Luiz Carlos A. Iasbeck
Presidente da ABSB, Pesquisador Associado Adjunto FAC/UnB, Professor da UPIS/DF
Toda ciência positiva tem seu objeto preferencial. Tem, também, um aglomerado de outros objetos que àquele se juntam como subsidiários, complementares ou mesmo opositores.
Embora tais categorizações não sejam absorvidas de bom grado pelos estudiosos das diversas ciências – que hoje já não vêem com bons olhos a pecha de cartesianos -, ninguém duvida que, por exemplo, o ambiente de relacionamento social dos grupos é objeto de estudo da sociologia ou que a fisiologia do corpo humano é objeto de interesse da medicina, assim como o estudo do inconsciente é resguardado à psicanálise.
A linguagem, com certeza é objeto de estudo da lingüística. E as demais linguagens? A quem servem e a quem pertencem? Qual ciência é capaz de digeri-las num mesmo prato?
A Semiótica, ciência que por excelência se interessa por todos os objetos que geram, produzem ou estimulam a produção de sentido, encontra uma enorme dificuldade para se situar no espectro desenhado pelo panorama das ciências. Não há objeto que escape de seu aguçado interesse em localizar sentidos nas interfaces e nos interstícios, em lugares não delimitados ou não-autorizados a produzirem novas expressões.
Charles Sanders Peirce, no início do século passado, procurava uma ciência que fosse capaz de unificar todas os demais fragmentos que constituíam até então o conhecimento humano. Ele foi descobrir a solução para o seu problema numa lógica filosófica que denominou Semiótica. Ao mesmo tempo, na segunda década daquele século, Ferdinand de Saussure lecionava na Universidade de Genebra quando anunciou aos seus alunos que uma nova ciência deveria surgir para abranger o universo da produção de sentido. Acrescentou ainda que dessa nova ciência faria parte a Lingüística geral. Para Saussure, essa ciência seria a semiologia. Por algum tipo de coincidência história ou sincronia não explicada, na Rússia, o grupo OPOIAZ e o Círculo Lingüístico de Moscou ocupavam-se em entender e explicar alguns fenômenos culturais a partir de invariâncias ou variantes pouco variáveis detectadas no estudo de produções literárias.
É bem provável que em outros pontos do planeta, estudos não registrados ou não armazenados estivessem evoluindo no sentido de unificar a complexidade nascente do conhecimento sob alguma batuta capaz de regê-la. Tudo parecia indicar que o caminho estava na investigação do funcionamento dos signos, presentes em toda ciência, na mente humana, nos objetos e nos fenômenos da natureza. Modelos triádicos, binários e quaternários forneceram claves para a decifração de enigmas que pareciam impenetráveis. Mas nenhuma semiótica, de qualquer vertente, teria ainda poder para convocar diálogos que não fossem marginais, funcionando sem a autorização do poder constituído.
E quem autoriza ou veta o sentido? A princípio, os paradigmas científicos, as autoridades da ciência, os lugares institucionalizados do saber e todos aqueles que têm certeza do que estão pensando, planejando, falando ou ordenando. Inclusive aqueles que louvam a complexidade, rendendo-lhes créditos que rapidamente retornam em termos de credibilidade.
Assim tudo, nos leva a crer que o saber tem dono e lugar para se constituir e produzir seus efeitos. Se, por um lado, a circunscrição dos sentidos acomoda e assegura certa permanência e estabilidade do poder, por outro, a incerteza e a ameaça de novas e instigantes possibilidades de percepção e expressão incomoda as autoridades do saber. A produção de diferenças entre aquilo que pode e aquilo que não pode instaura uma zona de interpenetração dialogal por vezes bastante perigosa, ainda que absolutamente necessária para o arejamento dos arranjos positivos.
Não é por outro motivo que esse é o caminho preferido dos bons artistas, daqueles que injetam sangue novo em sistemas cristalizados ou fechados às novidades. O estranhamento provocado pela obra de arte tem sido, através dos séculos, responsável por mudanças que Heráclito - o filósofo grego que marcou a história do pensamento por ter introduzido a preocupação com a instabilidade do real - jamais poderia supor, mas não teria nenhuma dificuldade em entender.
