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Ensaios-->Lúcifer, sexo e o pecado original -- 23/09/2005 - 16:16 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
LÚCIFER, SEXO E O PECADO ORIGINAL

José Osvaldo de Meira Penna (*)

'Falando teologicamente – prestem atenção, pois raramente falo como um teólogo: foi o próprio Deus que, ao final de sua obra, deitou-se como uma serpente sob a Árvore do Conhecimento. Foi assim que Ele se recuperou de ser Deus…' (Nietzsche, em Ecce Homo: “Além do Bem e do Mal”).


É o sexo algo pecaminoso? Seria, como pensam alguns teólogos radicais, o próprio cerne da Falta Original? Ou, pelo contrário, no sentido que explicita o espírito libertário do romantismo moderno, um elemento maravilhoso de nossa vida em louvor do qual versos ditirâmbicos devem ser cantados, algo merecedor de hinos de triunfo a serem tocados pela liberdade que, nesse terreno tão sensível e relevante de nossa existência, estamos adquirindo, mercê dos novos costumes e novas técnicas que a modernidade nos proporciona? Êxtase ou pecado, em suma? Ou ambos? Acredito, na verdade, que o Pecado Original mais corretamente deve ser localizado no Orgulho, a Superbia dos teólogos, que inspira o homem na rebelião e na desobediência, o que é a própria Falta do Diabo.
O sexo é positivo porque, claramente, sem ele não se reproduziria a espécie. A ciência acredita que o casamento seria a mais antiga instituição humana. O próprio Cristo o abençoou nas Bodas de Cana, embora mantendo a castidade ainda que alguns autores modernos tenham, teimosamente, tentado associá-lo sexualmente a Maria Madalena ou, maritalmente, a Maria de Betânia, irmã de Lázaro. Conveniente me parece, por conseguinte, uma rápida incursão em torno do conteúdo moral que a Bíblia, o livro por excelência de nossa civilização ocidental, concede ao fenômeno do sexo e da reprodução, assim como à instituição do casamento.

A consciência humana, com o poder de criatividade, configura um fator independente na economia do Universo. Em seu ensaio Sobre o Sentido da Psicologia para o Homem Moderno, Carl Gustav Jung, o grande psicólogo e pensador suíço que alimentava simpatias feministas e cujos mais fiéis discípulos foram, em sua maioria, mulheres, afirmava o seguinte: “A invenção da consciência constitui o fruto mais precioso da Árvore do Conhecimento”. É a consciência a própria luz que procede de Lúcifer. Na consciência, descobrimos o reflexo de Deus em nós, na reprodução diária da Criação em toda alvorada e na ação comportamental e ética (do grego ethos, “comportamento, usos, costumes, caráter”) ao correr do dia. O que surge do simbolismo arquetípico do sexo como tal, é uma imagem, forçosamente ambivalente – a qual já se desenha nos capítulos 2 e 3 de Gênese. Ao comer da fruta da árvore do conhecimento do Bem e do Mal, adquirem Adão e Eva a liberdade de escolha – é este o ponto fundamental.

Lúcifer é aquele que nos 'traz a luz', aquele que ilumina e facilita o reconhecimento da realidade e nos faculta o conhecimento claro do Bem e do Mal. Sem ele, de fato, não haveria a possibilidade de escolha, não haveria alternativas para a Consciência. Marco inicial de nossa existência como seres morais em perene alternativa ética, é isso o que importa em sentido metafísico. Somos concebidos no ato sexual e, automaticamente, já condenados à morte, mas conquistamos a liberdade e, através do sexo, foi-nos granjeado o poder de criar um novo ser, uma nova entidade livre no determinismo cósmico. Herdeiro de nossa constituição genética, velha de quatro ou cinco bilhões de anos, esse novo ser que geramos é absolutamente original na própria estrutura do Universo – um complexo de DNA que retransmitimos para as gerações futuras ad saeculum saeculorum. Não será isso justificação para o orgulho?

Informa-nos o Gênese (em hebraico Bereshit), o primeiro livro do Pentateuco, que a serpente luciferiana induziu Adão e Eva a comer da fruta do conhecimento com a promessa que, ao fazê-lo, 'vossos olhos se abrirão e sereis como Deus (Elohim), versados no Bem e no Mal'( ).
Tornam-se nossos avós, por conseqüencia, moralmente livres e como que divinizados. Agostinho irá reconhecer a promessa que não é apenas do demônio, e como tal mentirosa, mas do próprio Onipotente quando acentua: “Deus tenciona vos fazer Deus”... A 'abertura dos olhos' não apenas proporciona à Humanidade uma consciência de seu ser profundo, autêntico, íntimo, na ausência de qualquer Persona ou máscara cultural - mas possui conotações sexuais relacionadas com o fenômeno da reprodução e da morte: “Adão e Eva se dão conta que estavam nus'. A alternativa de escolha é o que toda ação humana comporta uma liberdade para o Bem e para o Mal, colocando a nu a autenticidade de nossa ação. O Mal não pode ser uma simples “ausência de Bem”. É uma realidade concreta que à Humanidade é sedutoramente oferecida como alto preço a ser pago pela liberdade moral consciente assim adquirida.
O fato que foi a curiosa Eva (a raiz da palavra hebraica Havvah seria 'vida, viver') quem, em primeiro lugar, tentou Adão - implicaria dar-lhe prioridade no mito e colorir a Criação com matizes sexuais feministas. O mito grego correspondente é o de Prometeu. Ele atribui igualmente à mulher, Pandora - cunhada do Titã a cujo ímpeto revolucionário e dominador deve a Humanidade todo seu poder científico e tecnológico - a responsabilidade pela abertura da famosa Caixa onde encerrados estavam todos os males. A curiosidade, porém, não é um vício, é uma virtude, perigosa sem dúvida, porém essencial à nossa sobrevivência. É um valor dos mais preciosos da inteligência humana, como tanto Montaigne quanto Descartes e Hobbes julgaram. Insistiu Francis Bacon, entretanto, que a Queda não pode haver sido uma conseqüência da curiosidade e ardente desejo de conhecimento, porém da pretensão do homem e da mulher de estabelecerem uma lei para o Bem e o Mal, como norma diferente daquela que Deus lhes havia imposto. E contrariando Freud, não podemos reduzir a curiosidade a uma função do instinto sexual: Hobbes corretamente a considerava como uma concupiscência mental (lust in the mind), pois a curiosidade acompanha o orgulho do pensamento e é um dos nossos mais altos instrumentos cerebrais na existência como um todo e na concorrência darwiniana que a vida comporta.
Não por acaso, o relato bíblico prossegue imediatamente, acentuando que 'então se lhes abriram os olhos e perceberam que estavam nus' (Gênese 3:7). Pouco adiante, no capítulo 4, somos informados que 'o homem conheceu Eva, sua mulher e ela concebeu e deu à luz' seu primeiro filho, Caim. No ato de reprodução, homem e mulher alcançam um poder criador semelhante ao da divindade - um poder delegado, como se fora, o que constitui um pormenor importante! Eva observa: 'Adquiri um homem com a ajuda de Jahvê' (Gênese 4:1). Como se torna evidente em Gen. 3:22, o conhecimento configura tanto uma ciência divina do Bem e do Mal, quanto um 'conhecimento' direto do sexo que gera a vida, a qual exige a morte para sua eterna renovação. A boa informação é não apenas prática. É de natureza moral e é fatal.

Debates em torno da Bíblia, especialmente de Gênese, estão agora na moda em teologia, em discussões públicas, pesquisas, inúmeros livros e até programas de televisão. Das pesquisas bíblicas efetuadas recentemente, se deduz que o termo hebraico Edhen teria o significado de 'campo' - e a palavra se associa ao sentido de 'deleite e prazer'. A raiz semítica é semelhante ao assírio edinu e ao sumeriano edin. Na Septuaginta foi o termo traduzido por Paradaesos, palavra originada no iraniano paradaesi que designa um recinto fechado - conseqüentemente um espaço seguro, preservado de todo mal e todo perigo. A Vulgata nos deu a expressão paradisum voluptatis, como referência retroativa ao Jardim das Delícias, a Utopia que a Humanidade sempre procura e cujo sentido ambivalente foi tão admiravelmente expresso no Tríptico de Hieronymus Bosch. Pois não nos esqueçamos que na pintura de Bosch é o inferno vizinho do Jardim das Delícias.

No enredo da história contada em Gênese, existem contradições pelas origens diferentes dos relatos orais em que se inspirou. Mas se Adão e Eva são punidos da desobediência, o primeiro pela necessidade do trabalho, a segunda pela imposição do sofrimento no parto, a morte já existia antes do pecado, tanto assim que a expulsão do Paraíso ocorre justamente para evitar que comam da 'árvore da vida' a qual, esta sim, lhes proporcionaria a imortalidade (Gen.3:22/24).
De qualquer forma, representa o Paraíso edênico tanto um saudosismo retrospectivo, como a Idade de Ouro, os Campos Elísios e a Atlântida da Antiguidade pagã, quanto uma esperança prospectiva do futuro escatológico anunciado. A psicanálise interpreta o Paraíso como manifestação simbólica desses desejos de retorno ao ventre materno com que todos nós, no fundo de nossa psique, estaríamos inspirados. Mas, na liturgia católica dos funerais como me lembrou um colega, o sacerdote implora 'in Paradisum deducant te angeli' - 'que te conduzam os anjos ao Paraíso'... O Paraíso é uma promessa, um objetivo da Esperança e, pelo menos, uma expectativa futurista.

