- Cipó? – costumavam brincar seus amigos na Marambaia.
- Late! – respondia de pronto Cipolatti, completando o trocadilho.
Reginaldo Orestes Lima Cipolatti era, antes de tudo, um utopista. Artista até a medula dos ossos, era um sujeito muito inteligente e bem-humorado. Um daqueles tipos que a gente nunca mais vai esquecer na vida. Foi com muita tristeza que vi as Parcas levarem Cipolatti no mês de maio passado, traído por seu coração em frangalhos.
Conheci o gaúcho Cipolatti no Campo de Provas da Marambaia (CPrM), organização militar para onde fui designado, em fevereiro de 1972, logo após fazer o curso de sargentos (especialidade “Fotocinegrafista”) na Escola de Comunicações, do Rio de Janeiro. Fui designado para trabalhar na Marambaia como fotógrafo, para fazer as fotografias (e, eventualmente, algumas filmagens) necessárias para a elaboração dos Retex (Relatórios Técnicos Experimentais) do Campo. Pela legislação brasileira, todas as armas e munições, de qualquer espécie e tamanho, para serem comercializadas no Brasil, mesmo as importadas, e aquelas destinadas à exportação, devem passar pelos testes do CPrM.
Ex-seminarista como eu (e também como Juscelino e Stalin...), Cipolatti, quando o conheci, era subtenente enfermeiro do CPrM. Mas não era apenas essa a sua atividade. Artista dos sete instrumentos, nos tempos vagos, ele escrevia novelas, alguns trabalhos sobre maçonaria, tinha um laboratório fotográfico em casa e dirigia um grupo teatral. E ainda tinha tempo para ler livros de psicologia e de teatro, e estudar o Esperanto. Haja fôlego! Cipolatti publicou alguns livros sobre maçonaria, que podem ser encomendados nos seguintes sites: Livraria Maçônica Paulo Fuchs http://www.livrariamaconica.com.br/Livros/Outros_Livros_M1.htm e
A Gazeta Maçônica http://www.agazetamaconica.com/ProductDetails.aspx?productID=102.
Antes mesmo de conhecer Cipolatti mais de perto, alguns colegas “davam a ficha”. Diziam que ele era conhecido como “beijoqueiro”. É que, segundo os fofoqueiros fardados, logo depois que se casou em segundas núpcias, com uma mulher uns 25 anos mais nova, Cipolatti costumava engrenar um beijo no início da ponte que dá acesso à Marambaia e só desgrudava quando já estava em “terra firme”. Contavam também que, de certa feita, Cipolatti foi convidado a se retirar de um restaurante de Campo Grande, no Rio, porque se comportava como dois pombinhos com a mulher, colocando diretamente a comida na boca da amada com o próprio bico...
Como na época eu era “lambe-lambe”, assim como Cipolatti, rapidamente passamos a nos entender muito bem, criando uma amizade sólida. Como eu estudava Economia na época, e ele era formado em teatro, havia mais assuntos em comum entre nós do que com outros sargentos, a maioria só pensando e falando em mulher e sacanagem. Não que a gente também não gostasse de sacanagem... é que tudo depois de certo ponto enche. A colaboração e a admiração entre nós passaram a ser mútuas.
Soube pelo Cipolatti que ele era formado em Artes Dramáticas, da mesma turma que Lutero Luiz (o Fandango da minissérie “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, apresentada pela TV Globo) e Rogério Fróes (o Velho Gui de “Prova de Amor”, recente novela de sucesso da TV Record). Uma vez, ao saber que Fróes estava filmando na cidade cenográfica da Globo perto da Marambaia, Cipolatti me levou para me apresentar ao ator gaúcho.
Certa vez, Cipolatti me pediu para que eu fizesse umas fotografias de uma peça teatral que ele estava apresentando no Clube dos Subtenentes da Vila Militar, à noite, num sábado. Não me lembro do nome da peça, porém o que me chamou a atenção foi ver, com os próprios olhos, como o Cipolatti conseguia dirigir o elenco, em que havia de tudo um pouco, como “bichas” e meninas “levadas”, uma algazarra total. Era uma zona o ensaio e a movimentação daquela turma, mas quando a peça iniciava, tudo fluía tão bem que a gente nem acreditava. Fiz algumas fotos da peça e, entre um ato e outro, travei conversa com uma bela morena, de origem baiana, com quem tive um breve namoro. Ah! Até hoje não consegui entender “o que é que a baiana tem”, inesquecível!
