Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo que deve ser considerado à parte, por sua notável importância para o pensamento filosófico moderno.
“Nasceu em Königsbery, cidade da Prússia Oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e pertence a um território que se encontra sob a soberania russa), em 1724, de modesta família de artesãos, provavelmente de origem escocesa. Seu pai, João Jorgen, era seleiro; sua mãe, Regina Reuter, era dona-de-casa. Muito numerosa, sua família foi duramente provada: nada menos que seis filhos morreram em tenra idade. Em uma carta, com sentimentos de notável gratidão, Kant recorda os pais como modelos de honestidade e probidade e reconhece ter recebido deles excelente educação”. (Reale-Antiseri in 'História da Filosofia', v. II, p. 860).
Tive o cuidado de anotar essa sucinta biografia para meditar sobre as várias condutas humanas diante de determinadas situações de adversidade. E penso, também, por que razão tantos filósofos questionaram sobre o ser, sua natureza, mas não lembraram que o homem é, antes de tudo, o seu caráter.
Como o universo surgiu, se surgiu, não tem a importância que se deve dar ao homem; e nenhuma importância para a humanidade tem um homem, se o seu caráter não for bom.
Pois Immanuel Kant era um 'homem moral', atestado por seu conhecido pensamento:
“Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e longamente o pensamento nelas se detém: o céu estrelado em cima de mim e a lei moral dentro de mim”. ('Crítica da razão pura', cf. obra cit., II, p. 864).
Autor de profusa obra literária, sendo a mencionada, aqui, a mais importante, Kant jamais deixou de ser citado pelos pensadores pósteros, tal o valor de seus pensamentos. Não quero dizer, com isto, que ele impusesse uma unanimidade (o que seria impossível), mas a freqüência com que é mencionado não deixa dúvida de sua influência nas 'filosofias' modernas.
Eu mesmo, embora não sendo filósofo profissional, hoje em moda, tenho a ousadia de discordar de seus pensamentos metafísicos, como poderei ter ocasião de demonstrar.
Falando sobre o 'itinerário espiritual de Kant', os mencionados Autores da 'História da Filosofia' expõem esse pensamento do filósofo:
“A metafísica, pela qual estou destinado a ser apaixonado...'.
'Trata-se de um destino no qual o apaixonado não alcançou o objeto do seu amor ou, pelo menos, não o alcançou senão de modo inteiramente insólito. Contudo resta o fato de que Kant lutou durante toda a sua vida para dar à metafísica um fundamento científico e que a própria Crítica foi concebida com esse fim, ainda que os seus resultados tenham levado a metas diferentes”. (Ob. cit., II, p. 865).
Não poderia ser diferente, porque nenhum filósofo, científico ou não, religioso ou não, conseguiu provar que, além da matéria, exista algo.
O homem é dotado de cinco sentidos principais, que lhe permitem viver sem embaraços, e ainda outros secundários que lhes complementam. Mas todos os seus sentidos, somados à faculdade de raciocinar, não conseguiram demonstrar a viabilidade da existência da metafísica a não ser impondo-lhe uma nova visão. E, por isso, nem Kant, com sua imensa capacidade racional, conseguiu esse feito, no meu modo de pensar. Daí ter-se desligado dessa busca e enveredar por caminhos mais palpáveis, qual seja, o científico, para, depois, voltar ao tema.
Nenhum homem que se dedica a pensar, no sentido de buscar conhecimentos e soluções, pode ficar preso a tudo o que foi dito no passado; e esse foi o erro (e tem sido o erro) de tantos filósofos quando, falsamente estribados na 'Metafísica', de Aristóteles, julgaram que encontrariam nela as respostas às suas dúvidas sobre o universo e tudo o que nele contém. Só não as encontraram, como confundiram a todos aqueles que os seguiram.
Seguindo esses passos, Kant “não apenas não nega Deus, mas, ao contrário, supõe a sua obra criadora (a nebulosa originária não nasce do nada, mas tem origem em um ato criador de Deus, assim como as leis racionais que governam o mundo).
