O pensamento e as questões de Bertrand Russell
MAGNO MATHEUS DA ROCHA
Bertrand Russell (1872-1970) é um dos mais importantes filósofos contemporâneos. Adotou, também, a postura de Jaspers quanto à importância da ciência para a compreensão da filosofia: 'para ter algum valor, uma filosofia deve se construir sobre amplos e sólidos fundamentos de conhecimentos não especificamente filosóficos' (Reale-Antiseri in 'História da Filosofia', III, p. 645).
No que tem razão. Mas, antes mesmo de outras considerações sobre alguns pontos da filosofia de Russell, lembro que o tempo transcorrido entre os primeiros pensamentos, de um mundo limitado no conhecimento, na evolução das ciências e o mesmo da tecnologia, influiu, como não poderia deixar de ser, nos pensamentos posteriores, especialmente no contemporâneo onde o mundo se alarga em todos os sentidos. Exemplo: o atomismo de Demócrito não é o mesmo de Russell que assim o descreve: 'A razão por que chamo minha doutrina de atomismo lógico é que os átomos aos quais desejo chegar como resíduos últimos da análise são átomos lógicos e não átomos físicos'.
O enfoque dado ao átomo, pois, diverge em muito do dado pelos atomistas, já mencionados neste livro. E mesmo dos átomos da ciência nuclear.
Bertrand Russell é autor de uma interessante página (entre tantas) sobre o conceito da vida e do mundo. Diz ele:
“Os conceitos da vida e do mundo que chamamos 'filosóficos' são produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar 'científica', empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.
'Filosofia' é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura? Tais questões não encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses problemas, constitui o empenho da filosofia”. (In Russell, B., 1977: 'História do Pensamento Ocidental', Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional).
A primeira pergunta que ele faz é: 'Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria?'
Creio que, sob o ponto de vista prático, essa é uma pergunta ociosa porque, qualquer que fosse a resposta, não haveria conclusão. A minha razão me indica que o mundo é matéria, pois não creio, como já afirmei, na existência de espírito ou de algo além da física. Mas os espíritos existem para todos que neles acreditam, de tal modo que, verdadeiramente, não há divisão, mas uma composição de idéias que faz com que o mundo caminhe em ambos os lados. Se ousasse afirmar - como verdade -, essa divisão, escolhendo uma das hipóteses, estaria dizendo que a verdade universal existe. Ora, só existiria uma verdade universal se houvesse verdades absolutas. Acontece que, a simples dúvida, acima exposta, demonstra que ela, a verdade, não passa de uma quimera.
A segunda questão proposta é: 'que é espírito e que é matéria?”
A minha resposta poderia ser a mesma, conseqüente à primeira questão. Mas acrescento que espírito, na concepção geral daqueles que nele crêem, é um ser metafísico e, portanto, inexistente, pois tudo que existe está ao alcance de nossos sentidos e faculdades. Mas não nos sentidos e faculdades de alguns que se denominam videntes ou os ora chamados de paranormais, como se houvessem pessoas privilegiadas que pudessem ver o que os outros ou a maioria não vê.
Vou repetir um exemplo: desde a década de 40, logo após o fim da segunda guerra mundial, 'apareceram', nos ares, objetos não identificados, levando as pessoas a uma histeria quase geral. Uns vendo, outros entrando em contato com 'seres de outros planetas , outros chegando a fazer viagens espaciais nos chamados 'discos voadores'. Como explicar esse fenômeno, senão na capacidade de absorção, por parte de algumas ou várias pessoas, de um suposto fato formador de uma corrente de sugestões? Ora, se existissem tais objetos, todos teriam a capacidade de vê-los, pois é assente que se tratariam de coisas palpáveis (matéria), e não de espíritos, pois isso é lógico, não havendo qualquer dúvida a esse respeito.