Em seu ensaio Resposta a Jó e na coletânea Psicologia e Religião (vol. 11 das Obras Completas aos quais nos cabe fazer referência), faz Jung observações interessantes a respeito de toda essa problemática. Ele nos chama a atenção para as imprecisões e frequentes incoerências da teologia ortodoxa, quando penetra nesse terreno minado. Vaga e controvertida é a distinção entre os males de que padecemos e os males que infligimos. Há males psíquicos ou psicossomáticos dificilmente caracterizáveis: a Justiça humana conhece o problema de crimes atribuídos a uma 'privação de sentidos' ou à loucura comprovada e, por conseguinte, implicando a inimputabilidade do responsável. Em Os Irmãos Karamazov, coloca Dostoievsky na boca de um de seus personagens a idéia que, 'se o diabo não existe, o homem o criou à sua própria imagem'... A natureza autônoma e eterna do Demônio representa, de fato, outra doutrina polêmica. No dogma do Pecado Original ficamos sem saber se é o próprio homem que traz o pecado ao mundo, contaminando-o, ou se é simplesmente vitimado por tal poder autônomo, no caso alegoricamente carregado pela serpente de Lúcifer. A dificuldade de entendimento do mito ambivalente que é absurdo mas nuclear em nossa cultura bem se reflete na diversidade de representações que mereceu de parte de alguns dos maiores nomes da história das artes. É um dos irmãos Karamazov que afirma ser o absurdo por demais necessário na terra, pois sobre absurdos se sustenta o mundo. Absurda é nossa vida, desde logo...

Ora, como a meu ver corretamente argumenta Jung, a autonomia satânica dificilmente se enquadra na doutrina da privatio boni, da 'privação do Bem' que se atribui ao Mal essencial – questão em que Jung claramente se coloca em posição contrária à de Agotinho. Que se considere o simples fato de haver sido a serpente gerada por Deus que, após criá-la, 'viu que isso era bom' (Gen:1:20). Logo a seguir, em Gen:3:1, é a serpente descrita como o mais astuto de todos os animais e sua criação também está registrado entre as “boas” obras do Senhor. Moisés insiste na perfeição dessa obra em Deuteronômio 32:4. A projeção de responsabilidade satânica sobre o animal rasteiro antes me parece um álibi destinado a afastar uma penetração mais profunda nos mistérios de nossa própria alma.
Acontece, além disso, que no capítulo 8 de Gênese, onde se fala no Dilúvio, em Noé e na Arca, se descreve uma espécie de arrependimento do Senhor Jahvêh que promete nunca mais matar todos os seres vivos, nem amaldiçoar a terra, 'porque os desígnios do coração do homem são maus desde a infância'. A frase enigmática revela-se importante do ponto de vista ético e teológico. Cristo repetirá que é do coração do homem que procedem todos os pecados, todos os erros, todos os males. É uma posição diametralmente oposta à de Jean-Jacques Rousseau para quem o homem é bom por natureza, é bom desde sua infância, sendo que o mal procede da sociedade. Pois se é do 'coração' do homem que procedem os maus desígnios, não significa isso, igualmente, que não é de sua carne, de seus instintos, de suas pulsões fisiológicas, porém de sua mente que vem o mal? Se é o sexo pecaminoso, não é o sexo como emanação hormonal, é o sexo na cabeça...

Neste contexto, menciona Jung as duas figuras relevantes de Sophia e Lilith. Sophia é a Sabedoria de Deus, em hebraico Ruach Elohim, e possui uma existência transcendente que foi explorada na Igreja oriental. Às vezes, surgem ambas na lenda e na literatura, ao lado de Deus e de Eva, no momento cosmogônico crucial da criação da Humanidade. Como alegoria da Sabedoria de Deus, é Sophia quem inspira o Dominus Deus Sabaoth. Pois lhe realiza os mais secretos pensamentos, vestindo-os de forma material. É isso o que sói ocorrer com todos os seres femininos, com Sophia como uma espécie de egéria do Senhor, Yahvêh-Elohim e, conforme acentua Jung, sua co-existência em Jahvêh configura o perpétuo hieros gamos ou matrimonio sagrado graças ao qual são os mundos gerados.

Por outro lado, sombra maléfica é Lilith que, às vezes, parece cobrir a própria Eva. Em alguns relatos míticos, teria sido Lilith a primeira esposa de Adão, com o qual gerou uma série de demônios, representando, possivelmente, o lado sombrio, negativo ou perverso da feminilidade. Ou seja, Lilith é a versão feminina da figura diabólica. Uma mudança momentosa é iminente: Deus deseja regenerar-se a si-próprio no mistério das núpcias celestes... e tornar-se homem. Em seu ensaio O Anticristo, Nietzsche interpreta o relato de Gênese como revelando 'a história do terror mortal de Deus perante a ciência'. O filósofo alemão acredita que o homem se entediava no jardim edênico, e para diverti-lo, criou Deus a mulher, o segundo de Seus grandes erros. Em sua essência, seria a mulher uma serpente e os padres puritanos sabem que todos os males aparecem na terra através dela. Cebobitas sujeitos a tentações reprimidas, como Sto Antonio do Egito, eles projetas sobre a imagem feminina as fantasias lúbricas que os perseguem no retiro.

Mas foi também graças a ela que o homem pôde saborear as frutas da árvore do conhecimento.
Em termos freudianos, no entanto, é o mito francamente sexual - o que seria comprovado pelo caráter fálico da serpente. Não é o conhecimento em geral, é o conhecimento específico do sexo o que, segundo Freud, caracteriza a curiosidade pecaminosa. No seu obsessivo holismo erótico, alega Freud que toda curiosidade teria origem na libido infantil. As várias noções do que seja o Pecado Original, inclusive a de Nietzsche, insistem na interioridade do princípio ético, libertado pelo descobrimento da criatividade, e, em contraposição a Freud, acentuemos a tese de Jung de que é o sexo símbolo dessa criatividade humana. Em termos junguianos, o mito simbolicamente explicita uma relação arquetípica – no caso, o arquétipo central da identidade psíquica, moral e espiritual do homem.
Outro ponto também é importante, é o da natureza da fruta da árvore do conhecimento. A mitologia bíblica normalmente sugere a maçã e é essa fruta o que costuma ser utilizada nas representações pictóricas da Tentação. A maçã é um símbolo feminino. Os mais belos seios têm a forma de maçãs. Acontece que a banana é também cientificamente conhecida como Musa Paradisíaca ou Musa Sapientum. Ora, numa interpretação de natureza freudiana, a banana é claramente fálica e, portanto, masculina. A fruta do pecado é feminina ou é masculina, eis a questão? Numa visão moderna não machista, a responsabilidade deve ser partilhada...

O significado exato dos episódios do mito, tais como interpretados por Jung, é da maior relevância em qualquer hermenêutica do sexo. Entretanto, podemos logo constatar que, só posteriormente à obtenção do conhecimento ético e da expulsão do Paraíso, é que Adão 'conheceu' sua mulher e procriou. No livro do profeta Oséias (Hosea) podemos encontrar um texto que nos ajuda a esclarecer o mistério, eis que Jahvêh declara: 'porque é amor (hesed) que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos'. Na sentença 'conhecimento de Deus', em hebraico daath Elohim, a palavra daath tem sua raiz no verbo yada, cuja etimologia é 'conhecer', mas com conotações francamente sexuais. Talvez seja o sentido da frase que Deus deseja ser amado por Israel como um homem é amado por uma mulher, ou como Adão foi amado por Eva. Aliás, no capítulo 44 de 'Jeremias', o profeta denuncia as mulheres que adoravam uma deusa estrangeira, Asherah ou Ishtar, considerada a Rainha do Céu. Existe uma inscrição em que esta divindade é descrita como esposa de Jahvêh. Jeremias não se ofende com o aparecimento de uma figura divina feminina, companheira do Eterno, ele repele apenas a violação do monoteísmo, implícita no episódio. É de crer que, nessas eras primitivas, a sexualidade feminina fosse considerada como uma espécie de magia e, como tal, ritualizada em 'mistérios' religiosos. Devemos levar em consideração esses eventos arcaicos que nos traduzem, de forma alegórica, o que pensavam nossos mais antigos antepassados sobre o enigma central da existência. Mesmo num século agnóstico, o que nos diz a Bíblia é relevante. Continuamos a viver sob o império de arquétipos judeo-cristãos que orientam nossa conduta e nossas reações perante a vida e o “próximo” – sendo necessário reconhecer que a atitude do Velho Testamento em relação ao sexo não era de modo algum negativa.

