecem a entrada do Templo, muito bem conservadas até hoje, com exceção de seus rostos marcados pelo vandalismo humano.

Os blocos de pedra e as colunas colossais que restaram do antigo Templo lembram a arquitetura sobre-humana das pirâmides, pelo exagero de suas dimensões. Todas as colunas, paredes e tetos contêm inscrições em hieróglifos. Um desenho encontrado com freqüência é o do conhecidíssimo Ramsés II, caçando com arco e flecha em cima de sua carruagem de guerra puxada por cavalos. No caminho até o fundo da construção, de 260 m de comprimento, destacam-se pátios internos e colunatas fasciculadas e papiriformes, onde o povo tinha acesso durante as cerimônias religiosas, e no final o templo propriamente dito, onde somente os sacerdotes e o faraó tinham acesso para o encontro com os deuses.

Num pátio interno do Templo de Lúxor, uma estátua muito bem conservada de Ramsés II nos chamou a atenção pelas suas feições muito parecidas com as do ator Yul Brynner, do filme Os Dez Mandamentos. Parece que ocorreu o inverso, que aquele ator serviu de modelo para a escultura.

O Museu de Lúxor, perto do Templo de Amon-Rá, tem muito menos quantidade de objetos faraônicos do que o Museu do Cairo. Porém, suas preciosidades são todas muito bem conservadas. Naquele Museu destaca-se a 'cabeça de Hathor', feita de madeira e coberta com ouro. A deusa Hathor é o símbolo da fertilidade e aparece nos desenhos egípcios em forma de mulher com chifres e um disco solar na cabeça, ou com cabeça de vaca. No Museu despertaram nossa curiosidade as sandálias de couro tipo 'hawaianas' e as cadeiras minúsculas encontradas na tumba de Tut Ankh-Amon, o rei-menino.

Após conhecermos o Templo de Amon-Rá e o Museu de Lúxor, viajamos de hantour (charrete) até o Templo de Karnak, distante 3 km.

Na época faraônica, Karnak era ligado ao Templo de Amon-Rá por uma avenida de esfinges e procissões religiosas eram feitas de um templo a outro. O grande complexo de Karnak, dividido em três áreas distintas, também foi construído por diversos soberanos - como Thutmosis I, Hachepsut, Amenofis III, Ramsés III -, destacando-se o templo de Amon, que poderia conter toda a catedral parisiense de Notre-Dame. Pode-se citar, ainda, as pequenas obras acrescentadas na época Ptolomaica (XXX Dinastia) e da época romana (30 a.C.). Enquanto que em frente ao Templo de Lúxor há fileiras de esfinges com cabeça humana nos dois lados da avenida, em Karnak temos a mesma disposição de esfinges em frente ao Templo, porém com cabeças de carneiro.

Um desafio a enfrentar os séculos são as 134 colunas de rocha com 23 m de altura da antiga 'sala hipóstila', que media 102 m de comprimento e 53 m de largura. Essas colunas, verdadeira selva de pedra, algumas deterioradas pelo tempo, contêm, na parte superior, capitéis na forma de papiros (plantas) abertos que medem 15 m de circunferência.

Impressiona o colosso de Pinedjem, num pátio interno do Templo de Karnak. Por entre as pernas da estátua deste faraó, antigo grão-sacerdote de Amon em Tebas, vê-se grudada uma estátua feminina, retratando a esposa do faraó, de dimensões diminutas, comprovando a submissão das mulheres aos homens durante o período faraônico.

Ao fundo do Templo de Karnak, além de vários obeliscos colossais - um deles, o de Hachepsut com 3O m de altura e 200 toneladas de peso -, pode-se destacar ainda o Lago Sagrado, que tem as dimensões de um campo de futebol como o Maracanã, onde os sacerdotes se purificavam todas as manhãs antes de dar início aos ritos sagrados. Hoje, o Lago Sagrado faz parte dos roteiros turísticos de sociedades esotéricas, como a Rosa-Cruz. Ao lado do Lago encontra-se um escaravelho gigante, de pedra, sobre uma coluna. Um costume antigo é dar várias voltas em torno do escaravelho, para ter sorte. Ainda hoje muitos egípcios usam pequenos escaravelhos de pedra calcárea pintada de azul como amuleto.