Do mesmo ano de 1754 é a dissertação metafísica Principiaram cognitionis metaphisicae nova delucidatio, na qual Kant tenta uma revisão dos princípios primeiros da metafísica leibniziano-wolffiana. Vejamos as novidades que Kant apresenta nessa obra. Antes de mais nada, ele aceita a tese de que os princípios metafísicos basilares são dois: a) o de identidade (ao qual está subordinado o da não-contradição) e b) o de razão suficiente. Entretanto, ele procura fundamentar melhor do que havia sido no passado esse segundo princípio, com base na seguinte prova: todo ente contingente supõe uma razão antecedente ou causa , porque, se não houvesse, seria necessário concluir que tal ente é causado por sua própria existência, o que é impossível, porque então não seria mais um ser contingente, mas um ser necessário. Ademais, Kant acrescenta outros dois princípios a esses dois primeiros: c) o princípio de sucessão (segundo o qual só pode ocorrer a mudança nas coisas admitindo-se a sua recíproca conexão) e d) o princípio de coexistência (segundo a qual toda coisa só pode ter relações e conexões com as outras se admite uma dependência comum de um princípio primeiro)”. (Idem, II, p. 867).
Acredito mesmo que, se Kant não tivesse perdido tempo com sua 'paixão' - a metafísica - e se dedicasse mais à que se denomina de 'realidade', teria nos deixado melhores pensamentos.
Interessante, no ser humano, é o de se deixar levar por impulsos tais que, dificilmente, deles consiga se afastar. Esse fenômeno humano pode explicar a cadeia de pensamentos que, com seus elos, estabelece uma conexão entre esses pensamentos a tal ponto de perenizá-los.
Se voltarmos, passo a passo, a tudo o que foi dito pelos filósofos, a partir dos jônicos, poderemos verificar que há sempre elos de pensamentos que, como uma corrente, os tornam presos. O criacionismo, o Ser superior (Deus), a metafísica... são exemplos desses elos. Por mais que o homem use a razão, ela jamais será só: estará sempre ligada a 'outras razões' de outros homens, de modo que a individualidade de pensamentos seja não somente relativa, mas ilusória.
Ocorre, com esse fenômeno, que o próprio homem não pode evitar, que exista um retardamento da evolução do conhecimento. Não considero desprezível enriquecer nossos conhecimentos com os conhecimentos de outros, muitas vezes mais razoáveis do que os nossos. Mas considero, também, que devemos sacudir aquela poeira deixada, aquele ranço, aquele resíduo indesejável, aquele medo de errar, e limpar nossa mente para uma de suas importantes capacidades: criar! Mas criar a partir de algo e não do nada.
Criar não é partir do nada, porque do nada coisa alguma pode sair. Criar é, partindo de algo racionalmente aceitável, inteligível, sobrepor algo mais, lapidando cada pedra e colocando uma sobre as outras até formar uma construção sólida, mas sabendo que, por mais sólida que seja uma construção, ela não jamais será infinita.
É por isso que, quando vejo os filósofos falarem em metafísica, penso logo no 'elo' ao qual me referi.
Não considero a metafísica racional e não aceito o tempo gasto por tantos pensadores ao longo de tantos séculos a tentar provar que aquilo que não existe, a não ser que, em nossa mente, pudesse existir de fato. Metafísica, sendo apenas nome dado às coisas não físicas, não produz nenhum efeito em nosso mundo real e, portanto, não merece o tempo perdido com a tentativa de fundamentá-la.
Existir de fato e existir em nossa mente são coisas diversas e, muitas vezes, opostas. Por isso, penso que devemos firmar os pés no chão, evitando uma queda que poderia ser perfeitamente evitada.
'Creio em Deus Padre, todo poderoso...' é uma sucessão de elos escravizadores do juízo, fadada a escravizar o homem por todos os séculos futuros.
