Minha filha ligou de Piracicaba para me dizer que assistiu ao filme “Olga”. E quase chorando disse:
-Pai, eu não sabia que era assim! Tantas injustiças no Brasil. Não foi o que me passaram nas escolas!
Respondi-lhe que ela não tinha visto nada ainda.
E é verdade. Os jovens de hoje não sabem nada de História porque nosso país cultiva o status de vivermos sem memória. Na Rússia, na Polônia e em outros países da Europa é comum a manutenção de prédios, que eram usados como prisões, campos de concentração e outras monstruosidades do fascismo, nazismo e comunismo. São hoje verdadeiros museus originais a céu aberto ou não, contendo objetos tais como instrumentos de torturas, fornos crematórios e toda gama da loucura humana nesses museus históricos, os quais denunciam aos tempos hodiernos, as desgraças que pairaram sobre a humanidade em determinadas épocas. Funcionam como uma espécie de aviso: “olhem bem, para que possamos ter o cuidado de não repetir essa história funesta novamente”.
Em nosso país acontece o inverso. As masmorras são destruídas para que, nós povo, esqueçamos o passado e sua malfadada história. Foi o que aconteceu com diversas prisões, onde os presos políticos eram torturados e mortos, num frenesi de arrepiar até satã nas profundezas infernais. Normalmente, tais prisioneiros eram intelectuais, homens de alma pública, que jamais fizeram mal a uma mosca. Porém, pensavam, sabiam discernir o que era melhor para o país e amavam verdadeiramente o Brasil. Interpretados como inimigos do Estado pela ditadura de Vargas e posteriormente pela ditadura dos generais passaram a viver num país semelhante à Itália de Mussolini, a Alemanha hitlerista e a Rússia de Stalin por duas vezes em menos de quarenta anos.
Talvez seja por isto que os escritores da atualidade não se aventuram por lógicas mais consistentes, têm receios de criticarem, ou mostrarem as mazelas do poder público quase tapando nossos olhos. Ficam restritos aos seus romancezinhos águas com açúcares. Aos seus versos quase religiosos e aos artigos circunspetos e demasiadamente sérios em jornais de grande circulação, que a massa de leitores não entende nada. Qualquer um que ouse criticar de forma mais agressiva as mazelas do governo, imediatamente são denominados de esquerdistas, anarquistas, comunistas. Ninguém observa, ou tem a percepção de notar numa crítica mais dura do articulista uma chacoalhada no governante, com a finalidade de tirá-lo da sonolência em meio às enfermidades que causam um governo retrógrado.
E pensar que os horrores do passado se fazem presentes hoje, revoltando cada vez mais os milhões de rejeitados sociais, porque basicamente a memória é tapada, esquecida, repudiada, quando deveria sempre ser enaltecida. Basta visitar uma escola e procurar num livro de História do Brasil as meias-verdades que são contadas aos alunos.
Wladimir Herzog foi uma das vítimas mais contundente para a ditadura em 1975. Isto porque ocorriam diariamente os mais terríveis casos com pessoas anônimas, que lutavam naquela época para que nós hoje tenhamos um pouquinho desta liberdade. Mas, estamos envergonhados com o passado e assim achamos melhor demolir as prisões, ao invés de mostrarmos aos nossos filhos, para que eles possam se preocupar com o que pode alcançá-los diante de tanta barbaridade, caso tenham a capacidade de pensarem com a cabeça e não com o estômago.
O Carandiru foi demolido. Tudo bem. Este complexo penitenciário era uma aberração no meio do cosmopolitismo paulistano. Mas, deveriam pelo menos deixar alguma coisa como aviso, como memória para nossas reflexões. A penitenciária de Ilha Grande foi também demolida. Esta prisão era realmente um atestado da iniqüidade das ditaduras brasileiras. Por lá passaram homens à altura de Graciliano Ramos. Se não podemos verificar in loco o que ocorria naquela prisão nos idos de 1930 até 1975, podemos pelo menos, graças ao grande escritor nordestino, ficarmos a par do inferno vivido por ele e seus companheiros. E olha que nem comunista ele era. Hoje Ilha Grande é procurada por turistas do mundo inteiro, desejando localizar o espírito peculiar de tanta anormalidade humana. Tanto que já querem os interesseiros de plantão, reconstruírem aquela prisão correcional.
O filme “Olga”, baseado no livro do jornalista Fernando Morais, está chocando o país. O livro não teve tanta repercussão porque como sabemos, grande parcela da população instruída não é dada ao hábito da leitura. Mas, hoje com denúncias aparecendo (e são ainda muito poucas), o povo vai entendendo o verdadeiro Brasil, em contraste com o apresentado nas farras da televisão como “ilha da fantasia”. “Olga” exerce sua cidadania mesmo hoje. Ela foi a prova de que nós apreciamos a violação da lei, quando se trata de nossos interesses. Com um filho de brasileiro no ventre foi entregue à sanha dos lobos da Alemanha nazista pelos brasileiros, contrariando a lei.
Posteriormente, um bandido inglês, assaltante de banco, foi glorificado no Brasil como um bom cidadão rico porque cumpriu a lei. Isto é, tornou-se pai de uma criança brasileira. Para ele bandido a lei foi fiel. Para ela Olga a lei foi traída. Todos sabem quem foi o tal bandido. O destaque ficou por conta da mídia, principalmente a televisão, que não poupava elogios ao assaltante inglês.
Jeovah de Moura Nunes
poeta, escritor e jornalista
(autor recente de s/ 4º livro, intitulado 'MEMÓRIAS DE UM CAMELÔ')