Assim é com os espíritos: são vistos (e 'comprovada') a sua existência através de demonstrações 'mediúnicas', mas que só algumas pessoas 'especiais' podem ter acesso. Eu não tenho, não sou especial, e poderia freqüentar quantas 'sessões espíritas' quanto existirem que não me comunicaria com nenhum.
Portanto, o que leva o homem a alguma certeza ou não é o seu ponto de vista, seu 'fundamento psicológico', posso talvez acrescentar.
A terceira questão elaborada por Russell é: 'Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes?'
A questão sugere que Russell acredita, de fato, na existência do espírito. Se não, não a faria. Sendo assim, parece-me que essa é a sua verdade, impossibilitando-me de contrapô-la, seguindo meu caminho de duvidar dessa verdade.
'Possui o universo alguma unidade ou propósito?'
Em primeiro lugar, e isso eu já disse, não dou a menor importância ao universo, se visto isoladamente. O importante é a vida, pois sem vida ninguém chamaria universo desse nome ou de outro qualquer. Ele, simplesmente, não existiria, a não ser se alguma outra espécie, que não a humana, houvesse para contemplá-lo, nomeá-lo ou decifrá-lo. A minha conclusão é, pois, que o universo não tem propósito algum; e só teria se ele fosse criado, no que é difícil de acreditar. Entraríamos, novamente, na teoria criacionista, aceita, para ser sincero, pela maioria da humanidade e muito antes do próprio surgimento da filosofia e mesmo das primeiras religiões.
Afastada, para mim, a criação do universo, seres e coisas, não posso aceitar, também, um suposto propósito nessa imensidão do cosmo.
Para que o universo tivesse uma finalidade, teríamos, também, que descobrir qual seria ela ou, mesmo, já saberíamos, porque a realização dos propósitos é sempre mais clara. Mas, também, poderíamos entrar num emaranhado de suposições que, afinal, destruiriam todas as teorias sobre o próprio universo. Talvez teríamos que voltar à filosofia jônica e começar tudo de novo.
Precisamos acreditar que nem tudo que existe tem uma finalidade predeterminada. Os fins atendem às necessidades ou aos interesses, cabendo ao homem, e só a ele, atender às suas necessidades e interesses, dando um fim ao que existe e ao que ele descobre. Não é o universo que tem propósitos, mas o homem.
'Que unidade poderia o universo ter?'
Unidade afasta a composição e o universo é um composto de seres e coisas, de tal modo que unidade não pode haver. O Ser uno não existe.
Se 'está ele evoluindo rumo a alguma finalidade?'
O universo não está evoluindo nem ruma para alguma finalidade. Tolice. O homem é o senhor do mundo, e poderá fazer dele do bom e do mau, estando mais próximo deste do que daquele. Mas esse mundo de que ora falo é o nosso mundo, o Planeta Terra. Já o universo segue seu caminho eterno, sem finalidade a não a que o homem lhe destinar. O universo é feito de coisas e coisas não têm inteligência para lhes dar propósitos.
Como eu disse linhas atrás, a acreditar em algum propósito do universo, teríamos que acreditar num feitor do mundo. Mas isso é um problema de crença e não de filosofia ou de ciência.
'Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem?'
Sem pesquisar, ainda, essa questão, digo que 'leis da natureza' não passa de designação para o que ocorre, naturalmente, no mundo que, aliás, nessa condição, é regido por várias espécies de leis, como a da gravidade e da relatividade, e tantas outras 'leis naturais' ou outras descobertas humanas, tal como a lâmpada, o rádio e todas as formas de comunicação, onde as ondas magnéticas têm as 'suas leis'.
Mas o universo não cria leis; ele se rege pelas causas e efeitos naturais, que não podem, com rigor, serem chamados de leis. Assim entendidas, são determinantes, mas não podem ser aplicadas sem as distinções devidas. O universo obedece às causas naturais, com distinções definidas: o terremoto que assola certas regiões, não acontece em outras, por exemplo.
Esse fenômeno poderia ser chamado de lei ou decorrente de uma lei? Claro que não. A lei natural não passa de denominação.