Mas Kant foi arguto o bastante para perceber que errara de caminho e descobriu novos rumos, como assinalam os autores da 'História da Filosofia':
“Em 1762 ocorre uma reviravolta bastante brusca na parábola evolutiva do pensamento kantiano. Provavelmente, essa reviravolta está ligada à leitura e à meditação de Hume, que, como Kant diz expressamente, teve o mérito de despertá-lo do sono dogmático com suas críticas radicais aos princípios da metafísica. Essa reviravolta se manifesta de forma eloqüente no escrito A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas e nas duas obras de 1763: Único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus e Ensaio para introduzir na metafísica o conceito das grandezas negativas'.
'No Único argumento, aliás, a metafísica chega a ser declarada uma espécie de abismo sem fundo e como que um oceano sem praias e sem faróis . Kant chega a refutar as tradicionais provas da existência de Deus (refutação que ele retomará na Crítica da razão pura (...)”.
Antecipo-me na análise desse pensamento de Kant ao observar que pouquíssimos filósofos deixaram de falar em metafísica como um fato, como algo explicável e insofismável; mas nenhum demonstrou a sua existência através de proposições comprováveis intelectivamente.
Sobre esse 'argumento possível', os eruditos Aautores da 'História da Filosofia' comentam:
“O possível não é apenas aquilo que não é contraditório, o que nada mais é do que a condição formal da possibilidade; com efeito, o possível supõe ademais que existam realmente os elementos não contraditórios, que, em certo sentido, são como que a matéria da possibilidade. Analogamente, o necessário não é somente aquilo cujo contraditório é formalmente impossível, mas também aquilo cujo contraditório é realmente impossível. Ora, diz Kant, é impossível que nada seja possível. Mas o possível supõe o ser como a sua condição, como vimos. E como o ser é condição sem a qual não se dá o possível, então existe algo que é absolutamente necessário . Em suma: o possível supõe necessariamente o necessário como a sua condição - e esse necessário é Deus”. (Ob. cit., II. pp. 868-869).
Não obstante a relevância não empírica dos argumentos de Kant, ao tentar justificar a existência do ser necessário, creio firmemente que esse 'necessário' não é absolutamente necessário. Não é a existência do universo que está sujeita a um ser necessário. A necessidade, formal ou real, só existe para os atos, não só dos homens como de todos os demais seres, de modo que Kant, embora a bela tentativa, não conseguiu justificar Deus, um Ser metafísico, não formal, nem real.
Um pássaro, quando voa, o faz por necessidade; mas age por instinto, e não por conhecimento ou por pensamento. Para ele, não há nem precisa haver metafísica nem responsabilizar Deus pelo seu vôo.
Ao tentar comparar a metafísica ao plano científico, Kant, não obstante o brilhantismo de seus argumentos, mostrou que, na realidade, não aceitava a metafísica dentro de seu próprio conceito. Mais uma vez são os autores da 'História da Filosofia' que analisam essa tentativa.
“Em 1764 são publicadas a Pesquisa sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral e as Observações sobre o belo e o sublime. Na primeira dessas obras, Kant reafirma a idéia que já conhecemos bem, isto é, de que a metafísica deve trabalhar com o mesmo método que Newton introduziu na física e que se revelou tão fecundo, ou seja, deve buscar as regras segundo as quais se desenvolvem os fenômenos com experiência segura e com o auxílio da geometria”. (Idem, II, p. 869).
Esse mundo da metafísica é um mundo de ilusões, de modo que, mesmo filósofos do mais alto grau de conhecimento se deixaram levar por esse mundo, chegando a ponto da tentativa de implantar métodos experimentais ao que não é real, mas puramente mental. Este é o meu pensamento.
Vamos ver até que ponto a mente distorce a realidade neste exemplo citado pelos referidos autores:
“Em 1976, saiu o mais curioso dos escritos pré-críticos, sob o título Os sonhos da metafísica explicados com os sonhos de um visionário. O sueco E. Swedenborg havia publicado uma obra intitulada Arcana coelestia, na qual sustentava estar em contato com os espíritos dos falecidos e ter obtido informações sobre o além através deles. Kant recebeu prementes solicitações para que se pronunciasse sobre essas teorias de Swedenborg, que despertavam grande curiosidade. Com argúcia e ironia, Kant diz que as teorias de Swedenborg nada mais são do que sonhos. E a característica dos sonhos é pertencer unicamente a quem os sonha, permanecendo fechados em um mundo privado e não transmissível.