Com o advento da nova religião penetramos nas controvérsias que dividiram o Cristianismo nascente nos primeiros séculos de nossa era,. Sob influência gnóstica uma tentativa de compreensão do mito do Gênese é cabível - esforço que nos parece essencial ao entendimento das idéias de Nietzsche, Freud e Jung, e do fenômeno da Revolução sexual. Foi de fato nesse período que, não ainda perfeitamente diferenciados dos outros cristãos - o que só iria acontecer após a consolidação dos dogmas pelos Concílios que determinariam o que deveria ser ou não ser artigo de fé ortodoxa - se atreveram os gnósticos a explorar as possibilidades abertas à imaginação humana. pela mensagem de Cristo. Encontrando-se sob forte influência grega no período helenístico, assim como sofrendo o influxo de crenças orientais, particularmente iranianas, a Gnose se empenhou em especulações, muitas delas absolutamente fantásticas, sobre o sentido secreto do episódio do Pecado e da Queda. O que os gnósticos em geral desejavam era um rompimento mais radical com o Judaísmo. Detestavam o que está expresso no cânone da Bíblia judaica, considerando, corretamente, que o relato óbvio do 'pecado' de desobediência nesse texto vétero-testamentário não faz muito sentido lógico. Pensavam que, por essa razão merecia o texto uma nova hermenêutica simbólica ou alegórica, mais explicita do que é contado em Gênese 2 e 3. Em alguns desses esforços para desvendar o segredo das Escrituras, Eva representaria a alma humana como depositária da energia divina que anseia por sua união com a Verdade, o Bem e a Justiça. O próprio Orígenes, um dos mais eminentes teólogos da época, e São Jerônimo, que era também um platonista e considerado o maior - interpretavam o nascimento de Cristo no seio virgem de Maria como uma alegoria mística da entrada da Sagrada Sabedoria de Deus na alma humana. Escrevendo sobre a Criação do homem, foi São Gregório de Nyssa um dos maiores pensadores da época. Como seus antecessores, ele argumenta que Adão e Eva conservaram-se virgens, enquanto permaneceram inocentes no jardim edênico, e teriam podido multiplicar-se de maneira não sexuada, tal como ocorre com os anjos. Se o acasalamento é necessário à reprodução, isso não pode ser senão algo que por Deus é desejado e para sempre estabelecido. O ato sexual não poderia, neste caso, ser considerado uma vergonha. O sexo é uma condição da criatura, do mesmo modo como a fome e a satisfação de outras necessidades naturais. Os gnósticos se perguntavam então: unde malum? Onde estaria o mal, onde apontar para o pecado no comer da fruta do conhecimento, se é o cumprimento da vontade do Pai?

Isso nos sugere um retorno ao argumento do primeiro capítulo, concernente ao ascetismo preconizado pela Patrística e por Agostinho de Hipona, que reagiam aos excessos do paganismo decadente e ainda, presumivelmente, esperavam para breve a Redenção final. Muitos críticos modernos atribuem a Agostinho influência decisiva na nova postura histórica do Cristianismo que ao sexo impôs a moralidade puritana e ascética. Agostinho foi um homem que, como se sabe, teve uma juventude desregrada. Manteve uma amante com a qual teve um filho natural, Adeodatus; sofreu com a morte deste rebento na adolescência; foi maniqueu antes de se tornar cristão; implorou a Divindade 'dai-me castidade e continência, mas não por enquanto...'; e sem dúvida carregou, em sua momentosa conversão na crise mística de Óstia provocada pelo falecimento da mãe, Santa Mônica, o trauma de seus arrependimentos. O início da evolução fatal se encontraria, a meu juízo, em suas próprias palavras. Nas Confissõe, revela Agostinho: Nondum amabam, et amare amabam... quaerebam quid amarem, amans amare (Livro III, cap.1) - 'Vim para Cartago. De todos os lados fervia a frigideira de criminosos amores. Ainda não amava e já gostava de amar... Gostando de amar, procurava um objeto para o amor... Era para mim mais doce amar e ser amado, se podia gozar do corpo da pessoa amada. Desse modo, manchava com torpe concupiscência aquela fonte da amizade. Embaciava sua pureza com o fumo infernal da luxúria'... O bispo de Hipona encontrava em São Paulo a origem de seu comportamento pois, em sua diatribe contra a luxúria dos Coríntios, o Apóstolo do gentio é muito claro: 'Fugi da fornicação! Todo pecado que pode o homem cometer é exterior a seu corpo; aquele que fornica peca contra o próprio corpo' (I Cor 6:18).

Em De Civitate Dei, seu monumento teológico mais considerável, atribui Agostinho à luxúria um papel decisivo sobre a psique humana, argumentando que a libido 'é uma usurpadora, desafiando o poder da vontade e tiranizando os órgãos sexuais humanos'. O poder despótico da paixão sexual é de tal ordem e perturba, em grau tão elevado, a serenidade racional do homem, que deve ser atribuído a uma punição drástica pelo pecado de Adão. Essa idéia de que o desejo sexual é uma manifestação e castigo pelo Pecado Original, em seus efeitos universais e perenes, geração após geração - teria, provavelmente, 'enchido de perplexidade seus predecessores cristãos, para não falar de seus contemporâneos pagãos e judeus”. É isso o que nos diz Elaine Pagels (opus cit). Em outras palavras, Agostinho indigita diretamente o sexo no cerne do Pecado Original. O sexo é o demônio da liberdade. Configura-o como resultado lógico da falta cometida, após haverem Adão e Eva cedido à tentação diabólica da Liberdade que lhe fôra, por Lúcifer, apresentada e foi essa insistência em atribuir ao sexo a próprio essência do pecado original o que levou a psicanálise freudiana a tentar explicar a psicologia do Santo através de seus próprios obsessivos pressupostos. Um analista americano sem qualquer originalidade, Charles Kligerman, explicou o problema pelo complexo de Édipo. Que novidade? Agostinho detestaria seu pai, Patricius; sofreria de um temor inconsciente de castração e estaria atraído pela Mãe, Santa Mônica. Não somos, contudo, obrigados a aceitar essa simplificação redutivista, tola e gratuita, de uma mente tão singular, estupenda e complexa quanto a do santo filósofo. Contudo, não haveria na afirmação de que é no interior do homem que residi a Verdade a lógica implícita de ser o homem livre um rebelde contra Deus, o herdeiro do Pai?

A Agostinho cabe, especificamente a elaboração filosófica da idéia que o Pecado é herdado por todos os homens e passa, historicamente, de geração em geração. Havendo concebido, pela primeira vez no pensamento ocidental, uma filosofia da história que dava preeminência ao fator tempo e impunha um sentido irreversível à sucessão das gerações, o bispo de Hipona exacerba o quadro de conflito interior dramaticamente pintado por Paulo no famoso capítulo sétimo da Epístola aos Romanos – e assim fazendo, constrói em bases indestrutíveis a ética cristã. No Opus Imperfectum, ele se refere à 'excitação diabólica da genitália'. Seríamos incapazes de controlar o sexo, o nosso e o do Outro ou da Outra... Isso quer dizer que o Pecado se revela, não especificamente no impulso sexual, mas em nossa evidente fraqueza em coibi-lo, em discipliná-lo, em restringi-lo. Na polêmica Contra Julianum - um bispo pelagiano que Agostinho detestava e considerava herege - o maior de todos os filósofos cristãos derramou sarcasmos contra o 'fogo vital' invocado por seu inimigo, esse impulso 'que não obedece à decisão da alma mas, quase sempre, se levanta contra o desejo da alma em movimentos horrendos e desordenados'... No Enchiridion (26:27), dedica-se Agostinho a uma descrição terrível da abominação em que, no momento do orgasmo, se transforma o homem que carrega o Pecado Original. Só podemos interpretar tais opiniões pela reação altamente emocional de arrependimento perante as fraquezas que haviam atormentado sua mocidade. Em sua qualificação obsessiva do sexo como na raiz do Summum Malum, ele explicava nas Confissões (X.27) que: 'Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que dentro de mim residias. E eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre essas formosuras que criastes'... Com essa atitude, que herdara da ética estóica, teria Agostinho procurado enfatizar a tensão espiritual surgida da própria energia da Libido.

