ANGOLA : MULTICULTURALISMO, DIÁLOGO DE CULTURAS
por Jorge Macedo
O PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, publicou em Lisboa o livro de 285 páginas, intitulado “Relatório do Desenvolvimento Humano 2004.»
Conforme os subtítulos assinalados na capa o referido Relatório tem como objectivos de ponta :
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9679; (A) Liberdade Cultural num Mundo Diversificado.
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9679; Satisfazer as exigências crescentes das pessoas de inclusão na sociedade.
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9679; (Satisfazer) o respeito pela sua etnicidade, religião e língua, (no espírito) de democracia e crescimento equitativo.
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9679; A promoção de políticas multiculturais que reconheçam diferenças, defendam a diversidade e promovam liberdades culturais, para que todas as pessoas possam
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9472; optar por falar a sua língua
&
9472; praticar a sua religião
&
9472; e participar na formação da sua cultura
&
9472; para que todas as pessoas possam optar por ser quem são.
Preocupado em contribuir cientificamente para o sucesso do Desenvolvimento Humano durante o Milénio iniciado no ano 2001, começo do século XXI, o Relatório do PNUD sugere vários outros princípios de sustentação do projecto.
Neste contexto formula a seguinte alerta :
«Para que o mundo atinja os objectivos do Desenvolvimento do Milénio e acabe por erradicar a pobreza, tem que enfrentar primeiro com êxito, o desafio da construção de sociedades culturalmente diversificados e inclusivas. Não só porque fazê-lo com êxito é condição prévia para os países se concentrarem adequadamente noutras prioridades do crescimento económico, saúde e educação para todos os cidadãos. Mas também permitir às pessoas uma expressão cultural completa é o fim do desenvolvimento em si mesmo.”
“ A mensagem deste relatório &
59450; revela ainda o documento &
59450; é destacar o enorme potencial de construir um mundo mais pacífico e mais próspero, pondo as questões da cultura na corrente principal de pensamento e da prática do desenvolvimento. »
Antes de reflectimos estas sugestões produzidas por experts convidados pelo PNUD, face a face aos mais diversos conflitos socio- políticos culturais da sociedade angolana, urge aclarar alguns conceitos – chave propostos no Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 do PNUD, atrás referidos.
Começando por esta epígrafe nuclear, arquétipo, em nosso parecer deve-se entender por desenvolvimento humano a protecção e a disponibilização de todos os meios para que o cidadão possa realizar em plenitude as componentes de sua pessoa e personalidade, nomeadamente
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9679; O culto da sua diferença como indivíduo, coerente com o seu “eu” e seu “ego”
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9679; O respeito à sua identidade étnica
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9679; O respeito ao uso de sua língua materna
&
9679; O respeito à escolha de uma identidade cultural, entre várias
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9679; O direito à partilha do poder, à cidadania, à igualdade de direitos socio- político – económicos, independentemente de suas diferenças identitárias, acima referidas
O respeito a estes e outros direitos à diferença entre os cidadãos concorre para que cada indivíduo se sinta realizado, se relacione com os membros da sociedade em permanente diálogo construtivo, solidário e intercomplementar.
Como os cidadãos são o motor e o garante do desenvolvimento só unidos na diversidade e solidariedade numa só alma podem fazer avançar o progresso, o desenvolvimento.
Por isso os experts do PNUD revelam – se sábios e de uma rara clarividência quando advertem que a democracia cultural ou o respeito pela diferença deve constituir a corrente principal de pensamento e da prática do desenvolvimento.
Porquê ? Porque, como atrás o demonstramos, com os obreiros do progresso desavindos, em conflito permanente, a obra da reconstrução nacional aborta sempre através de sabotagens, absentismos, bota- baixo, uns construindo, outros desconstruindo.
Salvo melhor opinião, estes exemplos calam fundo o principio da Dimensão Cultural do Desenvolvimento, ou seja, a cultura como alavanca do desenvolvimento que por os cidadãos e os governos não se pautarem por ele, por isso, somam fracassos, inflações, deflações, miséria , dívidas externas eternas, quase insolúveis e afundadoras do desenvolvimento dos países africanos..