O diálogo não é necessariamente lugar de entendimentos, consensos, pacificações e arranjos convenientes, tal como nos ensina uma certa tradição romântica, cristã e melosa. O diálogo é também – e privilegiadamente - o lugar do “pólemos” ao qual Heráclito se referia. Pólemos – que pode ser entendido como o embate, o conflito, a discussão e, em última instância, o diálogo – era considerado a origem de tudo, para um filósofo interessado em entender a provisoriedade dos fenômenos e a precariedade das certezas. Foi ele que arrematou tão bem a primeira dialética: todas as coisas só existem através do conflito dos opostos.
Não que o diálogo entre se dê exclusivamente in presentia ou na iminência de um outro que perturba e incomoda. Bakhtin já nos alertara, há muito, sobre o fato de que nossa fala contém a fala desse outro, sendo, portanto, resultado de uma conversa esquizofrênica travada no âmbito de nossas próprias projeções. Ou seja, mesmo quando nos autorizamos a pensar, já estamos levando em conta os interesses e as motivações de um outro que temos introjetado, por força do hábito e de uma honestidade imotivada de propósitos.Como diz Umberto Eco, em uma de suas cartas ao cardeal Carlo Martini e que fizeram sucesso quando publicadas nos idos de 1995, “desde a mais laica das ciências humanas, todas nos ensinam que é o outro, é o seu olhar que nos define e nos forma” (Eco 2001:83)
Entender o lugar e as modalidades do diálogo é condição para entendermos o lugar da semiótica. Conseqüentemente, requisito para que partamos para a investigação de seus objetos e objetivos.
As Relações de Sentido e os Sentidos da Relação
Numa relação dialogal, mais importante que os conteúdos do diálogo ( aquilo que se diz, sobre o qual se diz) é a relação que se estabelece entre os elementos colocados em interatividade ( a forma como se diz) . A essa atividade, denominamos comunicação, ou seja, o esforço de tornar comum o que é incomum (como nos lembra Sfez em “Crítica da Comunicação”), a ação de compartilhar, confrontar e enfrentar (como nos assegura Morin em “Introdução do Pensamento Complexo”) o outro que se apresenta para ao relacionamento.
O espaço da relação não é um lugar no qual os interactores entram e saem íntegros. Ao contrário, toda e qualquer relação, independentemente da intensidade – como nos demonstra Peirce ao comentar o caráter vicário do signo - permite apenas que seus atores se mostrem parcial e precariamente em torno do tema, do motivo, do interesse ou mesmo do fato fortuito que tenha provocado o encontro deles.
O sentido produzido pelo atrito entre os elementos colocados em situação de diálogo empresta a cada um deles parte da responsabilidade pelo sentido total da interação e altera indelevelmente suas características e peculiaridades. Os interactores se fazem na relação, adquirem sentido para si mesmos e para os outros na medida em que respondem ao estímulo recebido. Estamos falando de semiótica, estamos falando de comunicação.
Assim tudo nos leva a crer que a relação é o espaço do sentido. Não é apenas um acidente ou acontecimento fortuito e dispensável entre seres vivos, animados, inanimados ou desanimados. É o momento no qual emergem e se alternam as possibilidades múltiplas de sentido, seguindo por caminhos que marcarão para sempre os atores do evento. É também o lugar da experiência, onde avançamos, recuamos, aceitamos ou rejeitamos as possibilidades que o momento nos oferece. O sentido nasce das decisões voluntárias ou involuntárias, estruturais ou conjunturais que as circunstâncias e as limitações dos atores permitem açambarcar. A relação é, por isso, o lugar do sentido e, portanto, o lugar de foco da semiótica, uma ciência que estuda a dinâmica do signo nas relações (a semiose).
Por esses motivos, a semiótica contra resistências ao se instaurar em ambientes onde impera a “certeza”, onde as “imutabilidades” e “permanências” são preservadas a todo custo, onde o tempo precisa parar para evitar os riscos e as imprevisibilidades das experimentações. Porém ela não se exime de colocar suas lentes nessas configurações, o que constitui – na maioria das vezes - uma grave ameaça à estabilidade de qualquer sistema que assim se julga protegido.
