Luiz Carlos A. Iasbeck
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP
Estudar a comunicação humana sob a perspectiva da incomunicação é uma atitude semiótica que possibilita não só proliferação como também - e sobretudo - a expropriação de sentidos que tendem a se cristalizar em torno de alguns textos culturais de alta redundância.
Incomunicação é um outro nome para as rupturas que azedam as relações e inviabilizam a interatividade humana. É um fenômeno ligado à exaustão, ao stress, à indiferença, à redundância e à apatia em relação às diferenças, à alteridade, aos conflitos e impossibilidades de todas as espécies. Está também intimamente ligada a algumas formas de loucuras sociáveis, desvios psíquicos suportáveis ou toleráveis com relação aos cânones sociais.
Em quaisquer das possibilidades, sua instauração reacende o pânico da solidão em meio a ambientes socializados e tecnologicamente civilizados, tornando “perigosos aqueles que podem sobreviver” . Esse “perigo” torna-se iminente quando a competência humana de administrar as inter-relações entre as dimensões biológica, social e cultural da vida se afrouxa, embaralhando os extratos de realidade nos quais vivemos e convivemos.
O louco é, tal como o senso comum o vê, aquele que perdeu a competência de entender a realidade. Na terminologia da escola semiótica da cultura, podemos afirmar que o louco é aquele que perdeu a competência de distinguir a primeira da segunda realidade – para utilizarmos a classificação do semioticista da cultura, o tcheco Ivan Bystrina – , refugiando-se num local imaginário (o locus da cultura), que ele cultiva para a própria sobrevivência e conseqüente superação simbólica dos problemas da primeira realidade (o lugar das dimensões biológica e social). Não se trata de alguém que vive fora da “realidade”, mas de alguém que vive densamente a realidade numa dimensão psicológica fortemente simbólica e associativa.
A Loucura como Ciência
Sabemos, desde Leach, Fromm, Watzlawick e outros que a comunicação é uma atividade humana absolutamente essencial, indispensável à sobrevivência biológica, social e cultural (psíquica). A falência da competência interativa pode levar o indivíduo ao enclausuramento, a um descolamento dos estímulos do mundo, de tal forma que o outro desaparece, cedendo lugar a um espelho que reflete e refrata a imagem que nele se projeta. Quando o “alter” é substituído pelo “auto”, os fenômenos tornam-se não mais que perturbações externas impotentes para sensibilizar a atenção introvertida do indivíduo autocentrado, incomunicante e incomunicável.
O que Lucien Sfez define como tautismo (um misto de tautologia com autismo) poderia aqui se aproximar bastante desse fenômeno tão comum e tão disseminado pelos modernos mídias: não há expressão dirigida ao outro, não há mais a ocupação do produtor da comunicação para com seus públicos. O que há não é outra coisa senão uma produção de discurso centrada nas próprias contingências do emissor, de tal maneira que o público torna-se um acessório dispensável e incômodo num arremedo de processo comunicativo unilateral. Não podemos dizer, entretanto, que não exista comunicação nesse panorama porque falta o básico que o processo requer: a interatividade..
Porém, partindo do axioma de Watzlawick – o de que é impossível não comunicar – somos levados a entender que toda atitude comunicativa supõe uma outra forma de anormalidade – ou de excesso de normalidade – que faz com que o indivíduo se distribua (e, portanto, se divida) em diferentes papéis, funções e posturas, confundindo-se, por força da interatividade, com aquilo que se torna. As diferentes modalidades e intensidades de personalidade esquizotímica estão associadas às necessárias repartições de uma primordial integridade. E são, até determinado ponto, normais e necessárias ao convívio social. A doença se instaura como esquizofrenia, tornando-se indisfarçável, quando o sujeito, ao invés de administrar sua personalidade, torna-se administrado por ela, perdendo, assim, a competência de governar e responder por si mesmo, em suas atitudes comunicativas, aos estímulos que recebe.
Sob tal perspectiva, a loucura – uma das raízes da cultura, no entender de estudiosos da semiótica da cultura ( tais como Bystrina e Ivanov) - se nos afigura como lugar da incomunicação ou de uma espécie de comunicação incompreendida, de “mão única”, eliminando as possibilidades interativas que estão na origem do processo. Portanto, incomunicação.