Nas imediações do escaravelho gigante um camelô gritava seus produtos em espanhol. Quando soube que éramos brasileiros, começou a enumerar nomes de nossos presidentes: Sarney, Collor. E dizia que Maluf seria o futuro presidente. Perguntei a ele por que tinha tanta certeza e respondeu 'Maluf árabi! Maluf árabi!'. Então entendi a torcida do camelô.

Em Lúxor podem ser vistos modernos e luxuosos navios que fazem os famosos cruzeiros pelo Nilo, contados em estórias de romance e suspense, como Morte no Nilo, de Agatha Christie. Os navios seguem até a Represa de Assuã, parando em vários sítios arqueológicos, ou fazem o caminho em sentido inverso. Entramos em um daqueles navios e pudemos constatar o luxo: cabines individuais, piscina a bordo, salas de shows e jogos. Hoje, aqueles navios perderam muito do charme antigo e estão quase que entregues às moscas, devido à queda do turismo no Egito, de 50 a 70%, por conta dos ataques de fundamentalistas islâmicos contra turistas estrangeiros.

Chamou nossa atenção a quantidade de turistas japoneses em Lúxor. Em todos os locais por que passamos, no Egito ou fora do país, os japoneses eram sempre maioria: nas Pirâmides e na Cidadela de Saladino (Cairo), em Sharm El-Sheikh (Sinai), em toda a Terra Santa, Roma, Vaticano, Paris. Com certeza, com a moeda forte que têm e com o custo de vida altíssimo no Japão, fica muito mais barato passar as férias fora de casa. Nós, com o real valendo mais que o dólar, sonhamos um dia fazer o mesmo. O que pode ser apenas um breve sonho de verão deste início de 1995...

No segundo dia de visita a Lúxor alugamos um táxi para conhecermos as famosas tumbas subterrâneas nos Vales dos Reis e das Rainhas, que ficam na margem ocidental do Rio Nilo.

Atravessamos o Nilo em um ferry-boat e observamos uma extensa cultura de cana-de-açúcar, com trilhos para os trens apanharem a carga, e vários canais irrigando aquela parte do Vale do Nilo.

Guardando os Vales dos Reis e das Rainhas ficam os dois Colossos de Memnon. Estas estátuas de pedra têm uma altura de 20 m e é o que restou do antigo templo funerário de Amenofis III. Em péssimo estado, as estátuas apresentam rachaduras imensas e parecem que vão ruir a qualquer momento. Historiadores atribuem o dano a um terremoto que afetou toda a antiga Tebas no ano 27 a.C. Porém, outros acreditam que foi obra da barbárie do rei Cambises, da Pérsia.

No Vale dos Reis foram localizadas 22 tumbas faraônicas, pertencentes aos grandes soberanos da XVIII à XX Dinastia. Perto da entrada do túmulo de Ramsés VI, no dia 26 de novembro de 1922, os ingleses Lord Carnarvon e Howard Carter, o primeiro um colecionador de arte, o segundo um arqueólogo, fizeram uma das descobertas mais espetaculares deste século: o túmulo de Tuth Ankh-Amon. Os tesouros encontrados no túmulo do rei-menino - hoje no Museu do Cairo - foram os únicos que nos chegaram intactos, já que os tesouros dos outros túmulos foram parar em mãos de saqueadores e contrabandistas. Não conseguimos penetrar no túmulo de Tuth Ankh-Amon, pois o mesmo estava fechado para reformas e, principalmente, para evitar que os inúmeros turistas - na época uma média de 3.000 por dia -, entrando no hipogeu, afetassem ainda mais as cores das pinturas nas paredes. Hoje, o hipogeu de Tut Ankh-Amon é aberto a intervalos de tempo, para evitar a rápida deterioração das pinturas em seu interior, provocada pelo sal evaporado do suor, pelos micróbios trazidos pelos sapatos e pelo simples respirar dos turistas.