Talvez esse tipo de resistência explique uma estratégia bastante comum dos estudos semióticos: uma especial atração pelas intrigas e pelas relações perigosas. Desestabilizar situações aparentemente consolidadas é abrir novas possibilidades ao enriquecimento dessas mesmas situações, é proporcionar o arejamento que qualquer sistema necessita para permanecer em dinâmica transformação. Nesse sentido, a semiótica pode ser compreendida com um propulsor das mudanças que Heráclito reconhece como fonte de vida e condição de persistência.
Porém, nem sempre o estranhamento e o incômodo provêm de fora. Normalmente eles estão pacificados no interior de objetos instáveis, proporcionando aos menos avisados e menos críticos uma sensação de estabilidade e normalidade.
Objetivos e Objetos
Temos aí, então, alguns objetivos dos estudos semióticos, mas não temos ainda ols objetos ou o objeto preferencial para a investigação/instigação semiótica.
Não é difícil suspeitar que todos os objetos de estudo susceptíveis à instauração da crítica pelo incômodo, todos os objetos que se prestem a essa abordagem (ainda que não autorizada) são objetos de estudo da semiótica. O que deles vai interessar ao foco dessa ciência é a maneira como se articulam enquanto hipertextos abertos à interpretação e à interpenetração de outros textos das demais ciências, das demais culturas. Esse modo de articulação de códigos, pautado por regras e normas próprias (gramáticas), assegurado por um número limitado de possibilidades combinatórias e regulado interna e externamente pela proximidade com outros códigos regulados e limitados é o que podemos denominar LINGUAGEM.
Assim, podemos afirmar que o objeto de estudo da semiótica são as linguagens, conjunto hipertextual sistêmico e articulado de códigos que está presente em todo e qualquer produto cultural, em todo e qualquer fenômeno da mente e da natureza. Vivemos um mundo de linguagens, de sentido e, portanto, um mundo de semioses infinitas.
Umberto Eco, na abertura do IV Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica (1999) em La Coruna, ironizou a proliferação das semióticas a partir, sobretudo, das aberturas que as aplicações da teoria peirceana permitem e estimulam. Assim, já teríamos, àquela altura, segundo Eco, a semiótica das religiões, do silêncio, do verde, a semiótica psicanalítica, a semiótica da moda, da fotografia, da publicidade e das organizações, a semiótica do teatro e do cinema, a semiótica jurídica, etc...
As colocações irônicas de Eco podem até ter um pé na frustração gerada pela incompetência (assumida por ele) de se dar conta do alcance da disseminação dos estudos semióticos pelo mundo. Fugindo totalmente ao seu controle (dele que foi o primeiro divulgador de Peirce fora dos Estados Unidos), os estudos semióticos tomaram rumos não previstos, atropelando e envolvendo sedutoramente a parceria de outras ciências correlatas.
Isso não significa, entretanto, o advento de outras “semióticas”, mas de novas abordagens semióticas a objetos que até então estavam confinados ao foco dos paradigmas das ciências que os “gerenciavam”. O teatro e o cinema, a psicanálise e as religiões, a simbologia militar e os arsenais simbólicos do poder político sempre foram objetos semióticos por excelência, assim como toda a sintomatologia médica, cujo primeiro e dedicado estudo mereceu o nome de “semiótica médica”, por volta do ano 150 da era cristã .
Método ou Ciência Auxiliar
Por estar intimamente associada a todos os objetos do conhecimento (pois todos articulam códigos em sistemas de linguagem), a semiótica não deve e não pode atuar isoladamente enquanto ciência ou enquanto método investigativo. Ela necessita dos demais informações (e conhecimentos) obtidas pelas ciências positivas, seja para imprimir a elas o caráter de ponto de partida de suas explorações, seja para confrontá-las interdisciplinarmente com informações de outras ciências. É nesse sentido que alguns estudiosos preferem considerar a semiótica como um método de investigação multidisciplinar ou mesmo como uma ciência auxiliar para a condução de pesquisas mais adensadas sobre objetos complexos.