Mas nem todas as loucuras levam o sujeito a eliminar o outro em favor de uma exacerbação da auto-referencialidade. Em outras, a proliferação de situações e lugares imaginários cria ambientes nos quais o entendimento e as múltiplas trocas alucinadas deixam de realizar o objetivo da comunicação para tornar-se um problema que podemos denominar de incomunicação
A Consciência da Loucura
As loucuras derivadas de diferentes formas de distúrbio mental fazem com que o comportamento de um indivíduo se diferencie de maneira bastante evidente do seu comportamento habitual e do comportamento rotineiro dos demais que participam de seu ambiente. Sabemos que todo comportamento é informacional e, por isso, o louco – ao trazer para o repertório de um grupo elementos expressivos que não se conformam com os padrões considerados aceitáveis – desacomoda hábitos e instaura o saudável hábito de rever (ainda que seja para reforçá-los) costumes, crenças e fundamentos morais que sustentam a vida social e cultural do grupo .
O louco é, assim, o lugar da diferença e, portanto, o lugar do incômodo. Seu comportamento é, assim, o sintoma de um desvio da normalidade, um desvio que se manifesta simultaneamente nos planos ou dimensões mentais, psíquicos e/ou neurológicos. Suas atitudes chegam a ser imprevisíveis , uma vez que ele pensa e age fora do controle da razão, não suporta ser administrado, controlado e não pode, dessa forma, ser avaliado ou punido por ultrapassar ou não atingir os paradigmas da normalidade. Ao louco, as penas são brandas e os juízos de valor, complacentes.
Há, porém, formas e intensidades diversas de loucuras. “Estar louco” pode significar (em alguns contextos) estar tomado de uma forte emoção, estar fortemente emulado a superar desafios e problemas para conseguir o que se deseja. Em outras situações, pode uma pessoa ser considerada louca pelo excesso de coragem, de ousadia, de desprezo às limitações que o bom-senso estabelece para o julgamento do homem comum. Esse louco tem o direito (social) de tomar decisões incompreensíveis, usar roupas extravagantes, ter atitudes incoerentes, assumir pontos-de-vista conflitantes, pode, enfim, ser tudo aquilo que os “normais” não podem, não devem, não sabem, não aprenderam a ser ou fazer.
A loucura – seja aquela branda, seja aquela eufórica e descontrolada - se opõe à normalidade sobretudo por pautar-se em tempos, espaços e ritmos alterados, bem diferentes daqueles conhecidos e estabelecidos pelas normas do bom senso social. A duração e a intensidade do tempo, o dimensionamento circular e a alocação plural e multidirecional do espaço, além dos ritmos redundantes, minimalistas ou entrópicos são algumas das mais fortes marcações de uma segunda realidade que a loucura instaura e alimenta, paralela e simultaneamente ao tempo discreto, linear, aos espaços conjugados e simétricos e aos ritmos cadenciados da normalidade.
Admitir as interferências mútuas dessas duas “realidades” opostas no mesmo ambiente, o diálogo intenso que travam - a despeito dos preconceitos e das fronteiras simbólicas que se erguem para separar “normais” de “anormais” (nas escolas, na família, nas empresas, nos ambientes coletivos, nas corporações) - é admitir que as novas formas e modos de comunicação, que as sofisticadas tecnologias de comunicação e as surpreendentes mídias propiciadas por elas tendem a assumir maior quantidade (e qualidade) de paradoxos e diferenças, abrindo mão de expurgar da tradição os elementos advindos da anormalidade. Talvez por esse motivo, as tecnologias atuais tendam a ser mais inclusivas, a abarcar sempre um maior número de possibilidades relacionais, dando pouco espaço para que os artistas, eternos “loucos” transgressores, ultrapassem ou implodam os muros que delineiam as suas fronteiras virtuais. Nas novas relações abarcadas nos espaços pontuados por essas tecnologias, corpos e mentes são repropostos e “re-provados” em suas competências de assumir entropias.
Estamos afirmando, desse modo, que há uma inclinação da consciência (tecnológica) no sentido de absorver o incômodo social da loucura, aliada à complacência social que cada vez mais a admite e inclui em suas possibilidades, ainda que como fenômeno alienado no espaço da primeira realidade.
A exclusão, o banimento e o confinamento do louco aos lugares de esquecimento são comportamentos em baixa nas estatísticas sociológicas. Ao louco impossibilitado (por diagnose médica) para a convivência social, não só restam espaços virtuais tecnológicos, de vivência incomunicacional, como abundam lugares programados mantê-lo em espera vegetativa por uma nova descoberta da pesquisa científica que seja capaz de devolvê-lo à normalidade.
