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Ensaios-->A dialética da barbárie -- 03/12/2003 - 10:53 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
'A dialética da barbárie

Por Lindolpho Cademartori (lcademartori@odebatedouro.com.br)

Caso nos escoremos no vaticínio de Euclides da Cunha, o futuro e redenção do Ocidente está na sinergia pagã que há de se realizar nas estepes sobre as quais Gengis Khan outrora ergueu o maior de todos os impérios, extendendo-se desde o Cáspio até o Mar do Japão. A Rússia de Euclides da Cunha é bárbara, e é a fusão do barbarismo tártaro-eslavo-mongol com a polidez e refinamento cultural ocidentais de raiz greco-latina que irá assegurar à Europa e ao Ocidente uma nova era de esplendor e prosperidade. O autor de Os Sertões dá início ao seu ensaio “A Missão da Rússia”, redigido è época da eclosão do conflito russo-japonês, em brados mansos, qual típico de sua erudição civilizada, com o seguinte prolegômeno: “A Rússia é bárbara”. Insistindo em seu argumento primário, Euclides da Cunha elenca a absorção da cultura renascentista ocidental pela Rússia e alega, munido de argumentação convincente e sólida base histórica, que a “personalidade robusta, impetuosa e primitiva, de bárbaro, com os recursos da vida contemporânea” irá proporcionar à Rússia o papel de Teseu, herói e patrono de uma Ariadne civilizacional que queda nas garras do grande Minotauro asiático. A Rússia, imensa ponte bicontinental e macroposto de transição entre quatro civilizações – ocidental, islâmica, confuciana e hindu – irá – ou, melhor dizendo, iria? - se arrogar o status de linha de frente da Europa cristã e laica contra o triunvirato de civilizações asiáticas, em uma Cruzada contemporânea cujo prêmio é literalmente a posse do mundo.
Quando Euclides da Cunha escreve que

“Ali [no Oriente] a Rússia não tem apenas o privilégio de ser a única representante da Europa, senão o de ser a única entre as nacionalidades que, por um longo contacto com a barbaria, pelo hábito de vencer e dominar os impérios orientais tipicamente bárbaros e por conservar ainda vivazes os atributos guerreiros do homem primitivo – está mais bem aparelhada a constituir-se o núcleo de resistência do ‘bloc’ ocidental contra a ameaça asiática.” [1]

ele atesta para uma suposta inevitabilidade histórica, já ventilada em finais do século XIX (às vezes por intelectuais renomados; outras, nem tanto) de que a civilização ocidental encontrava-se em pleno declínio, adiantando-se aos cientistas sociais, filósofos, críticos culturais e politólogos do século XX – Samuel P. Huntigton à frente -, que quase cem anos depois iriam ser entronados no cenário de análise das relações internacionais. Involuntariamente, foi Euclides da Cunha, e não Samuel Huntington, o autor da invenção político-analítica do culturalismo como base para definir os conflitos entre as diferentes civilizações. O mote da tese sobre a qual Huntington desenvolveu seu artigo Clash of Civilizations?, publicado no periódico temático Foreign Affairs, do verão de 1993, já havia sido apresentado à análise quase noventa anos antes.

Mas a benéfica dialética da barbárie, através da qual operar-se-ia uma ressurreição do Ocidente – levando-se em conta o fato de que Euclides da Cunha já apostava, equivocadamente, em uma derrocada da civilização ocidental – baseada no mosaico de virtudes e vícios do Império moscovita não laureou em vida o literato tupiniquim com as profecias que o mesmo vislumbrou. Perfaz uma ironia torpe, de um sarcasmo histórico pobre, observar que foi exatamente o conflito do qual Euclides apostou que a Rússia iria emergir triunfante – a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905 – o catalisador da morte anunciada do Império dos Czares. São poucos os impérios, todos incorrendo no último suspiro, que vivenciaram, nos primeiros vinte anos do século XX, uma história tão conturbada quanto a da Rússia, que de monarquia absolutista semi-feudal se converteu, do dia para a noite, em um laboratório político em que primeiro se implementaram as infelicidades do socialismo real. O vaticínio de Euclides não se concretizou: a Rússia do século XX não só não contribuiu para “resgatar” o Ocidente, como postou-se, ao lado da Alemanha nazista, como seu principal adversário. Dos quatro impérios que ruíram em 1918 – dois “ocidentais”, a Alemanha dos Hohenzollern e a Áustria-Hungria do Habsburgo; um “eurasiano” ou “meio-ocidental”, a Rússia dos Romanov; e um islâmico, o Império Otomano – a Rússia foi o único a enveredar por um experimento político completamente desconhecido, em termos práticos, da civilização ocidental, e, surpreendentemente, foi o que cujo intento mais tempo sobreviveu sem modificações estruturais. E, no quedar dos muros do século em cuja inauguração a Rússia desfilou com as alegorias políticas principais – a Revolução de 1917 -, a “terra bárbara” descrita por Euclides da Cunha bateu um novo recorde, como o império que mais rápido desmoronou em toda a História.