Segundo Santaella, o método era uma obsessão para Peirce. Ele queria esboçar uma obra que constituísse um método seguro para todas as demais ciências e que funcionasse como uma lógica das ciências. No arcabouço filosófico construído por ele, a semiótica geral, as semióticas especiais e o pragmatismo podem ser compreendidos como níveis metodológicos para o tratamento disciplinado de qualquer saber científico multidisciplinar. Os métodos de raciocínio (acrescidos e diferenciados pela presença da abdução), a lógica ordenada das cadeias semiósicas (a semiose tomada como embrião lógico da evolução) e a cartografia das semióticas especiais tecem um panorama (não necessariamente um passaporte) propício a incursões mais ousadas em terrenos ocupados por saberes circunscritos e consagrados.
Como ciência auxiliar, não cabe à semiótica apaziguar conflitos gerados por eventuais oposições mal resolvidas, mas fornecer instrumentos metodológicos capazes de estabelecer novos parâmetros para se pensar tais oposições. Seu posicionamento ético de respeito às ideologias que sustentam os diversos saberes não se submete às limitações impostas pelo circuito das ciências positivas. Contribui, outrossim, para a promoção de cruzamentos que ampliam o espectro de cada uma delas, em super ou em justaposição às demais que com ela dialogam.
O estudo da metodologia semiótica demanda tempo e espaço específicos e mais ampliados. Ele tem sido desenvolvido durante anos de pesquisa pela professora Dra. Lúcia Santaella da PUC de São Paulo e pelo professor Dr. Winfried Nöth, da Universidade de Kassel, Alemanha e já está sendo sistematizado e testado em várias publicações, dentre as quais os trabalhos de semiótica aplicada aos quais nos referimos.
Há também outras possibilidades de abordagem metodológica a objetos especialmente configurados (ou configuráveis).
A denominada semiótica da cultura constrói uma metodologia própria para a exploração de produtos culturais, com base em princípios desenvolvidos pelo método estruturalista, acrescidos e adensado das modernas teorias da incerteza e da complementaridade. Trabalhando em parceria com a antropologia cultural, com os estudos da cultura promovido por etólogos e neurofisiologistas, psicanalistas, ecologistas e sociólogos e com estudos da mídia por especialistas da comunicação, a semiótica da cultura percorre um vasto e diferenciado caminho de investigações, guiada por princípios fundadores estabelecidos por Yuri Lotman e demais estudiosos russos das escolas de Tartu e Moscou (formuladores das teses semióticas da cultura).
A semiótica francesa e a semiologia (a semiótica de extração lingüística, iniciado com Sausurre e desenvolvida por Louis Hjmeslv e seus seguidores) percorrem também um vasto e desafiador caminho que prima pelo rigor do método aos objetos colocados sob seu foco. O quadrado semiótico desenvolvido por Algirdas Greimas pode ser utilizado na análise crítica de discursos políticos, letras de músicas, leitura de obras de arte, peças de publicidade, enfim, de uma infinidade de produtos culturais, modalizando sentidos e provocando a abertura da percepção semiótica para além do rotineiro e monótono panorama crítico tecido pela mídia.
Assim, como método ou ciência auxiliar, a semiótica faz dos objetos do conhecimento os seus objetos e das ciências que a eles se dedicam, suas parceiras na investigação de uma mais adensada e complexa possibilidade de verdade.
Bibliografia Referida
BAITELLO Jr., Norval (1997). O Animal que Parou os Relógios. Ed. Annablume. São Paulo
CALVET, Louis-Jean (1975). Saussure: Pró e Contra. Ed. Cultrix. São Paulo, SP
CAROTINI, E., PERAYA, D. (1975). O projeto Semiótico. Elementos de Uma Semiótica Geral. Ed. Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo SP.
DELEDALLE, Gerard (1996). Leer a Peirce Hoy. Gedisa Editorial. Barcelona.
ECO, Umberto e MARTINI, Carlo (2001) – Em que crêem os que não crêem? Ed. Record. São Paulo, SP
LOTMAN, Yuri (1990). Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Indiana University Press. Bloomington e Indianapolis.
NÖTH, Winfried (1995). Handbook of Semiotics. Versão inglesa de Handbuch der Semiotik - Indiana University Press. Bloomington. Indianapolis.
SANTAELLA, Lúcia (1995) A Teoria Geral dos Signos. Semiose e Autogeração. Editora Ática, São Paulo, SP.