Acontece, de fato, que a visão negativa do sexo não era monopólio dos santos, nem dos cristãos porque constava de outras tendências filosóficas. Representante majestoso da filosofia estóica no apogeu do Império, Marco Aurélio prezava a castidade e descrevia o orgasmo como 'uma esfregação das vísceras e extrusão espasmódica de lodo' (Meditações. 6.13)! Os mesmos sentimentos estão refletidos nas palavras de Tertulliano, endereçadas às mulheres e de profundo misoginismo: 'Sabeis que cada uma de vós é uma Eva? A sentença de Deus nesse vosso sexo se acentua nesta idade: a culpa necessariamente também vive. Sois o portal do demônio: abris o selo daquela árvore proibida; sois o primeiro desertor da lei divina; sois vós quem persuadiu aquele que não foi o diabo suficientemente valente para atacar. E tão descuidadamente destruístes o homem, a imagem de Deus. Por vossa culpa, até mesmo o Filho de Deus teve que morrer'. Jerônimo (Eusebius Hieronymus, +420) exagera no mesmo sentido fanático. Um dos mais influentes Doutores da Igreja Latina, Jerônimo é um Fundamentalista que dá um grito de guerra contra a 'carne'. Mesma atitude em S. João Crisóstomo, um dos mais notáveis teólogos da patrística grega que, em sua misoginia, descrevia a mulher como 'um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um fascínio mortal, uma aflição pintada...'. Ou ainda em Clemente de Alexandria que, em seu Paedagogus, refletia o sentimento masculino majoritário quando afirmava que 'a própria consciência de sua natureza deve evocar (nas mulheres) um sentimento de vergonha'. É uma doutrina implacável. Foi elaborada, evidentemente, por reação à própria experiência existencial desses santos Padres e sábios Imperadores, acentuando que é exatamente na concupiscência aguda do êxtase sexual que nossa Razão fria é suprimida pela paixão. Deus é então esquecido e as criaturas se comprazem egoística e pecaminosamente no gozo umas das outras.

Dessas considerações se poderia concluir, como procuramos provar neste ensaio, que a atitude da humanidade ocidental cristã em relação ao sexo se desenvolve entre dois marcos gigantescos: entre as obras de Agostinho e de Nietzsche. A curiosidade dessa tese é enfatizada pelo fato de ter sido Agostinho um libertino em sua juventude, ao passo que de Nietzsche praticamente nada se sabe em matéria de sexo, apenas a paixão platônica que alimentou por Lou Salomé e a dependência irritada em que viveu da Mãe e da irmã. Entre o repúdio agostiniano do gozo do corpo e as diatribes do alemão contra os 'desprezadores do corpo' se intercalam 1500 anos de paradoxos!

No volume I de sua obra sobre os “Grandes Filósofos”, em que estuda Platão e Agostinho, Karl Jaspers discute longamente a personalidade genial, mas angustiada, contraditória e às vezes mesmo antipática do grande Mestre da Igreja Católica cuja influência se prolongou através de Calvino, Pascal e os Jansenistas até o limiar da Idade Moderna. Não obstante a admiração que, como eu, dedica a Agostinho, Jaspers acaba confessando que nele descobre traços inumanos – usando o termo “inumano” deliberadamente. O Santo revelaria uma espantosa indiferença no seu relacionamento com as mulheres. O tratamento que dispensou à concubina com a qual viveu muitos anos e era mãe de seu filho Adeodatus seria, de certo modo, algo escandaloso. Despediu-a sem a menor consideração. A frieza objetivava preparar o casamento com uma noiva ainda na pre-adolescência, que pertencia à aristocracia e fora para ele escolhida por Santa Mônica. Entrementes, ligou-se com outra concubina. “Falando das mulheres retrospectivamente, Agostinho mantem-se horrorizado com sua sensualidade”, observa Jaspers. Mas o que o preocupa é sempre sua própria personalidade moral, não a sorte das outras pessoas. Ele exalta extraordinariamente o amor, mas pouco parece levar em consideração o amor propriamente humano e, como é óbvio, não inclui as mulheres na concepção exaltada da amizade que propunha. O amor exclusivo de Deus acaba suprimindo qualquer outra afetividade. E o subjetivismo implícito na frase “in interiore homine habitat Veritas” parece desconsiderar as opiniões de terceiros.

Jaspers acha que o filósofo dissocia inteiramente a sexualidade do amor e qualifica essa atitude de indigna de um ser humano, sendo certo que o machismo da Antiguidade clássica ainda nele se manifesta em sua inteireza. A violência da época talvez tenha contribuído para essa crua frieza de sentimentos, uma vez que era necessário enfrentar tempos terríveis de horror, destruição e morte. Lembremo-nos que o culto ou hiperdúlia da Virgem Maria, iniciado pelos Santos Padres da Igreja grega e se tornando tão característico da Idade Média, não havia ainda atingido o Ocidente. Jaspers conclui seus comentários sobre os aspectos desagradáveis da personalidade de um homem tão extraordinário pela profundidade de sua espiritualidade, afirmando que, “conhecendo apenas a devassidão e o asceticismo, Agostinho não sentia qualquer respeito pela dignidade das mulheres, ofendendo esse respeito em seu relacionamento com elas”. Em suma, poderíamos concluir que o aspecto negativo do Agostinianismo acabou sendo eliminado com o fim do Puritanismo calvinista estricto. A Revolução Sexual moderna seria, em outras palavras, essencialmente anti-agostiniana.

Outros santos católicos irão, no correr dos séculos, lançar o mesmo interdito ao prazer sexual. Alguém também já observou que o esquecimento das duas outras Marias do Evangelho, a de Betânia e a de Magdala, ambas ocasionalmente associadas a Jesus em contexto erótico por biógrafos à cata de escândalo, em benefício da terceira, Maria de Nazareth, refleteria um retorno da Libido eclesiástica a um estágio pre-genital. É a maternidade, não o casamento e o sexo, que é privilegiada... Mas mesmo neste ponto Agostinho não abre exceção. Ele reforçou a condenação à mulher numa carta a um amigo: 'Que diferença faz se é esposa ou Mãe, é sempre Eva a tentadora de que devemos nos precaver em qualquer mulher'. A tese é estranha na pena de um homem cuja Mãe, Mônica, tão saliente papel desempenhou em sua conversão ao Cristianismo. Em outra ocasião, Agostinho acrescentou sua perplexidade no que se refere ao sexo feminino pois, “se era companhia e conversação aquilo de que precisava Adão, muito melhor teria sido proporcionar dois homens como amigos, em vez de um homem e uma mulher'... A opinião se nos afigura como absurda. Ela melhor seria explicitada por um desses homossexuais radicais que fazem alarde de sua singularidade. Nesse sentido, por maior que seja meu apreço por Agostinho, como o primeiro filósofo que introduziu seriamente a noção de Tempo na metafísica, não podemos senão criticá-lo por esse puritanismo sexual, fruto inconsciente de seu sentimento de culpa.

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Entretanto, a pergunta sobre a Justiça de Deus e o questionamento da Teodicéia, a qual procura justificar a presença do Mal num mundo que o próprio Deus declarou ser 'bom', representam segundo Tertulliano, 'a questão que torna as pessoas heréticas'. Um dos mais profundos articuladores da Patrística, Tertulliano acertou e o resultado não tardou. Os gnósticos se dividiram em seitas, embora com pontos de vista comuns em muitos outros aspectos dos Evangelhos, algumas extremadamente ascéticas, outras, pelo contrário, com tendência à libertinagem e à aceitação entusiástica do conselho paulino 'ama e faze o queres'. Os primeiros pregavam uma abstinência absoluta, o comunismo, o ascetismo próprio da espera do Reino anunciado. Eles aceitavam literalmente o conselho de Cristo de que nos devemos tornar eunucos por conta do Reino de Deus. Orígenes teria chegado a castrar-se, para obedecer ao pé da letra o texto evangélico. Ele alimentou doutrinas que foram consideradas heréticas e por isso não recebeu a consagração eclesiástica da Santidade, enquanto aqueles que se adaptavam à longa demora preferiam levar uma vida normal, casando e gerando descendentes.
Seguindo a moda a que aderiram ensaístas, clérigos, tradutores e professores americanos como Stephen Mitchell, Bill Moyers, o rabino Visotzky e outros - indicando um novo interesse quanto ao significado simbólico do Mito - uma erudita pesquisadora, professora de religião em Princeton que se tornou conhecida por seus estudos sobre o gnosticismo, abordou Elaine Pagels o tema enigmático em sua obra 'Adam, Eve and the Serpent'. Seu ponto de vista talvez seja demasiadamente restritivo e preconceituoso, mas é interessante. Todos parecem querer salientar o caráter autoritário, punitivo, ciumento e, de certo modo, semiconsciente do Jahvêh criador que é responsável pelo frustrante episódio. Pagels defende a tese que o movimento cristão dos dois primeiros séculos evoluiu para uma nova atitude em relação ao sexo – uma atitude que não existira anteriormente. O pendor repressivo configuraria uma modificação radical das práticas pagãs e da tradição judaica. Pagels contribui para um debate raramente levantado na filosofia e na teologia moderna - o que na verdade nos parece surpreendente. O fato é que as discrepâncias persistiram no correr dos séculos, uma vez que os próprios Evangelhos são, às vezes, contraditórios. Ao mesmo tempo em que santifica o casamento no episódio das Bodas de Caná - ocasião em que principia Cristo a revelar Sua identidade e consciência messiânicas, ao realizar os primeiros milagres – o Livro prega a castidade e promete a bem-aventurança àqueles que se mantêm 'puros'. Ambiguidades e discrepâncias perseguirão a Igreja. Ela, simultaneamente, converte o matrimonio num sacramento em que os noivos são os próprios oficiantes, mas exige o celibato da elite sacerdotal e santifica de preferência os castos. O que concluir?