Sendo assim, prossegue, então os metafísicos se assemelham a Swedenborg, com suas doutrinas sobre o reino dos espíritos (como é o caso, por exemplo, das mônadas de Leibniz). As doutrinas metafísicas são 'sonhos racionais' e, como tais, são privadas e não transmissíveis”. (Idem, II, p. 869).
Essa é uma grande verdade: não é proibido sonhar, mas temos que separar o sonho dos que dormem dos sonhos dos que vivem. Os que dormem sonham por um processo do subconsciente; mas os que vivem só lhes é permitido sonhar com a consciência.
A 'Crítica da razão pura' é a obra mais importante de Kant e a mais conhecida, espacial e temporalmente, embora ele tenha realizado numerosos trabalhos de suma importância e que serão mencionadas ao fim deste livro.
A 'Crítica da razão pura' aborda duas questões preliminares: as questões teóricas do conhecimento ('o que posso saber?') e as questões de ordem prática ('o que devo fazer?').
Para ele, todo conhecimento é constituído tanto por conceitos apriorísticos quanto por impressões sensíveis, ao contrário do entendimento então vigente.
“Ao provar que todo conhecimento é constituído tanto por conceitos apriorísticos (que independem de experiência) quanto por impressões sensíveis, Kant justifica, por um lado, a pretensão da razão de obter um conhecimento objetivamente válido da natureza. Por outro lado restringe ao conhecimento da natureza o âmbito em que a razão teórica pode afirmar legitimamente o seu conhecimento. Tratava-se de uma idéia nova, pois tradicionalmente a filosofia teórica (a metafísica) abordava também questões como Deus, a imortalidade da alma humana e a origem do mundo. Mas, como o ser humano não tem nenhuma intuição de Deus, da alma ou do mundo em sua totalidade, faltando a estes, portanto, o fundamento empírico, podem ser objetos do pensamento, porém não do conhecimento. Qualquer debate sobre esse tipo de objetos metafísicos carece da intuição, partindo, portanto, de conceitos vazios, de modo que a razão teórica nem pode envolver-se com eles”. (Antonia Loick, 'Cleeves Communication UnitZwei', tradução de Alfred Keller, para o Instituto Goethe São Paulo).
Penso que existem conceitos elaborados ou em elaboração, que envolvem, necessariamente, conhecimentos a priori da experiência. Esta serve somente para provar o que já se tinha, pelo menos, noção de existir. Nenhuma ciência, hoje, pode prescindir da experiência. Não é assim com a filosofia. Para esta, o conhecimento é baseado em conceitos ideológicos e, para tanto, não precisa haver experiências e comprovações.
Sendo o homem um ser sensitivo, é natural que apreenda conhecimentos por essas impressões sensíveis, independentemente de experiências. Mas as impressões sensíveis têm levado o homem a enganos recorrentes, e toda filosofia, até então, não procurou outra solução para desvendar o universo se não recorrer a Deus. E se, de fato, Deus não existir, quantos filósofos restarão? Quantos templos ruirão?
Sobre essa suposta existência eu repito que, se ela existe é porque o homem a criou! Mas, será que o homem tem o poder de criar? Eis uma dúvida que terá de ser desfeita. O homem cria, sim, mas o faz a partir de algo e não do nada.
“Kant descobriu que a natureza do conhecimento científico (ou seja, a natureza do verdadeiro conhecimento) consiste em ser uma síntese a priori e que, por isso, tudo está no descobrir qual é o fundamento que torna possível a síntese a priori . Essa é a novidade da Crítica, à qual a Dissertação de 1770 não acenava. Conseqüentemente, conseguindo-se estabelecer qual a natureza da síntese a priori , pode-se resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física, e se poderá, por fim, resolver o problema se é ou não possível uma metafísica como ciência ou então, se isso não for possível, por que então a razão humana se sente tão irresistivelmente atraída pelas questões metafísicas”. (“História da Filosofia”, II, 872).
