O Racionalismo de Espinosa
Por MAGNO MATHEUS DA ROCHA
Spinoza (Baruch ou Benedictus de, 1632-1677) foi um filósofo holandês, filho de judeus portugueses, que antes de ser reconhecido como filósofo, foi um polidor de lentes, da mesma maneira como acabaram seus dias. Pretendeu ele “racionalizar” a religião, engendrando pensamentos considerados racionalistas, por muitos autores.
Spinoza (ou Espinosa, como muitos preferem), era um cristão-novo, obrigado a se converter ao cristianismo para fugir da perseguição (e da morte). Foi excomungado aos vinte e quatro anos de idade pela comunidade judaica, que considerava suas obras contrárias aos dogmas religiosos. Talvez, por essa intransigência religiosa, tenha, em suas obras, pugnado pela liberdade de pensamento e de expressão.
Embora considerado um filósofo racionalista, penso, no entanto, que pouco de racional tem a sua filosofia. Na verdade, ele não avançou seu pensamento de modo a libertar-se do dogmatismo religioso, preferindo tangenciá-lo em tão complexo e perigoso caminho, considerando a época em que viveu.
Mas, por que Espinosa foi considerado um filósofo racionalista? Porque acreditava em Deus como razão, como uma inteligência que governa o mundo, e não (como acreditavam os filósofos anteriores), que viam Deus como um ente metafísico, uma substância ultra-sensível, ou seja, um Ser que existe por si mesmo, independentemente de qualquer outra existência, pois seria ele o criador de tudo.
Marilena Chaui, em sua obra 'Espinosa uma filosofia da liberdade', Ed. Moderna, 1995, embora não crítica, nos forneceu algumas das idéias do filósofo, enumerando o que ele considerava a gênese da idéia adequada de Deus, liberando-a da superstição teológica e da imaginação metafísica, ao afirmar que:
'1. Tudo o que existe, existe em si e por si (é substância) ou existe em outro e por outro (é modo)'.
Substância é conteúdo, e nada existe se não existe em si e por si, porque o homem é essencialmente substância, não havendo possibilidade de uma existência em outro. Considerando dessa forma, Espinosa não foge à metafísica. E esta é que deveria ser objeto de demonstração de sua existência, o que não houve até agora.
Todas as proposições filosóficas baseadas na metafísica são falsas, não só porque não possam ser demonstradas intelectivamente, mas (e justamente), porque falta-lhe base lógica, ao meu ver. No entanto, Espinoza possuia também um grau de misticismo, de modo que sua razão sucumbiu à fé.
'2. Tudo o que existe em si e por si pode ser concebido por si mesmo (é inteligível) e o que existe em outro e por outro deve ser concebido por outro (a integibilidade do mundo e dos seres humanos depende da inteligibilidade de Deus), de sorte que tudo o que existe pode ser conhecido adequadamente por nós porque Deus pode ser conhecido perfeitamente por nós e Deus é o fundamento da racionalidade do universo inteiro'.
Ao afirmar que a integibilidade dos seres humanos depende da integibilidade de Deus, o filósofo desloca a sua filosofia, o seu entendimento, para o campo da fé; mas fé e razão são incompatíveis, dentro de meu pensamento, embora ele tenha visto, em Deus, uma razão. De modo que a suposta integibilidade de Deus é apenas uma idéia mística, e não filosófica, ou muito menos uma idéia lógica.
Assim, posso dizer que a filosofia de Espinosa, embora desconsidere os mistérios e os milagres (e por isso foi excomungado), nada tem de racional, pois se funda no mistério que ele pretendeu negar.
“3. É da natureza da substância ser causa de si e de todas as coisas, ser constituída por infinitos atributos infinitos, ser única e eterna”.
Considerar Deus como substância não é inteligível, como afirmei acima. Além do mais, ou o homem é substância, conteúdo, ou Deus seria substância. Não há como conciliar esse atributo a um e a outro, sob pena de tentarmos igualá-los.
Todos nós podemos fazer afirmações. Mas todas as afirmações devem conter um mínimo de coerência para serem consideradas. O problema é: quando um filósofo, ao sobressair nos meios culturais e se afirmar no conceito quase universal (como os filósofos gregos, por exemplo) faz uma proposição, é natural que as pessoas que o lêem, ou mesmo as que ouvem dele falar, passam a dar-lhe o crédito que, se devidamente e racionalmente mensurado, não tem.
Não quero dizer, no entanto, que Espinosa não deva ser levado a sério. Eu o levo em muitas de suas proposições, e tanto, que estou aqui lembrando seus pensamentos e me dedicando à sua interpretação, embora parcial, dentro de minha notória limitação. Mas ele sofreu duas fortes influências: dos filósofos que o antecederam e das marcas da ignorância e da intransigência religiosa que se lhe abateram: a excomunhão. De tal modo que, ora se posicionva ao lado de um, ora de outro, concebendo uma fé racional quando, de fato, isso é impossível porque contraditória.