Quando as rodas da História voltaram a se mover e uma Rússia sob os escombros de setenta e quatro anos perdidos se deu conta de suas feridas de gigante, ela tratou de procurar um rearranjo político baseado, uma vez mais, em experiências. Porque, para fins práticos, a Rússia foi provavelmente a potência (semi) ocidental que mais tardou a viver uma dinâmica política democrática, e, quando o fez, sentiu – e está sentindo - nas carnes da estrutura social as agruras do aprendizado, da adaptação e das macro-transformações de um povo que de um regime absolutista semi-feudal passou pela mais intensa experiência de totalitarismo laico do pensamento político contemporâneo, e foi, enfim, cuspido no final da festa da “terceira onda democrática”[2] que abalroou o Ocidente e as nações não-ocidentais que se espelharam na menina dos olhos da história política ocidental: a democracia representativa. E o contexto não poderia ser mais providencial.

O rei estrangeiro

A Europa não é apenas um dos módulos históricos do Ocidente, mas também sua base, seu “reino-fonte” e seu alicerce axiológico. E como todo reino abstrato, goza de um trono metafísico, de uma liderança não necessariamente baseada no poder e na coerção e por vezes articulada através de contigências estratégicas. Se tratarmos a história européia em termos de rotatividade de lideranças – e tomando como princípio a civilização helênica -, teremos um desfile de civilizações e impérios timoneiros que passa por gregos, romanos, católicos, ibéricos, Habsburgos plurinacionais, franceses, ingleses, alemães e momentos históricos em que toda (ou quase toda) essa imensa paidéia de povos se amontoou em campos de batalha para decidir, por meio das armas, quem reivindicaria de uma vez por todas o trono do Velho Mundo. Os dois milênios de “intensa atividade histórica” culminaram no esgotamento militar, psicossocial, econômico, estratégico, nacionalista(s) e histórico da Europa, em 1945, quando o Velho Mundo, qual um ente que há dois mil anos vem se flagelando física e psicologicamente, em busca de um auto-controle capitaneado por algum recanto de sua consciência, resolveu desmontar a pilha de espadas e entregar o trono metafísico a um rei estrangeiro.

Em verdade, é lícito analisar a Europa pós-1945, abstratamente, em termos de uma “monarquia dual” ou de “duas federações” fundamentadas em razões e contigências de ordem estratégica: a oeste do Neisse, a Europa Ocidental do benéfico rei estrangeiro, os Estados Unidos da América, artífice do auxílio que reconstruiu a Europa mutilada e que lançou-a em uma era pós-histórica de prosperidade sem paralelos; a leste do Neisse, a Europa Oriental do despótico rei “ilegítimo”, produto da “química pagã” euro-asiática, tirano e usurpador, pivô das pilhagens e dominação das nações eslavas e responsável por quarenta anos de atraso da Europa do Leste em relação à Europa Ocidental.