Permitam-me colocar mais algumas questões sobre essa nova filosofia de Kant no que diz respeito ao conhecimento, pois que a filosofia nada mais é do que a sua busca.
A primeira é a de que o conhecimento apriorístico independe não só de demonstração, mas de outras formas de aquisição (sem o quê a descoberta de Kant teria pouco valor, ou não teria tanto valor). E é neste ponto - conhecimento através de outras formas de aquisição, como a leitura, por exemplo - que eu vejo alguma dificuldade em 'provar'. A demonstração racional nada prova se não for acompanhada pela prova empírica. Exemplo: eu tenho um conhecimento apriorístico de que Deus existe. É um conhecimento abstrato e isso não resta dúvida. A dúvida é sobre a existência de Deus. Logo, Deus não é um conhecimento, mas uma idéia abstrata.
Outra questão é sobre a metafísica. Descarto toda possibilidade de ver a metafísica como ciência, justamente porque ela não faz parte do conhecimento, mas do pensamento dos metafísicos. Se fizesse parte do conhecimento eu, forçosamente, como estudioso, mas longe de ser um filósofo incomum, teria oportunidade de conhecer essa ciência, como posso conhecer as ciências do Direito, da Medicina, da Engenharia, etc. Bastaria estudar estas últimas numa Universidade, já que a primeira já estudei.
Os mesmos argumentos de Kant para sonhar a metafísica como ciência poderia encher meus sonhos de 'alma como ciência', 'Deus como ciência', 'espírito como ciência'... Mas quem cuida dessas supostas existências não é a filosofia nem nenhuma ciência, mas a teologia, a religião, a crença no sobrenatural, o espiritismo, etc., porque eles vivem do pensamento ilusório e não do conhecimento.
A razão pura existe, independentemente de qualquer intervenção, porque é uma faculdade inata, no homem. Mas como disse o próprio Kant, sabidamente, é uma razão pura; logo, desprovida de qualquer conhecimento. O conhecimento só se dá através da faculdade racional do aprendizado, querendo dizer que nós não conhecemos coisa alguma se não nos valermos das diversas formas de apreensão do conhecimento.
É por esses considerações que não acredito no conceito apriorístico do conhecimento científico e muito menos na possibilidade de prová-lo fora da experiência.
Mas Kant foi grande demais para empreender esse raciocínio, na voz dos autores da 'História da Filosofia':
“Como é a ciência que determina a priori (e não empiricamente) o seu sujeito, a matemática já se constituiu há muito tempo, com o maravilhoso povo dos gregos , por obra de um único homem. Inicialmente, realça Kant, a matemática teve que proceder por meio de tentativas incertas (especialmente entre os egípcios), mas depois, em certo momento, realizou-se uma transformação definitiva, que deve ser atribuída a uma revolução, desencadeada pela feliz idéia de um só homem, com uma pesquisa tal que, depois dela, o caminho a seguir não poderia mais ser perdido e a estrada segura da ciência ficava aberta e traçada para todos os tempos e por trajeto infinito.
Com efeito, prossegue Kant, o primeiro que demonstrou o triângulo isósceles (tenha se chamado Tales ou como se quiser que tenha se chamado) foi atingido por uma grande luz, porque compreendeu que não devia segujir passo a passo aquilo que via na figura nem se apegar ao simples conceito dessa figura como que para apreender as suas propriedades, mas que, por meio daquilo que, pelos seus próprios conceitos, pensava e representava (por construção) devia produzi-la e que, para saber com segurança alguma coisa a priori, não devia atribuir a essa coisa senão aquilo que brotava necessariamente daquilo que, segundo o seu conceito, ele próprio lhe havia posto'. 'Em suma, a geometria nasceu quando Tales (ou outro alguém em seu lugar) compreendeu que ela era uma criação da mente humana e que não dependia de nada mais além da mente humana”. (II, pp. 874-875).