A sepultura de faraós em hipogeus e não mais em templos funerários começou com Tuthmosis I, que decidiu ser enterrado em lugar secreto e inacessível, interrompendo uma tradição de mais de 1.700 anos. Para a construção dessas escavações em rocha maciça, com corredores de dezenas de metros que levavam até a câmara mortuária, acredita-se que eram utilizados prisioneiros de guerra. Após o término das obras, os prisioneiros eram simplesmente eliminados, para não denunciarem o local onde o faraó havia sido enterrado. Porém, o repouso desses faraós durou pouco: os saques iniciaram-se ainda na época faraônica. Uma das peças mais cobiçadas era o 'escaravelho do coração', um amuleto colocado sobre o coração da múmia, que permitia ao defunto alcançar a salvação no dia do Juízo Final, quando suas ações eram colocadas em um prato da balança.

Para evitar a violação das tumbas, os sacerdotes transportavam as múmias reais de uma tumba a outra, dentro da escuridão da noite. Ramsés III foi enterrado nada menos que três vezes. Alguns soberanos acabaram por permanecer juntos numa mesma tumba, como o grande Ramsés II e seu pai Seti I.

Conhecemos todas as tumbas que estavam abertas para a visitação. É impressionante verificar a obra sobre-humana dos antigos egípcios, que rasgaram o coração da montanha e perfuraram extensos túneis na rocha maciça, ao fundo dos quais ficava a câmara com o sarcófago. Imaginar como conseguiram isto, furando a montanha, descendo em degraus, seguindo em frente, construindo colunas e câmaras secundárias laterais, dobrando à direita ou à esquerda, em corredores de dezenas e dezenas de metros. Os hipogeus mais extensos são os de Seti I, Ramsés III, Ramsés IV e de Mineptah.

Sob o reinado de Mineptah aparece pela primeira vez o nome de Israel, encravado em um obelisco de granito: 'Israel desolada, que já não tem sementes' - o que comprova a perseguição dos faraós contra os hebreus do sexo masculino, que tinham que ser eliminados ao nascerem. Mineptah era filho de Ramsés II, sob o qual os hebreus foram escravizados no Egito. Como Mineptah foi encontrado todo coberto de sal, há uma hipótese de que este tenha sido o faraó do Êxodo e que fora coberto pelas águas do Mar Vermelho quando perseguia os hebreus.

Da encosta do morro, em frente ao túmulo de Tuth Ankh- Amon, eu filmava tranqüilamente o Vale dos Reis quando fui convidado a descer, pois as fotos e filmagens são totalmente proibidas no local, quer fora, quer dentro das tumbas subterrâneas. Na câmara mortuária de Amenofis II, o flash da máquina fotográfica de minha filha traiu seu ato. Imediatamente um funcionário apareceu e arrancou a câmara de minha filha, querendo retirar o filme. Após alguma conversa - para valorizar a barganha -, um bakshish (gorjeta) resolveu o problema e a máquina foi devolvida.

No Vale das Rainhas conhecemos todas as tumbas abertas para a visitação, como as de Thiti, Amon-her-Khopechef e Khamuast. Infelizmente, o hipogeu da rainha Nefertari, esposa de Ramsés II, estava fechado para reformas. Descoberto em 1904 pelo italiano Ernesto Schiaparelli, o hipogeu de Nefertari é o mais belo e importante de todo o Vale das Rainhas, por suas esplêndidas pinturas. Nefertari é aquela figura conhecidíssima que tem sobre a cabeça um abutre com asas abertas encimado por um atavio real em forma de duas penas gigantes. É assim que ela aparece nos desenhos da tumba, fazendo a oferenda aos deuses, ou de mãos dadas com os deuses Horus e Ísis.