Com a queda do “Império do Leste”, as nações a leste do Neisse submergiram, circunstancialmente, em uma orgia política iconizada por uma transição sistêmica assimétrica, e, em alguns casos, pela fragmentação de unidades estatais. Principais vítimas da malfadada experiência soviética, os países da Europa Oriental juntaram o que sobrou dos registros do inferno socialista e os estudaram com esmero ímpar, para deles extraírem as lições necessárias à inserção em uma Europa que esqueceu a Realpolitik para se integrar em uma união densa, respaldada na heterogeneidade, na superação das rivalidades históricas e na projeção externa homogênea. O alargamento da União Européia, em 2004, com vistas à integração de nove países da antiga Cortina de Ferro (à exceção do décimo membro, Malta) representa um movimento rumo à consolidação definitiva da unidade geográfica européia, abrangendo desde Lisboa, em Portugal, até Talin, na Estônia. O soar das trombetas em Bruxelas anuncia a última deposição de armas e o fraterno abraço continental do continente que primeiro cruza a última fronteira da (sua própria) História.

Todavia, o esgotamento europeu não tange apenas às questões estratégicas intra-continentais e à superação das divergências históricas. Trata-se, ainda, de uma exaustão de recursos, potencialidade inventiva e material, taxas de natalidade negativas, conformismo e ausência de ímpetos transformadores coletivos e comodidade em uma dinâmica política que ameaça lançar o Velho Mundo na mediocridade genérica e na dependência externa de recursos em níveis prejudiciais. Caso a China mantenha o ritmo de expansão econômica registrado no último quadriênio, dentro de dez anos a produção industrial chinesa ultrapassará, com vasta margem de superioridade, a produção industrial européia, de modo que a participação européia na economia mundial, que em dias correntes corresponde a 23%, decrescerá para 21% em 2020 e irrisórios 12% em 2050, de acordo com dados do Institut Français de Relations Internationales, em estudo coordenado por Philppe Colombani[3].

O patamar de satisfação material atingido pela maioria dos países da Europa Ocidental e o encaminhamento da consolidação da prosperidade nas “nações tardias” de outrora, como Portugal, Espanha e Grécia, ameaça culminar em um horizonte concreto em que a capacidade de transformação da(s) sociedade(s) européias descerá a índices aquém da mediocridade, erguendo alto a bandeira do conformismo e do objetivo da prosperidade concluída. Logo, é possível extrair a conclusão de que o alargamento da “Europa dos 15” para a “Europa dos 25” poderá, além de angariar nova vitalidade inventiva e vastidão de recursos, temperar a pasmaceira pós-histórica do Velho Mundo com uma saudável dose de disparidade e assimetria, retomando-se assim o processo com vistas à consecução do equilíbrio. Importa frisar, porém, que a integração dos países do Leste e o equilíbrio social relativo da ainda oscilante Alemanha reunificada[4] deverão ser atingidos a médio prazo, e, vez que os projetos de alargamento não incluem a Rússia e tampouco a Ucrânia – os dois países europeus de maior extensão -, é possível prever um novo esgotamento de recursos e alcance de equilíbrio a médio-longo prazo.

Não obstante ter sido geograficamente abalada com a anárquica e sofrível transição do Leste Europeu após a derrocada do bloco soviético, a ruptura do condomínio de poder americano-soviético na Europa e a improvisada “cessão de direitos” e de antigas áreas de influência soviética aos norte-americanos gerou um impasse que, no entender de alguns cientistas políticos e historiadores, fez apenas as vezes de um instrumento substitutivo da rivalidade americano-soviética ao longo da Guerra Fria. Desta feita, porém, o “instrumento substitutivo” excluiria temporariamente a Rússia convalescente e resultaria em um princípio de enfrentamento no qual os interesses conflitantes dos Estados Unidos e da Europa em si seriam os protagonistas. Após Maastricht, a Europa avançou não só no processo macro-integracionista de políticas fiscais, monetárias, financeiras, comerciais, agrícolas, industriais e trabalhistas, como também no âmbito de integração estratégica, externada através do flerte do Conselho Europeu com vistas à elaboração de uma agenda externa e de defesa comum.