Afirmar que tudo vem de Deus eu também poderia afirmar. Demonstrar a afirmação, ninguém demonstrou de modo convincente, tanto que a discussão tem sido eterna.
“4. Deus é a substância única, eterna, absolutamente complexa ou absolutamente infinita”.
A complexidade de Deus não está em Deus, mas em nós mesmos, que lhe atribuímos sua existência, onipotência e outros atributos impossíveis de demonstração racional.
Existe uma certa contradição nessa afirmação de Espinosa, se cotejada com a inicial (1). Se Deus é substância única, o ser humano não poderia ser substância, porque, por mais que se insista em assemelhá-los, tal semelhança seria impossível, pois o homem é matéria e Deus, para os que nele crêem, só poderia ser metafísico. Ora, não há possibilidade de assemelhar a física com a metafísica.
“5. Deus é causa livre, necessária e imanente de todas as coisas. Livre: porque age apenas segundo a necessidade interna de sua essência. Necessária: porque sua potência é idêntica à sua essência. Imanente: porque não se separa de seus efeitos, mas neles se exprime e eles O exprimem”.
Ao considerar Deus como causa livre, necessária e imanente de todas as coisas (um Ser que veio do nada e pode tudo), Espinosa aceita todos os velhos conceitos dos filósofos que o antecederam, muitos já citados aqui, caindo por terra sua tentativa de racionalizar a fé. A razão caminha a passos largos, enquanto a fé prefere descansar no seio da credulidade.
“6. Deus não age por vontade e entendimento, nem orientado por fins, pois vontade e entendimento não são atributos de sua essência, mas modos infinitos de um de seus atributos (o Pensamento), e a finalidade é uma projeção imaginária da ação humana em Deus, projeção que, aliás, não corresponde sequer à própria causa das ações humanas, pois os homens também não agem movidos por fins. Deus é uma causa eficiente que age segundo a necessidade interna e espontânea de sua essência, jamais uma causa final, e jamais movido por causas finais, pois isso levaria a supor a existência de algo fora Dele que o incitaria a agir, mas nada existe fora de Deus (pois há uma única substância infinita) e nada pode incitá-lo ou coagi-lo a agir, uma vez que Sua ação não é senão a manifestação necessária de Sua essência”.
Deus não agiria por finalidade, mas por um de seus atributos, que seria o Pensamento. Algumas observações.
a) De que modo Deus pensaria, quando sabemos que o pensamento é fruto da mente humana e só do humano.
b) Ao contrário do filósofo, o homem só age por fins, seja pela necessidade, interesse e liberdade de agir e escolher o objeto de sua ação, de tal modo que essa finalidade não é uma projeção de Deus. Se assim fosse, uma ação voltada para o mal também poderia ser atribuída a Deus, quando sabemos que o homem tem um relativo livre-arbítrio justamente para discernir o que é bom e o que é mal, cabendo-lhe a escolha. Daí a sua responsabilidade que não pode ser escusada sob a alegação da influência divina.
c) Afirmar que a ação de Deus não é senão a manifestação necessária de sua existência soa como vazia de conteúdo, mas plena da vontade de crer ou supor crer em Deus sem, entretanto, demonstrar essa crença de modo convincente e coerente com sua tentativa de racionalizar a fé.
A fé só é explicável racionalmente quando entendemos a natureza supersticiosa do homem, de tal modo que ela é completamente desnecessária para a vida dos demais seres. Ora, esses “demais seres” também não seriam criados por Deus? Por que somente o ser humano foi criado com as faculdades e atributos que têm (pensamento, palavra, raciocínio), negados aos outros animais? Eis uma explicação que não foi dada, mas apenas afirmada, como se tudo no mundo, desde a suposta criação, não precisasse ou requeresse uma explicação, mesmo com suposições metafísicas.
“7. Sendo o Pensamento um atributo de Deus, tudo quanto existe – Deus, seus atributos e seus modos -, isto é, a Natureza Naturante e a Natureza Naturada, são plenamente inteligíveis, não havendo, no universo, mistérios, milagres, forças ocultas, nem fins incompreensíveis”.
Como os demais filósofos do passado grego, Espinosa não escapou à criação de vocábulos e expressões que visassem conceitos e justificações. “Natureza Naturante” e “Natureza Naturada” fazem parte desse vasto elenco de criações vocabulares, mas que não ajudaram a desvendar o mistério da vida. São frutos de pura imaginação dos que queriam explicações para a vida sem encontrá-las, embora.
“Natureza Naturante” seria Deus e seus “atributo da criação”; “Natureza Naturada” “os modos pelos quais houve a criação” sendo ambas plenamente inteligíveis em seu pensar, ao qual acrescenta que não há no universo mistérios, milagres, forças ocultas, nem fins incompreensíveis.
Penso que o filósofo acrescentou mais dois mistérios que os filósofos terão que desvendar: por que 'Natureza Naturante' ou 'Natureza Naturada'?