Na saída de um dos hipogeus, no Vale dos Reis, um vendedor ambulante nos mostrou um desenho colorido em uma lasca de pedra calcárea. O desenho imitava figuras faraônicas, muito semelhantes às dezenas que vimos no interior das tumbas. Enrolando a peça em um pano imundo, olhando desconfiado para os lados, como que escapando dos olhos da polícia, ele nos dava a entender que era um objeto de grande valor, que deveríamos comprar para não nos arrependermos depois. Até parecia que o sujeito tinha roubado a peça de algum museu. O desenho estava com as cores um pouco apagadas e sujas, com certeza feitas assim de propósito. Pediu pela peça 50 libras. Como já conhecia a manha desses ambulantes, ofereci 5 libras. Como bom ator que não perde o rebolado, fingiu uma indignação sem limites, trovejou alguns impropérios que não entendemos e fez que foi embora. Quando já estávamos embarcados no táxi, veio correndo e fechou o negócio por 10 libras...

Em Lúxor visitamos ainda o Instituto de Papiro Dr. Ragab, que fica dentro de um barco ancorado no Nilo, similar ao Instituto de mesmo nome no Cairo. É na realidade um museu, que apresenta lindos desenhos em papiros com motivos faraônicos, islâmicos e coptas.

Porém, nada mais romântico que navegar em uma feluca, aquele barco pequeno com mastro alto e vela que se vê em todos os recantos do Rio Nilo. É utilizado para pesca, transporte de materiais e lazer. Aproveitamos para fazer um passeio numa feluca, passando pelos imponentes navios-cruzeiros do Nilo e vendo toda a orla da cidade de Lúxor, onde se destaca o Templo de Amon-Rá.


Algumas estórias de humor

Quem não se deliciava, no Brasil, com o 'imexível' Mi-nistro Magri? Ou com 'aquilo roxo' do Presidente Collor? Es-tas e outras situações cômicas, como o 'bolero' dos Minis-tros Cabral e Zélia, conseguiram transmitir um toque de hu-mor que ajudou, sem dúvida, a municiar fartamente jornalis-tas e chargistas. Poderíamos até dizer que a piada do ano de 1990 foi o 'governo paralelo' do PT. E a de 1991 - alguém discorda, dentre os militares? - o famoso 'soldão', da nova Lei de Remuneração dos Militares, que estava previsto para aumentar substancialmente os vencimentos dos milicos mas só conseguiu aumentar os descontos.

Nos dois anos que passamos no Egito pudemos contar com al-gumas cenas de humor, tão importante para nossa saúde, fí-sica ou mental. Rimos bastante quando soubemos que um antigo adido mili-tar brasileiro designado para servir no Egito levou um cai-xote enorme, cheio de papel higiênico, como precaução, porque tinham dito a ele que aquele produto não estava disponível no Cairo. Embora o filho do adido tivesse alertado sobre o inusitado, por ser o Cairo a maior cidade da África e uma das maiores do mundo. A seguir, algumas estórias que ajudaram a nossa descontração no Egito.



Documento do Dr. Yussef

Nosso amigo Dr. Yussef Eid Torrico, Encarregado de Negócios na Embaixada da Bolívia, nos mostrou um documento bastante curioso.

Por ser integrante do corpo diplomático, com algumas regalias e imunidades oferecidas pelo governo egípcio, o Dr. Yussef tinha uma autorização por escrito, que lhe fran-queava o acesso a vários locais no Cairo.

Curioso e ainda não dominando por completo o idioma árabe, o Dr. Yussef pediu que fizessem a tradução do docu-mento na sua Embaixada, onde trabalhavam alguns egípcios. Dois deles lhe fizeram a gentileza e, na média, saiu a se-guinte tradução: 'O portador do documento tem acesso a todos os lugares, com exceção de alguns'. Apenas isso, sem especificar quais eram as exceções. Ou quais os locais acessíveis...