Como atrás dissemos, os Angolanos agendaram em suas preocupações socio – político – económicas o estabelecimento da reconciliação nacional e a pacificação dos espíritos, como condição, sem a qual, a governação somará fracassos sobre fracassos e a esperança de vida se transformaá em permanente desespero.
Com efeito, os conflitos de várias ordem, que todos os cidadãos angolanos são chamados a ultrapassar, para o estabelecimento de atmosfera de harmonia social, favorável à reconstrução nacional com sucesso, são gerados por gritantes desconhecimentos da História político – antropológica de Angola, entre escolarizados e não escolarizados.
Apesar de vários cientistas, desde o linguista inglês W. Bleek, em 1862, o historiador Egiptólogo e linguista congolês Théophile Obenga, na sua obra Les Bantu (1), o etnólogo José Redinha (2) e muitos outros etnólogos e etnógrafos terem provado que os Bantu constituem uma populosa família humana subsareana, distribuídos significativamente por todas as regiões de África Meridional; apesar desses cientistas demostrarem que os povos banto descendem de tronco genético e linguístico comum, como em Angola Kikongo, Kimbundu, Cocwe, Ngangela, Umbundu, ou Kwanyama, N&
61458;yaneca – Humbe, Herero, continuam a relacionar-se como comunidades etno-linguísticaas estrangeiras umas das outras, antagónicas enre si. E o seu etnocentrismo e exclusão dos de fora de tribo é manifestada em expressões depreciativas como “bailundo” em vez de Umbundu, Kamundongo, em vez de Kimbundu ou luandense, Ngangela (feiticeiro) em vez de Bunda, Langa em vez de Kigongo, Kakwiza expressão Cokwe para sgnificar estranho a tribo, etc.
Com efeitos só os intelectuais e estudiosos reconhecem que as etnias angolanas são irmãs de tronco familiar comum. Os cidadãos étnicos, de cultura oral, esses não : uns e outros
consideram – se humanidade sui géneris, estrangeiros perante as outras comunidades étnicas.
É neste sentido que se constata que o tecido angolano está ferido de conflitos tribais etnocêntricos, de cidadnia universalista, os quais se relacionam com sentimentos de exclusão e não de inclusão.
Os cinco séculos de colonização deram lugar a cruzamento entre portugueses e africanos , géneses de agregados angolanos mestiço gerados por cruzamentos entre brancos e negros, negros e mestiços, mestiço entre mestiços.
Por outro lado, o princípio colonial da assimilação que fez com que negros e mestiços abraçassem a cultura lusa – europeia, criou uma comunidade significativa de angolanos culturalmente exógenos.
Alguns analistas concluem que o cidadão angolano, pelo facto de ser mestiço seria mais eurocêntrico do que africanista, o que constitui grosseiro erro de óptica.
Muito mestiço dos cresceu, viveu com a mãe em bairros suburbanos e aldeias do mato, abraçando em profundidade a cultura africana. Com efeito, nesses locais a sã convivência entre nacionais de diversa coloração epidérmica desenrola-se em clima de sã convivência, parecendo que mais são os intelectuais a discernirem conflitos epidérmicos aí onde a africanidade e fraternidade, e não só, une os compatriotas negros e mestiços.
Estes dados etnográficos permitem tirar a seguintes ilações. Assim sendo, em nossos dias, a estratificação social angolana oferece o seguinte quadro :
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8213; cerca de 12 comunidades e cem subcomunidades tribais etnocêntricas não se revêem umas nas outras, praticado a exclusão no seu grupo cultural dos fora de tribo.
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8213; grupos Hotentotes, Khoisam vivem em regime de auto – exclusão, salvo excepções.
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8213; grupos não étnicos entre brancos, negros e mestiços assumem identidades culturais não endógenas por opção e génese colonial.