A Incomunicação como Loucura
Se por um lado a incomunicação é uma das características mais marcantes de algumas loucuras, quando instaurada no ambiente da normalidade sócio-cultural ela estimula o aparecimento de desvios psíquicos, além de ser a responsável direta pela desilusão da ordem e pela decomposição do caráter solidário que mantém vivas e atuantes as instituições.
Rompidos os vínculos que sustentam a interatividade, desfaz-se o tecido (trama, texto) que dá “sentido” às relações e torna possível o entendimento, a identificação e o armazenamento das informações nos espaços (arquivos) formalmente constituídos. Restam esgarçados fios soltos que não podem constituir tramas, não podem recompor textos oficiais, mas que funcionam, quase semnpre, como matéria prima para a composição de outros textos, em outros ambientes, de outro caráter. É o caso dos textos inventivos, criativos, artísticos.
Décio Pignatari, o pioneiros dos estudos semióticos no Brasil, referiu-se ao fenômeno da incomunicação, que ele denominou “incomunicabilidade”. Segundo Décio, trata-se de um fenômeno que, simplesmente, não acontece, um não-evento ou, no máximo, uma ameaça de evento que não pode realizar-se porque ou falta ou sobra objeto sobre o qual informar.
Visto de outra forma, ou sob a perspectiva da loucura, o objeto que aparentemente falta, está presente, porém em frangalhos, sem constituir trama alguma: o que faltam ou sobram são os vínculos que propiciariam informações sobre ele. O pintor norte-americano Jackson Pollock reclamou certa vez, numa entrevista à revista LIFE, que sentia uma estranha sensação quando respingava tintas sobre gigantescas telas estiradas no chão. Para ele, havia algo ali “que não era comunicação”, que não dava para ser entendido e/ou que não podia ser transmitido. Segundo Décio Pignatari, o pintor sofria de incomunicabilidade porque sua “action paiting” apontava para o fim do cavalete e do paradigma da verticalidade, abrindo assim uma perspectiva de crise da técnica e, consequentemente, de incompreensão ou de inapreensão.
Entretanto, a obra de Pollock constitui não um lugar de respingos isolados e incomunicáveis, mas um conjunto textual que dialoga com conjunto da obra do pintor, com a história da pintura e com o ambiente americano da primeira metade do século. E este é exemplo patente de que os textos criativo-imaginativos têm a competência de reunir pedaços de informação e vinculá-los de forma inusitada, ousada e imprevisível em novos textos que comunicam novidades.
Vemos, então, que a questão da incomunicabilidade não está no objeto da comunicação, mas na quantidade e na qualidade da informação sobre ele e, sobretudo , na densidade de vínculos que ele estabelece com as séries (Tinianov) que lhe são próximas.. A incomunicação, parece-nos, então, estar ligada mais aos problemas de informação e menos afeta à dinâmica comunicativa. Seriam então, os problemas de comunicação resultantes de questões anteriores ligadas à organização da informação?
Falha na comunicação
Sabemos que “comunicação” é o nome que damos ao processo de elaboração, transmissão e recepção e devolução (troca) de informações. E quando esse ciclo não retorna, deparamos-nos coma incompletude do processo e, portanto, com a impossibilidade da comunicação. Para que a dinâmica se processe, não basta que alguma informação, ainda que bem elaborada, seja transmita e recebida pelo destinatário. Ela precisa ser respondida, pois é a resposta que confirma, reafirma, nega ou contradiz as intenções do emissor-estimulador.. É, portanto, a presença e a intensidade da resposta que vai definir se acontece ou não o evento comunicativo; é a qualidade do entendimento e a efetividade do retorno (feedback) que darão à comunicação aqueles contornos de que o processo necessita para girar a interação.
A resposta (reação) define também os níveis de interesse (motivação) em torno dos objetos (e informações) da comunicação. Sem ela, emissor e receptor não terão o que compartilhar e,. conseqüentemente não estabelecerão entre si aquele algo em comum. A inexistência de um processo de troca frustra não apenas as intenções do emissor como também reduz à desesperança as expectativas do receptor.
A histórica (e, por vezes, histérica) primazia do emissor no estudo dos processos de comunicação é algo dificilmente questionado ou contrariado. Para muitos, comunicar segue sendo a maneira de organizar o pensamento, o modo de falar, de apresentar uma idéia, de cumprimentar, de se fazer visto, querido e admirado, de obter adesão a uma causa ou uma luta, de vender um produto ou de vencer o inimigo, impingindo-lhe o constrangimento da não-resposta (ou seja, fazendo-o calar).