A dúvida ambivalente sobre a postura exata perante o sexo, independentemente dos mandamentos tradicionais quanto à sagrada instituição do casamento, se revela na polêmica sobre se o ato sexual é lícito ou é pecaminoso quando não existe perspectiva de geração. O Papa João Paulo II manteve a perplexidade dos fiéis quando parece condenar o sexo não reprodutivo. Um de seus antecessores recentes, o Papa Pio XI, foi mais específico e, na encíclica Casti Connubi (1930), declarou que, “sendo o ato conjugal primariamente determinado pela natureza para a geração de crianças, aqueles que... deliberadamente, frustram seu propósito e poder natural pecam contra a natureza e cometem um ato que é vergonhoso e intrinsecamente vicioso”. A opinião não poderia ser mais reacionária... O casamento é a mais velha instituição da humanidade, talvez anterior à constituição de um grupo político, tendo uma base biológica profunda. Toda associação civil é permitida, se não tiver fins criminosos. O que diria então dessa última pretensão aberrante que consiste em “celebrar” uma união homossexual? Duas lésbicas ou dois pederastas já possuem o inteiro direito, como sempre tiveram aliás, de se tornarem sócios em negócios econômicos, morarem juntos ou deixarem um para o outro sua fortuna em testamento: por que precisariam então “solenizar” suas preferências em matéria de zona erotógena? Seria necessário “celebrar” essa união, se já é ela aceita, sem cerimônia e com condescendência, por uma sociedade libertina? A meu ver, atingimos nesse ponto ao limite do bom gosto... Um Imperador romano promoveu seu cavalo à dignidade de Cônsul. Dentro em breve, teremos uma solteirona reivindicando o direito de casar com seu poodle de estimação...

Entretanto, o pensador luterano alemão, executado pelos nazistas, Dietrich Bonhoeffer, que em sua ética, representa a ala mais avançada do pensamento teológico moderno, afirma que a vida matrimonial não se limita, nem se subordina ao propósito reprodutor. O sexo não seria apenas o meio de conservação da espécie. Independentemente de seu propósito definido, tem como objetivo trazer o prazer e a alegria, consolidando o relacionamento entre dois seres humanos, sem especificar se devam ou não ser do mesmo sexo. Vejam como divergentes são as opiniões.
Normalmente, jamais a Igreja recusa a celebração do matrimônio a uma mulher que, no climatério, tenha ultrapassado a idade fértil. A polêmica foi recentemente ilustrada, em nosso país, pela negativa de um padre católico de celebrar o casamento de uma moça solteira com um acidentado paraplégico, o que obrigou os noivos a recorrerem a um pastor protestante mais acessível e, a meu ver, mais instruído. Bonhoeffer cita inúmeros textos bíblicos para justificar a tese. Em Gênese 2:18 e 2:23, Jahvêh não cria Eva unicamente para fins reprodutivos pois seu propósito é a Adão presentear uma companheira, uma assistente e 'carne de sua carne'. Deus abençoa o casal em 1:28. E, na Epístola I aos Coríntios (7:2, 3 e ss), São Paulo, que afinal de contas era um rabino impregnado pelos princípios do Velho Testamento e, como fariseu, profundo conhecedor da Torah, concede ao sexo os seus próprios direitos, independentemente da reprodução. Ele comina: '...para evitar a fornicação, tenha cada homem sua mulher e cada mulher seu marido. E cumpra o marido o dever conjugal com a esposa; e a mulher faça o mesmo em relação ao marido'. Ora, muito embora reconhecendo a santidade do matrimônio, em I Coríntios 6:15 a 20, exprime-se São Paulo, com maior severidade ainda do que Jesus, na exaltação do celibato. A questão se relaciona com a ardente problemática do uso de métodos anticoncepcionais - que a Igreja, a meu ver inútil e irracionalmente tem condenado. Aliás, não havendo propósito de reprodução, o método do ritmo implica o favorecimento da concupiscência e, ao aconselhá-lo, a Igreja entra em contradição com sua próprias doutrinas.
A exaltação da castidade e a repulsa ao sexo só se caracterizam no primeiro século antes de Cristo, como alternativas ao mandamento do 'crescei e multiplicai-vos'. O privilégio dado ao celibato sobre a procriação provavelmente penetrou no Cristianismo através da seita ascética dos Essênios e dos ensinamentos de S. João Batista, que a ela poderia haver pertencido. Encontrar-se-ia no cruzamento de duas tradições opostas. Uma pessimista, sombria, anticoncepcional e procedente do orfismo e do gnosticismo helenístico; a outra, otimista, procriadora e aceitando o sexo como energia vital na linha tradicional das Escrituras hebraicas. É como se aqueles que aguardassem o Reino a qualquer momento, tudo abandonassem à sua espera - fortuna, família, dinheiro, glória, amor – enquanto aqueles que se resignavam à espera da Promessa longamente adiada poderiam preferir, como aliás alguns dos próprios Apóstolos, levar uma vida sexual normal, casar-se e procriar.

A maioria dos escritos dos Santos Padres refletia uma atitude favorável ao ascetismo, o que estaria nos mores da época. Seria interessante recordar que os monges de Alexandria, no Egito, uma cidade que se notabilizara precisamente pela sua luxúria e libertinagem ao tempo dos Césares, foram também aqueles que mais exageraram nos feitos inacreditáveis de sua ascese - haja visto o caso dos anacoretas da Tebaida e dos estilitas que habitavam o topo de colunas de templos. Um excesso era compensado por outro, diametralmente oposto. William James descreveu de modo admirável essas 'Variedades da Experiência Religiosa', em que a profundidade da fé frequentemente convive com práticas aberrantes( ).

Lembremos que os puritanos da época de Cromwell e os Jansenitas franceses, no século XVII, ainda favoreciam um ascetismo que nos parece hoje patológico. Não podia haver distinção entre pecado venial e pecado mortal; as mulheres não deviam mostrar as mãos e os braços nus pois isso provocaria a concupiscência masculina. Toda marca exterior de afeto constituía pecado mortal. O Teatro e as artes pictóricas que apresentavam corpos nus era condenados, e até mesmo a literatura era, de um modo geral, considerada perigosa. O casamento não podia ser condenado porque regula o desejo carnal, mas sendo a tesão sempre irregular, só pode ser coibida pela força no exercício da Razão... Em reação contra os desregramentos do Renascimento e em confronto com o Protestantismo em ascensão, o Cânone 10°, aprovado pelo Concílio de Trento a 11 de novembro de 1563, lançou o anátema contra aqueles que pretendiam ser o estado matrimonial superior ao de virgindade ou celibato. Teoricamente, é o que está ainda em vigor na teologia católica - embora me pareça inútil tente o Papa Polonês fazer reverter a tendência liberal oposta.

Notemos aqui que os orientais de cultura sínica não alimentam tampouco os mesmos preconceitos anti-sexuais que o Cristianismo inspirou. A vida erótica é considerada de uma maneira muito mais natural, por chineses e japoneses. O prazer é não apenas aceito, mas celebrado. Autor que escreveu sobre a Sexual Life in Ancient China, R.H. Van Gulik, assevera que o sexo ali 'nunca esteve associado a um sentimento de pecado ou culpabilidade moral'. Entretanto os costumes tradicionais sempre fortemente condenaram comportamentos licensiosos, demonstrações públicas de sensualidade e a nudez.

O movimento da Igreja da Unificação, fundada pelo coreano Sungmyun Moon, que possui muitos adeptos e investimentos em nosso país, aborda tanto o problema da atividade capitalista quanto o do sexo de maneira francamente positiva. O Reverendo coreano enfatiza enormemente o casamento que considera não apenas indissolúvel mas eterno, chegando a ponto de interpretar a Criação como um evento sexual. A família consubstancia o próprio cerne de uma doutrina assaz simplista. Ele pretende proporcionar a paz ao mundo sob a égide messiânica de Moon e sua esposa, pelo casamento de ocidentais com orientais - às vezes em cerimônias eurasiáticas gigantescas com a presença de milhares de casais. Nessa crença estranha, assim como o sucesso empresarial é proclamado como sinal de favorecimento divino, são os órgãos sexuais também concretamente sacramentados. Ouvi uma versão segundo a qual uma das práticas exóticas da seita consiste em determinar que o esposo ou a esposa, no momento do falecimento de um deles, segure firmemente com as mãos a genitália do parceiro agonizante, de maneira que persista no céu a união física celebrada na terra.