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8213; a comunidade estrangeira em missões diplomáticas, empresariais, de negócios, garimpo, nacionalizados.
2. Problema da diversidade das identidades culturais
2.1 As diferenças de extractos sociais, atrás apontadas e que têm como génese a etnicidade, os cruzamentos culturais proporcionados pela História da colonização, deram origem a diversidades culturais, a identidades culturais diversas.
2.2 A má distribuição da riqueza entre angolanos, em que poucos têm tudo e todos nada têm, constitui outra foco de conflito social.
3. Choques entre identidades culturais
3.1. &
8213; A frente cultural anti – colonial mobilizou os compatriotas para se baterem contra o regime ocupacinista em torno da bandeira da angolanidade cultural. Como o refere Carlos Ervedos, em seu Roteiro da Literatura Angolana (3) «Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestiços, que eram filhos do país e se tornavam homens, iniciam em Luanda o movimento cultural «Vamos descobrir Angola!». Que tinham em mente ? Estudar a terra que lhes fora berço, a terra que eles tanto amavam e tão mal conheciam. Eram ex – alunos do liceu que recitavam de cor todos os rios, todas as serras, todas as estações e apeadeiros das linhas férreas de Portugal, mas que mal sabiam os afluentes do Cuanza que corria ao seu lado, as suas serras de picos altaneiros, os seus povos de hábitos e línguas tão diversas, que liam e faziam redacções sobre a beleza da neve ou o encanto da Primavera que nunca tinham presenciado, que desenhavam a pêra, a maçã ou a uva, sentindo apenas na boca gulosa o sabor familiar e apetecido da goiaba, da pitanga ou da gajaja, que interpretavam as fábulas de La Fontaine mas ignoravam o fabulário, os contos e as lendas dos povos da sua terra, que sabiam com
precisão todas as datas de todas as façanhas dos monarcas europeus, mas nada sobre a rainha Nzinga ou o rei Ngola. O movimento, diz-nos o ensaísta Mário de Andrade, incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.
Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte mas que tão mal lhes haviam ensinado, começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de sentir, o veículo das suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo. Maurício de Almeida Gomes, angustiado, já interrogara:
Mas onde estão os filhos de Angola
se os não oiço cantar e exaltar
tanta beleza e tanta tristeza,
tanta dor e tanta ânsia
desta terra e desta gente ?
e exortava : «É preciso forjar a poesia de Angola!»
Uma poesia nossa, nossa, nossa!
&
8213; cântico, reza, salmo, sinfonia
que uma vez cantada,
rezada,
faça toda a gente sentir,
faça toda gente dizer:
&
8213; É poesia de Angola!»
Este Movimento Vamos Descobrir Angola corresponde à Renascença Angolana, pela determinação dos naturais da terra distanciados da sua realidade em regressarem ás raízes africanas, Movimento que constituíu a proclamação da angolanidade cultural. Desde então o Movimento viu aumentar as suas fileiras com a adesão massiva quer de intelectuais, quer de populares assimilados, os quais abraçaram valores positivos da cultura oral, nomeadamente as línguas angolanas, a literatura oral, o cancioneiro e a arte, a etno- história e a etno-arte.
Criava – se assim uma angolanidade renascentista que até hoje constitui um amplo movimento de intelectuais.
Para além da angolanidade nascida da frente cultural anti – colonial; para além dos angolanos que assumem identidades étnicas ou universais; é mister realçar a configuração de identidades múltiplas e complementares que, segundo o Relatório do PNUD, cada cidadão em geral e o angolano, em particular, têm o direito democrático de assumir.
Conforme essa mesma fonte, as identidades múltiplas resultam da preferência de cada cidadão por uma religião, por uma língua, pela formação da sua cultura, pelos seus gostos culturais, padrões de valores, usos e costumes, etc.