Dentro desse conceito, devo reparar, Tales (ou outro qualquer em seu lugar), seria o único criador do mundo, pois que teria tirado a geometria do nada. Mas ninguém tira alguma coisa do nada, de modo que a matemática, com todos os seus complexos, não foi criada, mas descoberta e desenvolvida, não só pela mente, mas com a sucessão de pesquisas e demonstrações, onde sempre está a razão. A mente humana, essa poderosa máquina, tem a capacidade de descobrir e desenvolver um cem número de coisas, desde a Filosofia, a Matemática, a Medicina, com seus vários ramos, o Direito, e tantas outras ciências e técnicas, até os telefones celulares e os satélites artificiais. E certamente não parará por aí.
Mas eu não creio na criação a partir do nada: nem do homem, nem de Deus. Quanto ao homem, entretanto, ele existe e raciocina, de tal modo que sua mente tem a capacidade de aproveitar tudo o que já existe (como o triângulo isósceles, do exemplo), configurá-lo e nomeá-lo. Quanto a Deus, ele fica guardado no pensamento de cada um. E esse pensamento deve ser respeitado, porque é humano.
Encantados, como tantos outros, com a filosofia de Kant, os Autores da 'História da Filosofia' escreveram:
“Vejamos a página de Kant que abriu uma nova época no filosofar e que teve conseqüências de alcance histórico e teórico incalculáveis': 'Até agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos, mas todas as tentativas de estabelecer em torno deles alguma coisa a priori, por meio de conceitos, com os quais se teria podido ampliar o nosso conhecimento, assumindo tal pressuposto, não conseguiram nada. Portanto, finalmente, faça-se a prova de ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica, formulando a hipótese que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento, o que se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles nos sejam dados. Aqui, é exatamente como na primeira idéia de Copérnico, que, vendo que não podia explicar os movimentos celestes admitindo que todo o exército dos astros girasse em torno do espectador, tentou ver se não teria melhor êxito fazendo girar o observador e deixando os astros em repouso. Ora, na metafísica, pode-se pensar em fazer uma tentativa semelhante (...)”. (II, p. 877).
Essa grandeza de raciocínio e de argumentação de Kant é espantosa, sem dúvida, especialmente sabendo-se que ele vivia numa época em que prevalecia conceitos antigos. No entanto, há diferença entre os movimentos celestes e a metafísica. Os astros estão lá; a metafísica não está em lugar algum.
O que me interessa no momento não é me fazer de crítico à filosofia de Kant, cujo vasto pensamento nos brindou com diversos e elevados conceitos, seja da própria filosofia, seja das coisas empíricas. Mas o que mais interessa ao meu trabalho - o conhecimento, a razão e a lógica - pois que procuro pesquisar a existência ou não da Vida pura -, Kant não esclareceu, insistindo na metafísica como um ponto de apoio.
Mas é quando ele fala em cosmologia que algumas de suas idéias dão um passo em direção ao enigma.
Diz Kant que “a cosmologia racional tem quatro faces, ou melhor, considera o absoluto cosmológico sob quatro aspectos (que, segundo Kant, correspondem aos quatro grupos das categorias: quantidade, qualidade, relação e modalidade), de onde derivam os quatro problemas seguintes: 1) o mundo deve ser pensado metafisicamente como finito ou infinito? 2) Decompõe-se em partes simples e indivisíveis ou não? 3) As suas causas últimas são todas do tipo mecanicista e, portanto, necessárias, ou existem nele também causas livres? 4) O mundo supõe uma causa última incondicionada e absolutamente necessária ou não?”. (“História da Filosofia', II, p. 900).
Apresenta, então, 'quatro respostas afirmativas (teses) e quatro respostas negativas (antíteses), que se anulam reciprocamente' e logicamente, acrescento.
Kant, então, deduz algo de interessante:
“Essas antinomias são estruturais e insolúveis, porque, quando a razão ultrapassa os limites da experiência, não pode deixar de pender e oscilar de um oposto a outro. Fora da experiência, os conceitos trabalham no vazio”.