Às vezes, os extremos se tocam. Para os gnósticos ditos Licenciosos, dos séculos IIº a IVº, a liberdade de costumes e a prática de ritos orgiásticos constituíam condição essencial de salvação. Eles são precursores dos hereges nudistas ou adamitas da Idade Média. Servem também de modelo para os movimentos dionisíacos nas comunidades de hippies e drogados cuja maré alta, de fundo romântico e freudiano, atingiu a sociedade moderna por volta de 1968/69, em todos seus multiformes aspectos de sadismo e libertação sexual. Uma longínqua lembrança permanece em nosso carnaval. O Rei Momo, figura popular que preside à festança e representa Dionísio/Baco, decorado com orelhas de burro, se associa igualmente a Pan, aos Sátiros e a Príapo. Na imaginação pornográfica de alguns gnósticos, figuras e divindades exóticas patrocinavam crenças sui generis, com ritos às vezes muito especiais. Um dos fundadores de seita, ao tempo do imperador Hadriano, foi Carpócrates cujo filho, Epiphanes, uma figura fenomenal, deixou um livro sobre o pensamento do pai. Descobrimos nessas doutrinas certos traços diabólicos da juventude alienada, drogada, homicida e terrorista de nossos dias - traços tão admiravelmente descritos em 'Os Possessos' de Dostoievsky. Na perspectiva dos gnósticos da luxúria, é aconselhável praticar o amor livre, a sodomia, o incesto, o sexo oral e grupal, e tudo o mais que contrarie a moral familiar convencional, a reprodução dentro da 'legalidade' e a cópula na 'posição do missionário'... É preciso criar uma consciência coletiva para lutar contra o inimigo que é a separação, a divisão, a oposição, a competição individual.0
Os gnósticos Licenciosos propunham a comunidade das mulheres e estabeleciam o gozo dos prazeres sexuais em comum, uma espécie de swing. O sacramento fundamental seria a suruba. Tratava-se em suma de uma volta à natureza em que o casamento é suprimido, porque implica a propriedade privada da esposa. Não há nem bem, nem mal na natureza. Tudo é permitido. 'Não podereis ser salvos de um pecado que não cometestes', afirmava Carpócrates - de onde deduzia que pecar é um imperativo, necessário à obtenção da Salvação. Num estado de absoluto entusiasmo erótico, entregavam-se ao sexo coletivo que Eugène de Faye chama de 'práticas imundas'. A exemplo dos adoradores de Barbelos, pretendiam 'tirar a semente do corpo', o que, provavelmente, significava a fellatio, o sexo oral como forma de eucaristia. A eleutheria ou libertação total não é só negativa - libertação da tirania do Destino e da escravidão do corpo material. É também uma exousía - liberdade positiva, poder e licença absoluta de fazer o que se quer como a de 'um filho de Rei'. Donde o amoralismo antinômico dos fanáticos. Carpócrates e Epiphanes se sentiriam realizados num baile de Carnaval carioca.

Numa das lendas gnósticas, uma semente cósmica é expelida - uma panspermia, de onde surge o grande Arconte sentado na ogdoada (a mandala de oito cantos). É aí lembrado o trecho de São Paulo que nos fala na criação que espera e geme e sofre nas dores do parto. Em que pese o pouco que conhecemos a seu respeito, historiadores eruditos consideram corretamente os licenciosos como pagãos, apenas vagamente influenciados por certas crenças surgidas com o Cristianismo. Afinal de contas, cultos dionisíacos e priápicos existiam no paganismo e a dissolução dos costumes na corte dos Césares servia de mau exemplo para todo o Império. Assim, se o Bem e o Mal são meramente opiniões humanas, demasiadamente humanas, opiniões que, conforme propunha Nietzsche, devem ser transmutadas e transcendidas; e se, antes de deixar este corpo, deve a alma experimentar a gama inteira de sensações que a existência terrena põe a seu dispor, então é conveniente aproveitarmos todas as oportunidades de deboche e, paradoxalmente, pecar para libertar-nos da prisão corporal. Tudo é pecado. Portanto, nada é pecado. A existência do corpo constitui um desafio cujos desejos devemos satisfazer para, finalmente, sobrepujá-lo. A incontinência sensual sustenta-se neste trecho de Mateus (5:25): 'enfrenta sem demora teu adversário, enquanto estás com ele no caminho, para não acontecer que ele te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas assim jogado na prisão. Em verdade te digo: dali não sairás enquanto não pagares o último centavo'...

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Em todos esses casos, o sentido da atividade sexual passa a ser positivo. Donde deduzimos que o homem procria porque vive, mas deve morrer porque desobedeceu. Ele não morre porque fez sexo. Estritamente, morre porque não respeitou o mandamento proibitivo que o acorrenta às delícias paradisíacas do Eden. Saiu então da Inconsciência, adquiriu conhecimento e poder de escolha entre o Bem e o Mal, acentuando a vitória suprema da vida pelo amor. A procriação resulta da condenação à morte, e não vice-versa. Ora, ao contrário do que, comumente, se assevera quanto a uma oposição essencial entre os dogmas da Fé e a Razão, sustentada pelas teorias científicas, acontece que muitas vezes está o pensamento religioso adiante da ciência de seu tempo. É o caso de Sto Agostinho. Agostinho filosofou sobre o tempo irreversível numa época em que, legitimada por Aristóteles, a crença no tempo cíclico e no espaço infinito recebia aceitação universal. A relação necessária entre sexualidade e morte, que à primeira vista parece um capricho do arrependimento agostiniano, recebe hoje surpreendente confirmação por parte da biologia.

Augusto Comte, um autor que não gosto de citar porque escreveu muita banalidade e exerceu uma influência tão nefasta sobre o pensamento político brasileiro, afirmou em seu Catecismo Positivista, que 'os anjos não têm sexo, pois são eternos'. Não sei em que sentido ele propôs esta tese, mas nela está implícita a idéia que a ciência positiva parece confirmar, de um relacionamento necessário entre sexo e imperativo de mortalidade.

Conhecido imunólogo da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e aplaudido autor de temas relacionados com a biologia celular, acentua William Clark essa associação sexo=morte numa obra de 1996, Sex and the Origin of Death, em que descreve como a vida primitiva nos primeiros dois ou três bilhões de anos depois de seu aparecimento na terra, era composta exclusivamente de seres monocelulares que se duplicavam por fissão e podem ser, por conseguinte, considerados potencialmente imortais. A 'imortalidade potencial' foi concebida por August Weismann, o grande biólogo alemão (+1914) que desenvolveu a teoria da continuidade indefinida do plasma genético. Os organismos conhecidos como moneras, as bactérias por exemplo, só podem desaparecer por força de um fator externo acidental. Num meio propício, com alimentação adequada, eles se reproduzem e persistem indefinidamente. Ora, como nos explica a biologia, há cerca de um bilhão de anos surgiu a reprodução sexual em organismos multicelulares. Pela conjugação dos sexos, a reprodução consiste na troca da informação genética contida na molécula de DNA (ácido deoxyrribonucléico), entre dois membros da mesma espécie, macho e fêmea.
Clark insiste então no enigma que representa, até hoje, a reprodução sexuada do ponto de vista da biologia. Várias teorias têm sido apresentadas. A única hipótese que, verdadeiramente, mobiliza forte probabilidade de corresponder à verdade é que esse modo de combinação de células de DNA permite uma maior variação genética e, consequentemente, na seleção das formas mais bem adaptadas, representa um método eficiente de aceleração da evolução. O que ocorreu então, nesses organismos multicelulares, é que o maior número de células vai constituir a parte somática do corpo, nelas embutindo um mecanismo de senescência - o que poderia ser definido como morte programada. Outras células, minoritárias e localizadas no plasma genético, se reservam o direito potencial de imortalidade pela conjugação sexual. As células genéticas se dividem entre femininas ou óvulos, de um lado, e masculinas ou espermatozóides do outro. Clark chama o programa da morte anunciada como 'suicídio celular'. Nosso corpo mortal é composto de células somáticas mortais - ao passo que a conjugação genital, efetuada por células especialmente segregadas para esse fim, se processa entre uma célula masculina e uma célula feminina que trocam suas respectivas moléculas de DNA. A fusão, contendo toda a herança genética, velha de bilhões de anos, cria um organismo inteiramente novo – uma singularidade cósmica...

Enfim, já no processo evolutivo avançado o que se verifica é que a natureza procura o pluralismo, a diferenciação, a variação imaginativa. Se ela fosse totalitária como muitos de nossos ideólogos, escolheria a clonagem como método mais simples de reprodução: seríamos todos iguais, exatamente, iguais como robôs, todos semelhantes, uniformizados, obedecendo às ordens ditatoriais do mesmo DNA. É o sexo que traz a variedade, a desigualdade, a pluralidade de formas e destinos... No livro mencionado, o imunólogo e geneticista americano descreve apropriadamente o misterioso fenômeno da reprodução em termos de nossa mortalidade. Entretanto, parafraseando uma piada de Oliver Wendell Holmes, médico e humorista americano do século XIX, um psicanalista britânico definiu a vida como “uma doença sexualmente transmissível, com 100% de mortalidade prevista”.A senescência seria então o preço que temos que pagar por nossa passagem pela vida? Lembremos os versos de Shakespeare e perguntemo-nos:

Como poderá a melada aragem do verão
Resistir ao sítio destruidor do martelo diário?