É preciso que façamos as contas do prejuízo que essa tendência “emissocêntrica” vem causando à comunicação e comecemos de novo a montar equações a partir do outro lado, o lado do mais fraco, do hipossuficiente receptor. De refém das intenções, desejos e artimanhas do emissor, ele precisa converter-se em leitmotiv da comunicação. Pollock, com certeza, formava textos capazes de comunicar, mas não era possível precisar – e nem ele podia – o quanto aqueles textos seriam capazes de mobilizar respostas, provocar adesão ou repulsa, tirar da indiferença e do tédio o acomodado senso estético norte-americano. O “american way of life” pôde ser revisto a partir daqueles respingos provocados de maneira aparentemente descontrolada e alucinada por um “louco” aparentemente pouco interessado em respostas de qualquer natureza.
A incomunicação que vem de aparentes não-textos ou de fragmentos não estruturados é talvez menos grave que aquela derivada da cegueira de um emissor que não está interessado na resposta de seu potencial interator. A incomunicação se afigura aqui como um problema ou de desrespeito ou de desconsideração, que pode ocorrer por negligência ou insanidade. Este último caso é o de algumas loucuras degenerativas, que se manifestam inicialmente no convívio social mas que, gradualmente, inviabilizam a convivência e levam à reclusão aquele que não consegue reverter o curso de seu agravamento.
A Cultura e a Loucura
A cultura é construída com, sob e sobre os mesmos insumos que alimentam os processos comunicativos entre as pessoas, entre pessoas e máquinas, entre máquinas e pessoas. A cultura é entendida, pelos estudiosos da escola semiótica da cultura, como o acervo dinâmico das produções simbólicas do homem, ou seja, daquelas criações que não existem necessariamente para resolver problemas prático do dia-a-dia, mas para que continuemos acreditando em valores que nos abastecem de confiança e nos encorajam a lutar contra os problemas de toda ordem.
A cultura é, assim, um lugar de ilusão, o lugar da mágica, do mito, dos rituais, das programações, das previsões, do consolo, da confiança, dos sonhos, dos jogos, das brincadeiras e, também, das loucuras de toda espécie.
Para fazer frente à “dura” realidade do cotidiano, a cultura inventa uma série de “refrescos”, que aliviam o peso e tornam palatáveis as indigestas incompreensões e agressões que sofremos a cada momento.
Ser culto, nesse sentido, é saber brincar, debochar, rir, consolar, superar, fantasiar, inventar, aumentar, suavizar. O ser de cultura desenvolve a capacidade de envernizar a realidade tão infernizada do cotidiano, transformando-a num lugar de refúgio e compensações, não menos reais que aquela outra “dura realidade”. A cultura toma assim a forma de uma realidade flexível, maleável, capaz de adequar-se às nossas impossibilidades fazendo-nos crer invulneráveis como sucede a um super-homem.
O tcheco Ivan Bystrina, diz que a cultura, a segunda realidade, só é possível porque os seres humanos se comunicam e porque eles desenvolveram competências para viver um mundo que pode existir no plano da abstração, no plano do pensamento e das forças psíquicas. E nem por isso a segunda realidade perde sua força de realidade.
A loucura – como anormalidade – faz parte de uma dimensão do ser humano que escapa ao que está previsto na primeira realidade. O louco não está preparado para pagar suas contas em dia, para vestir-se conforme os ambientes que freqüenta, para responder de acordo com os padrões de educação e civilidade, para reagir de forma previsível e controlável. O louco rompe os padrões “normais” que vigoram no primeiro mundo real – o mais duro – e “viaja” pelo mundo mole das criações culturais, das possibilidades de sentido, das realidades impossíveis, inaceitáveis ou incompreensíveis.
Por situar-se numa dimensão além das dimensões e biológica e social do ser humano, a loucura que produz cultura tem modos bastante particulares de empreender trocas informacionais. O emissor tende a cercar-se de códigos auto-referenciais montados segundo transgressões gramaticais que tornam sua linguagem pouco acessível aos receptores “normais”, ou alheios à esfera de circulação do louco emissor. De outra forma, o “louco” está pouco preocupado em ser entendido e mais ocupado em expressar-se segundo seus impulsos criativos/críticos/crísicos. É assim que ele reproduz a percepção alterada guia seus sentidos. Por isso, a produto resultante desse círculo incomunicativo tende a ser “diferente” e pouco adequado aos ambientes da normalidade.
Evidentemente, estamos nos referindo aqui a um tipo de louco ainda sociável, àquele que pode manter conta em bancos, que pode assinar contratos, viajar desacompanhado, que não incomoda o ritmo normal de seus vizinhos, amigos e familiares. Mas todo tipo (e dosagem) de loucura tem o seu equivalente espaço de segunda realidade.