Difícil realizar um trabalho da envergadura do que foi apresentado por Kant, sem, às vezes, não cair em alguma contradição. Afirmo que nenhum pensamento chegou a tal ponto de coerência. E vejo alguma contradição no pensamento de Kant quando ele fala, especialmente, sobre razão ao mesmo tempo em que metafísica. Quando ele fala em razão pura e não aceita conceitos fora da experiência, por exemplo. Toda razão, para ser lógica, deve trabalhar com experiência, pois fora dela, como ele próprio admite, 'os conceitos trabalham no vazio'. Noto que, quando falo, aqui, em experiência, não estou me referindo ao empirismo. A experiência filosófica trabalha dentro do intelecto.
Quais as experiências havidas, após o surgimento do homo sapiens sapiens, sobre a metafísica e tudo que nela se encerraria? Eu respondo que nenhuma, sob o ponto de vista lógico, inteligível, já que as idéias são como o vento: podem soprar em diversas direções, como já me referi.
Coloco as seguintes questões:
Problema 1): O mundo, não podendo ser pensado metafisicamente, só pode ser infinito.
Problema 2): Todas a partes são divisíveis, pois que, constituído de átomos, estes divisíveis, a indivisibilidade contraria as experiência modernas.
Problema 3): O mecanicismo de Descartes foi longamente rebatido, passando-se a admitir o indeterminismo. As chamadas 'leis da natureza', na verdade, não são leis (e se fossem, nem sempre seriam obedecidas, pois que o homem adquiriu conhecimentos suficientes para mudar a própria natureza). Posso admitir, no máximo, uma causa mista; uma parte sujeita ao mecanicismo e outra livre. Exemplo: quando um meteoro cai não obedece a causas mecânicas, mas a um fator determinado por causa não mecânica, como a gravidade. Sua queda é livre, portanto.
Problema 4): Só existe necessidade no mundo vivo dos seres. Se um astro não cai sobre outro, por exemplo, não é por causa da necessidade, mas em razão de um equilíbrio perfeitamente explicável: uma recíproca atração. Tal não aconteceria se houvesse apenas um astro, o que impediria essa reciprocidade, evidentemente.
Ao mesmo tempo que Kant não aceita a metafísica como ciência; depois de sua 'Crítica', chegou à conclusão de que a idéia da alma e de Deus não são ilusões:
“Somente por equivoco elas se tornam dialéticas , ou seja, quando são mal entendidas, vale dizer, quando são confundidas com princípios constitutivos de conhecimentos transcendentais, como ocorreu precisamente na metafísica tradicional”. (II, pp. 904-905).
Mas, se as idéias não são constitutivas, não produzem aqueles objetos transcendentais (alma, Deus), qual seria seu valor para o conhecimento do mundo?
“A resposta de Kant é de que as Idéias têm uso normativo, valem como esquemas para ordenar a experiência e dar-lhe a maior unidade possível e valem como regras para organizar os fenômenos de maneira orgânica a) como se (als ob) todos os fenômenos relativos ao homem dependessem de princípio único (a alma), b) como se todos os fenômenos da natureza dependessem unitariamente de princípios inteligíveis e c) 'como se' a totalidade das coisas dependesse de inteligência suprema”.
O pensamento de Kant sobre o uso normativo das Idéias (e não a qualidade de uma determinada idéia, penso) foi muito bem elaborado dentro de sua concepção sobre a razão. Permito-me julgar, no entanto, que as Idéias não têm o valor ou a qualidade de substância, de modo que me parece difícil o entendê-las como simples princípios regulatórios. As Idéias (ou a Idéia), para meu entendimento, são as bases das construções, pois que elas derivam da faculdade melhor do homem, que é o de raciocinar. Ora, a razão pura nada construiria se não fossem as Idéias. Portanto, no plano não filosófico, mas prático, elas têm a função constitutiva. E foi através delas que o grande filósofo construiu o seu mundo filosófico. A razão é sempre prática e dela derivam as idéias sem as quais o mundo não seria construído pelo homem.
Mas quando eu falo em mundo construído pelo homem, não quero dizer, em absoluto, que foi o homem que construiu o universo, que é infinito. O homem construiu o mundo do modo como nós o pensamos e o vivemos.
30-11-05
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