Clark medita sobre essas condições onerosas da existência pessoal, individualmente condenados à morte como somos, pelo natural perecimento das células somáticas, mas imperativamente estimulados a nos reproduzir por força da necessidade da conjugação das células genéticas. Conduzindo-nos eventualmente ao túmulo, a morte de nossas células não é um requisito a priori da vida, é uma conseqüência evolucionária da maneira como livre, plural e sexualmente reproduzimos a constituição multicelular do corpo. Os seres humanos, observa melancolicamente Clark, 'atribuem toda sorte de razões nobres para seus próprios esforços reprodutivos. Gerar crianças é, de um modo ou de outro, tido como a mais alta expressão do amor entre um homem e uma mulher. É uma expressão de confiança no futuro da raça e a experiência central da vida humana. Raramente, senão jamais, descreveríamos nossas atividades reprodutivas em termos de um imperativo biológico comum de transmitir o DNA'.

Quando morremos, já velhos, a nosso lado se encontram os frutos de nosso amor, carregando as mesmas moléculas de DNA que são nossas; e que se multiplicarão numa variedade de descendentes, com alguns traços nossos, sem dúvida, mas abundantes diferenças, numerosas variações que irão configurar, precisamente, a riqueza criativa da natureza.

A biologia confirmaria, num outro sentido limitado, a intuição de Freud de que Eros e Thanatos estão indissoluvelmente ligados. Nosso corpo de nada mais serviria do que constituir um método de transporte das células genitais à procura das células do sexo oposto, a fim de se reproduzir. Em tal caso, seria o sexo o propósito supremo da vida, como pensava o fundador da psicanálise,. Isso concordaria com o fato que, no outro extremo do quadro gnóstico, o pessimismo inerente à crença se transformaria, como na Índia, numa metafísica de incomparável grandeza e tenebrosa profundidade. Ele conduziria às correntes milenaristas que condenam o relacionamento sexual por forçar a procriação, maléfica e indesejável. A libertação da alma aprisionada e sua salvação são assim condicionadas à recusa do coito, tornando o sexo duplamente perverso e repugnante por ser procriador, por representar uma rendição às paixões, uma queda nos impulsos irracionais de prazer e um eclipse temporário da inteligência e do bom-senso num desvão alienante. O pessimismo hermético anticoncepcional reaparece, na Europa com o ascetismo de certas ordens monásticas e, mais tarde, com a filosofia de Schopenhauer. E, sob influência hindu, a própria crença na transmigração voltará a inspirar o Espiritismo moderno.

Verificamos, portanto, que se a ética criada a partir de tais elementos é ascética, aceita em certas circunstâncias o frenesi libertário erótico. A contradição é a mesma de fenômenos políticos paralelos que se registram em nossos dias. Deparamo-nos, de um lado, com o puritanismo da Esquerda ortodoxa, ex-moscovita, albanesa ou chinesa, e, do outro, com a permissividade anárquica da Nova Esquerda ocidental que defende a permissividade e se bate pelo deboche generalizado, as drogas, a pornografia, a obscenidade, a perversão, enquanto admira a estrita disciplina dos costumes que, policialesca e hipocritamente aliás, dominava o Leste da antiga Cortina de Ferro. Os partidários desses movimentos coincidentes não parecem se dar conta da incoerência de sua atitude em relação ao erotismo. A ética ascética do gnosticismo é coerente apenas no sentido que sua inimiga principal é a ordem moral da família, instituição reprodutiva que mantém o homem acorrentado ao karma da sucessão temporal das gerações. O adversário que sobretudo cabe liquidar é a Família. Nesse sentido, talvez se explique a contradição uma vez que, de maneira radical como nos tempos heróicos da Revolução ou de maneira sutil como hoje em dia, trata-se de enfraquecer a estrutura matrimonial em ordem a reforçar a fidelidade ao Estado, expressão organizada do coletivo, do grupo social, da totalidade comunitária que pretende eternamente sobreviver.

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A verdade é que o sexo abre vastas perspectivas de atos criadores. Para além do sexo, há em cada novo ser humano uma nova 'possibilidade', um quantum absolutamente original no Universo, ou como dizem os físicos uma 'singularidade'. Cada criança recém-nascida configura uma improbabilíssima e inédita combinação genética, original em sua capacidade de conhecimento e em sua consciência moral. Cada indivíduo é um fator de ação criativa totalmente livre que quebra a necessidade cósmica. Cada sujeito rompe o determinismo material e introduz o inesperado, o imprevisto, o experimento original, o absolutamente Novo, o dado singular de natureza estocástica que se revela no futuro e o introduz como elemento cumulativo do Tempo irreversível.
Podemos alegar que, se é verdade que, numa época anterior ao triunfo da Igreja com Constantino, tenham os gnósticos pregado a Liberdade total para os homens de fé na exaltação de uma conversão recente e uma espera imediata da Ressurreição no Reino da Promessa, explica-se a rigidez de Agostinho em matéria de moral sexual por haver vivido num período sensivelmente diferente do nosso. Todo o Império se convertera ao Cristianismo. Orientalizara-se com a transferência da capital para Constantinopla. A religião não encontrava mais competidores e haviam cessado as perseguições e violências contra os cristãos, tratando-se agora de consolidar os ganhos no momento em que os bárbaros, justamente, ameaçavam a Cristandade. Roma caíra sob os golpes de Godos e Vândalos, e uma sóbria e austera moralidade era exigida para o enfrentamento do Mal metafísico numa idade de tenebroso barbarismo que se aproximava aceleradamente. Não era só a religião, era a própria Cristandade que se tratava de preservar de desaparecimento. O momento histórico, o Zeitgeist deve ser levado em consideração na reação puritana de Agostinho..

Salienta Elaine Pagels o papel relevante que teria o Agostinianismo desempenhado, por isso mesmo, com a doutrina de que o homem se tornou irreversivelmente corrompido por sua experiência sexual no momento da Queda. A redenção só poderia ocorrer por uma Graça salvífica do Deus Todo Poderoso. Essa Graça é um dom gratuito, predestinado e por intermédio da elite clerical, possui a Igreja o monopólio distributivo desse dom através dos sacramentos. A repressão ao sexo e sua transformação em pecado e em vergonha exprimem uma necessidade de contenção, de reserva, de maior disciplina espiritual num momento crucial da história da civilização, ameaçada pelo desencadeamento de forças absolutamente anárquicas. Em obra de 1970, Saeculum: History and Society in the Theology of St Augustine, enfatiza o inglês R.A. Markus o mesmo ponto de vista ao argumentar que, naquele momento, o Império deixara de ser apreciado tanto nos termos otimistas da imagem messiânica na tradição de Sto Eusébio, quanto na imagem apocalíptica do triunfo próximo do Anti-Cristo na visão de S. João Evangelista. A política e, especificamente, a política do sexo, entra em jogo para contrabalançar a horrenda anarquia que se alastra pela Europa, mantendo-a por vários séculos na 'Idade da Escuridão'. A política repressora contamina o próprio âmago de uma religião cujo fundador, no entanto, repelira toda tentação de poder e domínio temporal com um gesto imediato e palavras duras de repúdio Vade Retro, Satanás...

Ação e Reação. Na realidade, a desconfiança e o temor do poder de Eros estão profundamente enraizados na mente humana e brotam em tabus, crendices e proibições generalizadas que a antropologia descobre, mesmo entre populações em que são normais costumes muitos livres em matéria de sexo. Fascinada pela sedução dos trópicos, a antropólogo americana Margaret Mead, imaginava as ilhas da Polinésia como verdadeiros paraísos, habitados por populações para as quais o prazer sexual é desprovido de qualquer resquício de remorso, ou senso de culpa de tipo europeu. Estudos posteriores provaram, porém, que os polinésios também sofrem de complexos. São outros complexos sem dúvida, mas são complexos de qualquer forma que os atormentam igualmente, em relação a outras formas de comportamento. Pode-se oferecer como exemplo de relativismo a descoberta, feita na Polinésia pelos marinheiros do Capitão Cook, do termo tabu. O significado exato do termo nem os próprios nativos entendiam.

Assim, seus hábitos sexuais 'libertinos' chocavam os ingleses. Mas motivo de espanto ainda maior era o fato que homens e mulheres se viam ali terminantemente proibidos de comerem juntos. Uma refeição com a presença de ambos os sexos era tabu. Diante de tão profundas inibições que o paganismo também alimentara, tratava-se, em suma, para os europeus recém-convertidos de conquistar um patamar mais alto de espiritualidade. E talvez por isso tenha Agostinho se levantado com tamanha fúria contra o pelagianismo. O bom-mocismo característico da heresia do monge galês Morgan, mais conhecido como Pelagius, se focaliza justamente na atitude tolerante inoportuna em relação ao impulso incoercível da Libido. Pelagius produzira uma doutrina que implicava, praticamente, a negação do Pecado Original, assim abrandando a angústia moral do verdadeiro homem de fé.