A loucura é, assim, uma das mais importantes experiências humanas que possibilitam a criação, a manutenção e a perpetuação da cultura. Nesse sentido, são loucos (de variados graus) todos os (bons) artistas, muitos cientistas, políticos, professores, jornalistas, todos os ficcionistas, muitos desempregados e sub-empregados, idealistas, fundamentalistas, crentes, ativistas de esquerda, todos os apaixonados e alguns (poucos) representantes da ordem pública.
Por outro lado, devemos considerar também uma outra espécie de loucura que acomete os rotinizados das grandes cidades e os esvaziados pela percepção embotada: a loucura da repetição viciada e da construção antecipada dos movimentos e dos ritmos do cotidiano. Essencialmente auto-referencial, essa espécie de loucura acomete os inseguros e ansiosos, retirando deles a competência de reversibilidade que os poderia levar a pautar suas ações comunicativas pelas expectativas e possibilidades de absorção do seu receptor.
Pertencem a essa categoria aqueles falam sozinhos, mesmo quando conversam com outras pessoas. São também desse grupo os que, não tendo o que dizer, esgotam-se no círculo vicioso da rotina, perdendo a capacidade de receber contribuições de fora, daqueles a quem não podem se referir.
A Loucura do Dia-a-Dia
Dessa forma, são loucuras incomunicantes do cotidiano tanto o excessivo apelo às estruturas fáticas da linguagem - (os bons dias, boas tardes, como vais), a repetição tediosa e enfadonha de jargões disseminados pela mídia, notadamente a propaganda televisiva, os pensamentos clichês que fundamentam reportagens de grande apelo público, a geometria, e ritmos da rotina, facilmente perceptíveis no dia-a-dia das grandes cidades – quanto o recurso novidadeiro de quem não suporta a mesmice e a falta de perspectivas aberta pelo vício da rotina.
Exageros ou deficiências, excessos ou carências são pólos radicais em situações de encontro sucessivas de cada dia. As brechas e os vácuos informacionais que eles criam, separam e esgarçam as relações humanas, gerando conflitos e impasses de impossível solução na primeira realidade.
A Loucura no Filme de Louis Malle
O Filme de Louis Malle, “Perdas e Danos” (1992) que iremos assistir como seqüência desse ciclo de estudos sobre a incomunicação, retrata situações de desencontros nas quais a incomunicação humana é a responsável direta pelo trágico desenlace da trama. Uma louca paixão, inadministrada e alimentada pela carência de perspectivas, leva um rotineiro e conservador defensor dos bons costumes a romper drasticamente com suas frágeis convicções, empreendendo-se por caminhos perigosos e desconhecidos da imprevisibilidade.
Movidos por interesses absolutamente egoístas e solitários, os personagens do filme abastecem-se informacionalmente apenas em suas próprias alucinações, perdendo o contato com os outros que os cercam. Cada qual só consegue ver no outro o objeto de sua satisfação e, desse modo, manipula seu desejo além dos limites que a normalidade instituiu para preservar atritos e conflitos de difícil ou impossível solução.
Loucura e incomunicação são os motes para que possamos entender os tortuosos caminhos da transgressão e da regressão. Para aquém e para além das normalidades comunicativas.
Referências Bibliográficas
BAITELLO Jr., Norval. O Animal que Parou os Relógios. Ed. Annablume. S. Paulo: 1997
FLUSSER, Vilém. Pós-História – Vinte Instantâneos e um Modo de Usar.. Livraria Duas Cidades.São Paulo.
HILLMAN, James. Paranóia. Vozes. Petrópolis, 1993
JULIEN, Philippe. As Psicoses: um estudo sobre a paranóia comum. Editora Companhia de Freud. Rio de Janeiro, 1999
PIGNATARI, Décio. Letras, Artes. Mídia. Editora Globo, São Paulo. 1995
PROSS, Harry. A Sociedade do Protesto. Vol. 1. Annablume. São Paulo. 1997
ROMANO, Vicente. Dessarollo Y Progreso: por uma ecologia de la comunicación. Editorial Teide. Barcelona, 1993.
ROUDINESCO, Elisabeth et alii. Leituras da História da Loucura em Foucault. Relume Dumará. . Rio de Janeiro, 1994
SFEZ, Lucien. A Crítica da Comunicação. Edições Loyola. São Paulo 1998.
Filmografia
Louis Malle. PERDAS E DANOS, 1992 – França. Com Juliette Binoche e Jeremy Irons