Mas, acreditando nelas ou não, não concordo que exista, entre nós, um amor inato pela ordem. Isso é coisa de Tomás de Aquino ou de Thomas Hobbes, uma ingenuidade que não resiste à razão nem à realidade. Se tal fosse, nem precisaríamos de leis ou de tribunais. Viveríamos no mundo natural, no jusnaturalismo passado. O próprio Estado não teria razão de ser.
O homem, ao contrário de São Tomás de Aquino, é guerreiro por natureza e a ordem só tem sido obtida, quando muito, pela ação coercitiva do Estado, e não por vontade própria ou muito menos por amor.
Sétima questão: 'É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância?'
O homem não é o que parece ao astrônomo, minúsculo, impotente e rastejante num pequeno planeta sem importância. Ele dirige seu destino da maneira de seu livre arbítrio, mesmo que relativo; portanto, ele não se rasteja, mas pensa, raciocina, anda, fala e pratica todos os atos que lhe são próprios, independentemente de um destino prefixado. E é tão potente que consegue modificar a própria natureza, seja para o bem ou para o mal.
Quando nós olhamos para uma formiga, ela nos parece aquele mesmo ser descrito por Bertrand Russell, a rastejar impotente. Mas quanta potência têm as formigas!
'Ou é ele o que parece ser a Hamlet?', continua.
Não se pode atribuir ao homem, genericamente, a indecisão e a melancolia de Hamlet. Se tal ocorresse, seria uma catástrofe para ele e para o mundo, pois se ainda o homem vive, depois de milhares de anos, é por causa de sua capacidade de ações e de decisões. Há homens fracos, indecisos e melancólicos, mas não são esses que comandam o mundo.
'Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis?', prossegue Russell.
O ser humano, em sua generalidade, possui diversas maneiras de encarar a vida: boa ou má, nobre ou vil. Mas não podemos dizer, com certeza, que sua vida seja inútil em razão de que possui a capacidade de torná-la útil. Exemplo é o próprio filósofo Bertrand Russell que, com sua erudição, tem coroado diversas mentes com lições memoráveis. Jamais poderemos dizer que sua vida é ou fora inútil.
Aliás, considero Russell, além de historiador, um grande filósofo.
Prosseguindo com suas dúvidas: 'Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo?'
Sócrates e Kant, entre tantos, foram exemplos desse modo de vida nobre que, penso, estar se referindo Russell.
Muito se fala em nobreza, mas aquela a que mais nos referimos é a nobreza oriunda da posição social familiar. Essa, que está em declínio (embora não tenha terminado), jamais poderia tomar o assento da nobreza do caráter de um ser humano. A vida, pois, tanto pode ser nobre como não, mas isso não impede a sua importância, desde que passou a se integrar à realidade.
Poderia não haver vida e não haveria, certamente, ninguém para avaliar se o homem é importante ou não. Mas, se existe, não sabemos como, deve ser avaliada em todos os seus sentidos, pois todos os seus sentidos caminham com ela.
'Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte?'.
Tanto o bem como o mal terão a mesma eternidade do homem. Só que o homem pode não ser eterno, embora o universo o seja. De modo que o homem pode caminhar para a morte, mas o universo, certamente, jamais o fará. Assim como não nasceu, assim não morrerá, pois é infinito.
O grande problema do homem é procurar um sentido para a vida, quando ela não surgiu para ter sentido algum. Como pensa Jaspers, a existência é de cada um; portanto, que cada um dê fim à sua existência.
'Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura?'.
Sabedoria é aquilo que o homem assim considera. 'Só sei que nada sei', disse Sócrates, retratando bem o que seja sabedoria. A sabedoria como suposto refinamento da loucura não me parece adequada ou colocada, porque isso é um desvio e não uma rota normal do homem.
Quando estudamos, filosoficamente, o homem e a vida, devemos nos limitar, quanto possível for, ao homem e à vida dentro de sua normalidade. Os desvios ficam por conta da ciência.