Sobre o assunto não cessamos de enfatizar a assumpção pelos angolanos dessas identidades múltiplas em escala mais ou menos alargada, nomeadamente no campo das internacionais religiosas, dos negócios multinacionais entre angolanos e estrangeiros, das internacionais políticas, dos sentimentos clubísticos – desportivos, nacionais e estrangeirados, etç
No mundo das confissões religiosas, os cidadãos estrangeiros das suas igrejas são considerados pelos nacionais irmãos mais próximos do que os seus conterrâneos, seus compatriotas, seus vizinhos, vivendo a portas meias. No ramo dos negócios, o empresário angolano revê – se mais no parceiro estrangeiro, com mira em melhores proventos, em obediência às lógicas do mercado.
Os políticos nacionais, salvo excepções, têm nos membros estrangeiros das suas internacionais ideológicas os seus melhores aliados, enquanto que os compatriotas e outros partidos são considerados adversários, políticos de segundo plano, ideologicamente incompatíveis.
Por estas razões, o nacionalismo moderno em quase todos os países, incluindo Angola, move – se em paredes meias entre o patriotismo assente em valores endógenos nacionalistas e de internacionalização de interesses sócio- político – culturais.
4 - Face a estas complexidades vividas pelos cidadãos do mundo, em seus países em geral e Angola, em particular, os experts do Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 sugerem algumas soluções para o estabelecimento de clima permanente de harmonia social das diferençs culturais, a saber, que passam
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8213; Pela promoção de políticas multiculturais de inclusão.
&
8213; Pelo estabelecimento e animação de um multiculturalismo que tenha a haver com a construção de um compromisso com valores nucleares não negociáveis, como sejam
- Os direitos humanos
- O estado de direito
- A igualdade entre sexos
- A diversidade e a tolerância
- O reconhecimento de sistema de valores e de práticas culturais diferentes dentro da sociedade.
- A renúncia à dominação cultural dos que usam a coerção para eliminar a identidade cultural dos outros, pela exclusão ou através da guerra civil, como acontece no Sudão e no Ruanda.
5. Comentários
5.1 – Constituindo a identidade cultural a alma da personalidade de cada cidadão, só o respeito aos valores identitários por si escolhidos consegue garantir o êxito da multiculturalidade, que é garante da democracia cultural.
5.2 – Em países que abraçaram valores culturais anti – coloniais, como Angola, a angolanidade cultural ou a assumpção dos valores positivos da cultura africana continua a ter uma dimensão de peso na mobilização patriótica dos angolanos, contra a estrangeiraziação sócio-político-cultural.
5.3 – A educação das comunidades etnocêntricas com práticas de exclusão entre si deve intensificar-se até elas se reconhecerem como membros da mesma família humana, cultural e não multicultural, como erradamente os seus sentimentos radicais endógenos insunuam.
5.4 – Os angolanos que se identificam como cidadãos universais não devem atacar o nacionalismo renascentista nascido da luta anti – colonial, mas a democracia cultural confere-lhes o direito á diferença sem conflituar com as demais identidades.
5.5 – Só assim é possível estabelecer o clima de democracia cultural em convivência pacífica, construtiva, factor de desenvolvimento inspirado na cultura da Diferença Solidária.
Luanda, 30 de Dezembro de 2004
Jorge Macedo
(1) OBENGA, Théophile, Les Bantu, Langue, Peuple, Civilization, Présence Africaine, Paris 1985, 33 p
(2) REDINHA, José, Carta Étnica da Província, Cita, Lundu,1970, 35
(3) ERVEDOSA, Carlos, Roteiro da Literatura Angolana ,UEA, Tipografia Lousaneuse, Lisboa 19 p
Serviço:
Reafirmamos a realização, no próximo dia 11 (Terça-feira), às 18H30, no Centro Cultural e Recreativo Kilamba, da primeira Conferência do Projecto ISTO É ANGOLA, cujo orador será o escritor e etnomusicólogo Jorge Macedo, que abordará o tema: Angola: Multiculturalismo, Diálogo de Culturas.
Para facilitar o debate, segue em anexo o texto de base preparado pelo orador.