Existe, nessa afirmação, um vislumbrar de uma verdade hoje amplamente aceita: a fonte de tudo está na Natureza; a Natureza cria, transforma e finda. Chamá-la de Deus, Uno, Nous, Demiurgo, Alá, ou outras denominações, não tem nenhuma importância do ponto de vista da existência de um Ser criador, pois todos desembocarão na Natureza-mãe, já que tudo na vida é natural.
“8. Sendo a Extensão um atributo de Deus, todos os corpos, todas as proporções de movimento e de repouso que dão origem aos corpos e às suas ações, determinando-lhes a forma e as relações recíprocas que mantêm uns com os outros, fazem parte da natureza divina”.
Esse pensamento de Espinosa vem a demonstrar que ele jamais se afastou do pensamento dos demais filósofos, antes de Cristo e depois deste. É o pensamento metafísico universal ou quase universal, de remotos tempos ou de tempos atuais: Deus é criador de tudo e tudo existe em seu nome.
Não é pensamento racional, mas fundado apenas na crença, pois que essa, embora seja racional, do ponto de vista de uma aceitação humana, não explica racionalmente a existência de Deus, como ele teria surgido do nada e como ele teria criado o universo, considerado pela Bíblia como circunscrito à Terra, ao Sol, à Lua e às estrelas (pontos pequeninos de luz), sendo a Terra como o centro desse pequeno mundo.
A mim me pareceria confortável dizer que Deus surgiu do nada porque é uma essência auto-criadora e criadora de tudo. Mas, usando de minha faculdade racional e honestidade, não ousaria explicar como tudo isso poderia acontecer, partindo do “absoluto”. Nenhuma proposição pode prescindir de demonstração intelectiva, sob pena de invalidade.
'9. Tudo o que existe é duplamente determinado quanto à existência e à essência, isto é, os modos finitos são determinados a existir e a ser pela atividade necessária dos atributos divinos e pela ordem e conexão necessárias de causas e efeitos na Natureza Naturada, de sorte que tudo o que existe é necessário e não há contingência no universo”.
Tomar por base tudo o que existe numa suposta necessidade é o pensamento não só de Espinosa, mas de alguns outros filósofos da Antigüidade grega, já mencionados. Todas as obras divinas seriam fundadas, não na vontade, mas na necessidade, de modo que ao homem, sua criação, faltaria, também, a vontade e o livre-arbítrio.
Esse pensamento é profundamente determinista, como que um “assim está escrito”, do fatalismo árabe.
Esse grau de determinismo, ou mesmo de fatalismo, tem sido cultivado até os dias atuais, especialmente (e justamente) nos meios mais carentes de razão: “Foi Deus que quis assim”; “é como Deus quer”; “graças a Deus”... Criou-se, assim, o homem irresponsável.
Ora, o homem ou acredita em sua liberdade de escolha, e se responsabiliza por seus atos, ou se rende ao fatalismo. Não há como conciliar as duas diretrizes de seu modo de ver a vida e do direcionamento de seus atos, ou mesmo dos acontecimentos que lhe envolvem. Acreditar na liberdade é afastar a necessidade. Ou o homem é livre ou é preso a um Deus necessário e, portanto, tudo seria necessário.
“10. Necessidade e liberdade não são idéias opostas, mas concordantes e complementares, pois a liberdade não é senão a manifestação espontânea e necessária da força ou potência interna da essência da substância (no caso de Deus) e da potência interna da essência dos modos finitos (no caso dos humanos). Dizemos que um ser é livre quando, pela necessidade interna de sua essência e de sua potência, nele se identificam sua maneira de existir, de ser e de agir. A liberdade não é, pois, escolha voluntária nem ausência de causa (ou uma ação sem causa), e a necessidade não é mandamento, lei ou decreto externos que forçariam um ser a existir e agir de maneira contrária à sua essência.”
Por que eu considero Espinosa um falso racionalista”? Porque as idéias do filósofo são baseadas: a) na metafísica; b) na visão de Deus como o criador de tudo; c) na existência metafísica da alma. d) na negação da liberdade a qual ele tanto procurou.
A única inovação substancial da filosofia de Espinosa em relação aos filósofos anteriores e posteriores ao Cristianismo foi a de não admitir, teoricamente, a existência de mistérios, milagres, forças ocultas ou fins incompreensíveis. Talvez, só por isso, tenham suas idéias sido consideradas racionais, quando, na verdade, são tão irracionais como as idéias filosóficas tradicionais, baseadas na existência de um suposto criador de todas as coisas.
Na filosofia de Espinosa o homem só age pelas mãos de Deus, invalidando sua noção de liberdade que, aliás, ele a vê ligada à necessidade. Ora, quem tem necessidade não tem liberdade. E tal colocação invalida, também, a noção do livre-arbítrio que, embora relativo nas sociedades modernas, pelas convenções sociais impostas, dá ao homem, entretanto, a oportunidade de escolher entre o bem e o mal.