Há duas vertentes interpretativas para se compreender o que ocorreu no âmbito diplomático da União Européia após as fissuras intra-sistêmicas durante a II Guerra do Golfo: pode-se entender as políticas conflitantes como o princípio (presumivelmente óbvio, segundo os partidários da referida interpretação) de que a integração estratégica e diplomática do continente é uma ilusão meramente programática, e que os membros da UE não se prestarão a abdicar de seus interesses nacionais em prol da União em um futuro próximo; ou é sensato, ainda, lograr a conclusão de que as fissuras são, em verdade, ocorrências marginais e incapazes de comprometer o avançado processo de integração européia rumo a um híbrido federativo, cabeadas pela nação cuja identidade regional é uma incógnita – o Reino Unido, de maneira que os britânicos não sabem se são europeus ou intrinsecamente insulares e dotados de um caráter nacional inflexível - e seguidas por outras que aventam razões estratégicas de diferentes matizes: a Polônia, acometida por uma sanha infantil baseada em uma histeria coletiva sobre o temor absurdo de ser novamente desmembrada por russos e alemães; a Itália, liderada por (mais) um primeiro-ministro que ingressará nos anais do folclore político ocidental; e a Espanha, cujo alinhamento aos bloco anglo-americano foi justificado por alguns como uma “manobra de estratégia econômica e permeada por desejos de influência”, sendo que, na verdade, o primeiro-ministro Aznar, ao discordar do eixo franco-alemão e da maioria das nações continentais, protagoniza um desagradável e moralmente tosco episódio da história espanhola, vez que seria difícil imaginar uma Espanha próspera como a atual sem que o país ingressasse na antiga CEE (Comunidade Econômica Européia).

O rei estrangeiro permanece cordial e benéfico; em contrapartida, os fossos finalísticos que ora se alargam passam a demonstrar uma crescente divergência estratégica entre a Europa e os Estados Unidos. Se o Reino Unido dispunha de alguma pretensão de liderar a Europa unificada do século XXI, a mesma foi definitivamente sepultada pelos estertores da política de alinhamento de Tony Blair. Os “dissidentes” espanhóis, italianos, poloneses e outras exceções pouco significantes do Leste Europeu (algumas das quais incompreensíveis, como o caso da Romênia – que, a despeito de pretender ingressar na UE na próxima rodada de expansão, em 2007, apoiou a ação anglo-americana no Iraque – e da Bulgária, cujos interesses são sobremaneira semelhantes aos da Romênia) afiguram-se como moeda de troca no xadrez geoestratégico travado entre o eixo Paris-Berlim (e Moscou) e Washington. Quando a Europa continental altear o tom reivindicatório e operar uma ruptura substancial com os Estados Unidos, o trono vago será imediatamente assumido pela liderança franco-alemã e os dissidentes que ofereceram resistência aos interesses de Paris e de Berlim dar-se-ão conta de que a manobra estratégica foi equivocada e que a única nação capaz de extrair algum benefício fático do alinhamento aos Estados Unidos será o Reino Unido.

NOTAS:

[1] CUNHA, Euclides da. A Missão da Rússia. Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/contrastes.html A%20MISSÃO. Acesso em 01/09/2003.

[2] Vide o artigo de Samuel P. Huntington, intitulado Democracy´s Third Wave, em que o autor desenvolve a referida idéia de forma mais extensa e inteligível. Segundo Huntington, a terceira onda democrática alberga o período de 1974 a 1990, tendo sido precedida por duas outras “ondas”. A primeira onda democrática teria ocorrido entre 1820 e 1926, porquanto a segunda se estendido de 1945 a 1962. (HUNTINGTON, Samuel P. Democracy´s Third Wave in DIAMOND, Larry, and PLATTNER, Marc. The Global Resurgence of Democracy. Baltimore: The John Hopkins Un. Press, 1996.)

[3] BOUCHER, Eric Le. Le déclin assuré de l Europe au XXIe siècle, sauf si... Le Monde, 03/05/2003.

[4] Vide, entre outras assimetrias que têm sido continuamente abrandadas pelos diversos programas de integração e os pesados investimentos em infra-estrutura no território da antiga RDA (República Democrática Alemã), o fluxo contínuo de pessoas rumo aos Estados ocidentais, o que tem provocado a vacância de milhares de residências em cidades como Dresden e Frankfurt an Oder.'

Obs.: Texto enviado pelo autor: domingo, 30 de novembro de 2003 23:48:42







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