Sem pretender penetrar mais a fundo numa obscura controvérsia teológica em torno da essência sexual ou não do Pecado Original, lembremos a observação de Jung que os extremos de ascetismo a que se chegou, naqueles primórdios de nossa era, poderiam ser explicados como uma reação cultural coletiva - uma reação dos mores - à luxúria descomedida que teria marcado o Império romano no período da decadência do paganismo. A reação seria exigida pela necessidade de uma nova atitude mais espiritual - e não obstante os sinais de libertação trazidos pelo Renascimento e o Iluminismo - o impacto gigantesco dessa repressão perdurou até nossos dias. É possível, então, que estejamos entrando numa idade em que a 'conscientização' da questão sexual levante, novamente, o problema do que Freud chama de 'sublimação'.

Levemos tudo isso em consideração, antes de iniciarmos o argumento com a abordagem psicanalítica de uma das personalidades que, na história, maior impacto exerceu nesse terreno tão nuclear da cultura, Sigmund Freud. Os problemas de nossa consciência moral são invariáveis e, através de todas as vicissitudes, do pequeno demônio que é Eros sempre sofremos, sofreremos e por ele nos deixaremos seduzir. Ao correr deste estudo, veremos que as atitudes da Humanidade em relação ao sexo, nas classes altas, aristocráticas, nas classes burguesas ou nas mais baixas, assim como nos meios da Igreja, se diferenciaram invariavelmente. Certos comportamentos básicos, no entanto, permaneceram.

A natureza humana, esta, é sempre a mesma. Não há motivos, a nosso ver, nem para pessimismos catastróficos, nem para euforias exuberantes, mais próprias da adolescência. Conceda-nos pois o leitor benévola tolerância e acolha com serenidade esta espécie de striptease filosófico que vamos empreender na análise da Revolução Sexual...


(*) Breve biografia do Embaixador Meira Penna:

José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro no dia 14 de Março de 1917. Pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), obteve o título de Bacharel em Ciências Jurídicas. No ano de 1938 ingressou na carreira diplomática por intermédio de concurso público para o Instituto Rio Branco. Fez cursos de especialização na Universidade de Columbia, em Nova York, e no Instituto C. G. Jung, de Zurique. No ano de 1965 fez o Curso Superior de Guerra da ESG, tendo cursado posteriormente diversos cursos de especialização nessa instituição. Como diplomata de carreira, J. O. Meira Penna ocupou diversas funções, dentre as quais: Vice-Cônsul em Calcutá¡, Índia, e Shangai, China (1940-1952); Segundo Secretário em Ankara, Turquia, e Encarregado de Negócios em Nanking, China (1947-1949); Secretário em Ottawa, Canadá¡, Secretário e Conselheiro da Missão Brasileira das Nações Unidas (1953-1956) e membro da Delegação Brasileira a várias Assembléias das Nações Unidas, e da Conferência Geral da UNESCO em 1958; Chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores (1956-1959); Cônsul Geral em Zurique, Suíça (1959-1964); Embaixador do Brasil em Lagos, Nigériria (1964-1965); Secretário Geral Adjunto para o Planejamento e da Europa-Oriental e Ásia (1966-1967); Embaixador do Brasil em Israel e em Chipre (1967-1970); Presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do MEC, Diretor Geral da Embrafilme e Assessor do Ministério da Educação e Cultura (1971-1973); Embaixador do Brasil em Oslo, Noruega e na Islândia (1974-1977); Embaixador do Brasil em Quito, Equador (1978-1979); e Embaixador do Brasil em Varsóvia, Polônia (1979-1981). Meira Penna foi conferencista de cursos da ADESG (1971-1973); tem ministrado regularmente conferências sobre psicologia social no Instituto C. G. Jung em Zurique e conferências sobre diversos temas na Escola Superior de Guerra e no Conselho Técnico da Confederação Nacional da Indústria e do Comércio. Tem colaborado com o trabalho dos Institutos Liberais de todo o Brasil, sendo atualmente o presidente do Instituto Liberal de Brasília. José Osvaldo de Meira Penna é um dos quatro brasileiros vivos que tem a honra de ser membro da Mont Pelerin Society.

Meira Penna é autor de vasta obra composta, até o presente momento, dos seguintes livros: Shangai: Aspectos Históricos da China Moderna (1944), O Sonho de Sarumoto: O Romance da História do Japão (1948), Quando Mudam as Capitais (1958 / 2ª Edição revista e ampliada: 2002), Política Externa, Segurança e Desenvolvimento (1967), Psicologia do Subdesenvolvimento (1972), Em Berço Esplêndido: Ensaios de Psicologia Coletiva Brasileira (1ª Edição: 1974 / 2ª Edição revista e ampliada: 1999), Elogio do Burro (1980), O Brasil na Idade da Razão (1980), O evangelho segundo Marx (1982), A Ideologia do Século XX: Ensaios sobre o Nacional-socialismo, o Marxismo, o Terceiro-mundismo e a Ideologia Brasileira (1ª Edição: 1985 / 2ª Edição revista e ampliada: 1994), A Utopia Brasileira (1988), O Dinossauro: uma Pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo Selvagem e a Nova Classe de Burocratas e Intelectuais (1988), Opção Preferencial pela Riqueza (1991), Decência Já¡ (1992), O Espírito das Revoluções: Da Revolução Gloriosa à Revolução Liberal (1997), Ai, que dor de cabeça!: Alguns dados informativos e sugestões para aqueles que sofrem de enxaqueca (2000), Urania: Onde se discute a conquista do espaço, a ficção científica, os discos voadores, E.T.s, a pluralidade dos Mundos Habitados e a solidão do homem (2000), Cândido Pafúncio: Numa historia contada por um idiota (2001) e Da Moral em Economia (2002). Além desses dezenove livros, Meira Penna é autor de centenas de artigos publicados em jornais e revistas no Brasil e no exterior.

Algumas opiniões acerca do Embaixador Meira Penna:

“O embaixador Meira Penna é um homem de grande cultura, que já leu todos os grandes clássicos e modernos do pensamento liberal, e que fez do liberalismo uma doutrina viva. É também um formidável polemista”.
- Mário Vargas Llosa

“Desenvolvendo grande atividade intelectual desde a juventude, o embaixador aposentado José Osvaldo de Meira Penna realizou uma obra grandiosa, que acredito venha a merecer consideração detida num dos nossos cursos de pós-graduação em pensamento brasileiro ou ciência política”.
- Antonio Paim

“O embaixador Meira Penna alia a sua inteligência e a sua vasta erudição - histórica, filosófica, sociológica, política e econômica - a uma notável capacidade de combater. Polêmico, freqüentemente agressivo em face a posturas contrária a sua - especialmente a socialista e nacionalista -, ele é uma figura ímpar no panorama intelectual brasileiro, sempre pronto a denunciar ilusões ou imposturas”.
- Roque Spencer Maciel de Barros

“Meira Penna é um reconhecido intelectual, articulista e polemista, já escrevera diversas obras de fôlego, introduzindo muitos temas então inéditos ou pouco abordados, como o patrimonialismo selvagem”.
- Cândido Prunes

“O embaixador José Osvaldo de Meira Penna é um dos intelectuais brasileiros que mais tem contribuído para a formação de uma literatura liberal em nosso país”.
- Og F. Leme

“Meira Penna é um expoente da pequena ala de intelectuais liberais do Itamaraty que não se deixaram contaminar pelas ideologias coletivas: o solidarismo romântico, o nacionalismo e o socialismo. Essas ideologias antiliberais, que desconhecem o papel da concorrência na promoção da eficácia econômica e do pluralismo político, impregnaram várias gerações itamaratianas. E, como convé a celebre entropia de um país subdesenvolvido, degradaram-se em manifestações folclóricas: antiamericanismo de salão, socialismo de balcão e terceiro-mundismo de ocasião”. “Meira Penna, como liberal engajado e espadachim ideológico, sempre sofreu discriminação por parte de mesquinhas igrejinhas no Butantã da Rua Larga. Foi um talento subaproveitado. Prosperam mais, para usar a verbologia de Platão, os 'filodoxos' (amigos de opiniões) do que os 'filósofos' (amigos da sabedoria)”.
- Roberto Campos

“Meira Penna está muito atento aos problemas colocados pela inserção do catolicismo na economia da modernidade, além de preocupado com a fundação de uma Ética social”.
- Ubiratan Borges de Macedo

“Meira Penna escreveu o melhor livro de psicologia social brasileira (Psicologia do Subdesenvolvimento) e a melhor defesa da economia liberal que existe em português (Opção Preferencial pela Riqueza), além de uma notável análise da burocracia estatal (O Dinossauro), de um esplêndido painel das Ideologias do Século XX e de muitos outros livros que não ficam abaixo desses”. “Poucos escritores de tamanho valor foram, no mundo, tão injustamente depreciados pela mídia, tão sistematicamente excluídos do debate público e reduzidos a falar para um pequeno círculo de leitores e admiradores”.
- Olavo de Carvalho




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