A pressa dos egípcios

No Cairo, observávamos a pressa eterna dos egípcios no trânsito, buzinando sempre, correndo como loucos, não res-peitando sinalização, querendo sempre abrir caminho de qual-quer jeito. Sempre com muita pressa, loucos para chegar sabe Deus aonde. Minha mulher Nice elucidou o enigma:

- É simples, eles precisam ver duas, três ou mais mulheres num só dia.

Realmente, é preciso muita pressa mesmo para poder mar-car o 'ponto' em tantas casas diferentes...


Gaúcho da Fronteira

Um dia a Ludmila, uma garotinha esperta de 5 aninhos, filha de um casal brasileiro que chegou dois meses depois da gente, perguntou à sua mãe:

- Mãe, deixa eu ver o Gaúcho da Fronteira nesta re-vista?

- Gaúcho da Fronteira? - inquiriu a mãe.

Ela foi ver do que se tratava. Não era o cantor dos pa-gos gaúchos. Apenas, estampada na revista, uma enorme foto de Fídel Castro.


Horário de verão

O sargento Raul, que trabalhava na aditância militar da Argentina, estava tomando café tranqüilamente em casa, quando seu chefe telefonou querendo saber por que ainda não tinha chegado ao local de trabalho. O Raul disse que só iria meia hora depois, porque estava muito cedo. Somente após as explicações é que o coronel veio a saber o porquê do 'atraso' de seu auxiliar: havia acabado o horário de verão e tinha esquecido de atrasar seu relógio...

Enquanto isso, este panaca que escreve estas mal-tra-çadas linhas, que no dia anterior havia enviado vários telex ao Brasil comunicando a mudança de horário a ser realizada, eu esqueci também de atrasar o relógio e estava me perguntando na Embaixada: 'Por que será que até agora, quase 10 horas, não chegou ninguém ainda para trabalhar?'

Mas não aprendi a lição. No ano seguinte, no dia 1º de maio, à tarde, feriado nacional, fui levar as crianças para o catecismo. A aula começaria às 17 horas e che-gando perto da igreja comentei com minha mulher: 'Chegamos cedo, faltam ainda 15 minutos'. Quando entramos no pátio do colégio, ao lado da igreja de São José, em Zamalek, a professora Stella e a freira Josefina nos aguardavam com um sorriso de orelha a orelha. Esquecêramos de adiantar o relógio. Tinha começado o horário de verão...


Quero máia!

Um passatempo predileto nosso era passear à noitinha pelas ruas do Cairo e entrar em todos os bazares para conhe-cer os produtos tipicamente egípcios expostos nas pratelei-ras. Não há supermercados grandes, como o Carrefour, embora comecem a aparecer alguns mercados de tamanho médio, como o Alfa e a rede Sunny. Lá, ainda predominam os antigos 'secos e molhados' que existiam há 20 no Brasil, armazéns e lojas que podem ser encontrados em qualquer dobra de esquina do Cairo.

Numa dessas andanças, dentro de um mercado, minha mulher chamou 'Maia'! para me mostrar alguma coisa - é assim que ela fala quando me chama pelo sobrenome, Maier.

Fui atender minha mulher, que estava com sua atenção voltada para quinquilharias diferentes do meu interesse, e quase que simultaneamente apareceu o atendente da loja com duas garrafas de água mineral para entregar à minha mulher. Ela não havia pedido nada, mas conseguimos decifrar o mal-entendido e rimos bastante: máia, em árabe, significa 'água'...


Os caipiras saydis

No Egito, quem mais sofre com as piadas são os saydis, os caipiras provenientes do interior, especialmente do Alto Egito, que ficam perdidos quando chegam à cidade grande. São beduí-nos analfabetos que facilmente caem no conto de algum viga-rista. Mas, os espertos habitantes da cidade até que não precisam inventar muitas anedotas. Elas acontecem, de ver-dade.

Há uma estória verídica de um desses saydis que chegou ao Cairo. Com algum dinheiro no bolso, ele queria fazer crescer rapidamente seu capital. Chegando ao ponto final de ônibus, procurou um senhor que lhe pareceu apto a orientá-lo em como melhor aplicar o dinheiro. A proposta apresentada para fazer render o dinheiro não podia ser melhor: comprar um bonde que atravessava a cidade. Era só subir no bonde e começar a cobrar a passagem de cada um. O bonde anda sempre cheio e, assim, logo poderia ver o sonho realizado, o di-nheiro aplicado rendendo a valer. Somente quando o pobre sayd foi cobrar o dinheiro dos passageiros, ocasião em que foi jogado para fora do bonde, é que foi compreender em que furada havia se metido. Como se vê, não é só mineiro que compra trem...


Líbano, boa terra

Outra anedota vem do Líbano. Devem ter copiado do Bra-sil, onde temos a mesma piada. Deus fez o mundo e começou a dar um capricho especial na região onde hoje fica o Líbano: clima agradável, muitas árvores frutíferas, paisagens lin-das, vales, montanhas, neve. Como sabemos, uma área onde du-rante 15 anos muçulmanos e cristãos brincaram de se matar numa guerra civil sangrenta. Bem, com todo aquele capricho de Deus em acabar sua criação naquele lugar, um anjo protestou:

- Mas, por que o Senhor está se esmerando tanto neste lugar, enquanto que em outras partes do mundo há terremotos, vulcões e furacões?

Ao que o Senhor respondeu:

- Mas você não sabe que povinho eu vou botar aqui!...


Tanque andando em marcha à ré

Os egípcios gostam de fazer piadas deles mesmos. Mesmo relacionando seu maior rival na região, Israel.

Numa de suas guerras contra Israel, um capitão egípcio quis saber de seu soldado por que ele estava dirigindo o carro de combate em marcha à ré para enfrentar o inimigo. O soldado respondeu:

- É que fica mais fácil para fugir quando os israelen-ses nos atacarem...


Você, leitor, deverá dizer que são todas piadas sem graça, mixurucas. Tem razão. Nenhuma delas leva você a dar gargalhadas. Mas é bom lembrar que estamos no Egito, voando em nosso tapete persa da imaginação, onde as piadas não são pesadas, não há aquela apelação que existe no Brasil, onde até para entreter crianças em um programa humorístico de TV se tenha que lançar mão de piadas 'pesadas' o tempo todo.

No Egito não existe nada disso. As ruas podem ser muito sujas, o povo sem higiene. Mas uma coisa impor-tante as crianças do Egito ainda têm e que as nossas crianças desde muito cedo já perderam no Brasil por causa da sujeirada que aparece diariamente na televisão, nas revis-tas, na vida do dia-a-dia: pureza. Lá você encontra ainda crianças inocentes, com 10, 12 anos. E mesmo os adultos têm um comportamento que muitas vezes pensamos que são todos criancinhas. Era muito bonito ver aquilo.

O leitor poderá dizer que sou moralista. Pode ser. Mas é bom lembrar que já estamos tão acostumados com o que acontece em nossa volta que achamos tudo muito 'natural'. Um exemplo: você só sente o mau cheiro das fezes quando entra em um banheiro onde alguém defecou. Enquanto você defeca, quase nem sente. Até lê jornal.

Uma vez, um colega do curso de inglês emprestou uma fita de vídeo e me recomendou que não deixasse que as crian-ças vissem. Fui observar, alta hora da noite, depois das crianças terem ido dormir, se poderia mostrar o filme para elas. Qual não foi minha surpresa quando vi que aquele filme tinha pas-sado numa 'tela quente' no Brasil, sem corte algum. E que as crianças já tinham assistido.

Como as águas do Nilo, que mansamente correm para o Me-diterrâneo, os egípcios não têm pressa nenhuma em atingir esse estágio da civilização que nós ocidentais já alcança-mos: violência de todo tipo, apelação sexual, completa falta de pudor. Era uma pena eu não poder garga-lhar junto com os egípcios de suas piadas 'mixurucas'.


Obs.: o autor trabalhou 2 anos na Embaixada Brasileira no Egito (1990-92).



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