Quando cheguei na Marambaia, a novidade era o Sisram – Sistema de Rastreamento de Mísseis -, que consistia em várias edificações modernas, recém-construídas, com radares e computadores, para rastreamento dos foguetes cujos testes iriam iniciar logo depois. O primeiro foguete lançado foi o X-20, de alcance aproximado de 20 km. Nosso “Cabo Areal” tomava jeito de Cabo Canaveral: madrugada a dentro, o meu compadre sargento Matos, servindo no Campo, e alguns sargentos da Aeronáutica, meteorologistas da Base Aérea do Galeão, colocavam balões no ar, para medir a pressão e a velocidade e direção do vento, engenheiros do IME andavam lépidos de um lado para outro para preparar a primeira subida do foguete. Muitas vezes, os lançamentos eram abortados na última hora, por problemas técnicos ou porque alguma traineira fora vista na região de impacto do foguete, sempre previsto para cair no mar. O Aviso aos Navegantes noticiava o lançamento, proibindo a navegação numa certa área, porém muitas vezes havia barcos que não tinham tomado conhecimento e se expunham a serem atingidos.
Certo dia, o Campo se preparou para a visita do Ministro do Exército, Dale Coutinho, um tampinha de gente, que usava salto e sola bastante altos para compensar a baixa estatura. Eu, como ocorria nesses tipos de solenidades, estava a postos, com um jipe e aparelhagem fotográfica, para cobrir todo o evento, desde a chegada do chefe militar, no Corpo da Guarda, junto à bela ponte de arcos que dá acesso à Marambaia, até as instalações do Sisram e demais dependências. Eu iria fazer as fotos coloridas. O Cipolatti se prontificou para bater as fotos para slides. A guarda de honra já estava formada em frente à administração do quartel, para apresentação ao Sr. Ministro, porém o comandante da Companhia de Vigilância estava cada vez mais nervoso: alguns soldados e sargentos estavam em forma sem armamento! Mas por que isso ocorrera?
É que o Cipolatti, para apresentação de sua peça Todo Sangue é Igual, um drama que remontava à II Guerra Mundial, havia conseguido, depois de muita lábia com o coronel diretor do Campo, emprestar algumas armas para a encenação. E até aquela hora, um pouco antes da chegada do Ministro, ainda não havia aparecido no quartel... Várias vezes o diretor me perguntou pelo Cipolatti, até que a Vemaguet dele apareceu fumegando e fazendo barulho na esquina. Rapidamente eu parei o carro do Cipolatti e pedi que ele desse uma ré até um beco, para descarregar as armas (fuzis antigos e metralhadoras INA) no jipe e levar à guarda de honra, longe dos olhos do general que aguardava com o diretor a chegada do Ministro. Ah! Como era bom aquele tempo, os famosos “anos de chumbo”, em que se podia levar armas tranqüilamente para o teatro, sem que algum Comando Vermelho botasse as mãos nelas... Se fosse hoje, antes de Cipolatti iniciar o II ato, os bandidos já teriam rendido o auditório todo e levado as armas, as bolsas e as carteiras de todos. Ah! Como éramos felizes e não sabíamos...
E assim, o Cipolatti e eu começamos os trabalhos fotográficos, cobrindo a visita do Ministro ao CPrM: guarda de honra, visita ao prédio principal do Sisram, com seu enorme radar, computadores e plotters, visita às várias linhas de tiro do Campo, à casa balística e aos prédios secundários do Sisram, além da base de lançamento, junto às areias da praia. Depois de passar por várias instalações, eu vi o Cipolatti, na Linha de Tiro nº 1, batendo uma série de fotografias de um general que não era o Ministro. Perguntei se aquele general era algum chapa dele e ele me disse que era o Ministro! Tomando conhecimento do engano, o Cipolatti começou a bater fotos do Ministro de todos os ângulos, não se importando em praticamente se deitar para enquadrar melhor o chefe, nada mais escapava do foco do Cipolatti. Depois do trabalho, o Cipolatti me disse que num prédio secundário do Sisram, onde havia uma grande antena giratória, ele acompanhou o Ministro ao banheiro, sem querer, pois não conhecia ainda a nova instalação, e o general olhou daquele jeito que não deixa dúvidas, embora não tenha pronunciado nenhuma palavra: “Por favor, aqui não!”
Esse era o Cipolatti. Um sujeito um tanto avoado, porém um grande camarada, um amigo para todas as horas.
Uma vez por mês, havia um almoço “melhorado”, tanto para os oficiais, quanto para os subtenentes e sargentos. Era para lembrar os aniversariantes do mês, que recebiam presentes, normalmente uma pasta 007. Nessas ocasiões, Cipolatti declamava poesias, recitava trechos teatrais, era um verdadeiro artista que não se envergonhava de deitar no chão do refeitório para valorizar a cena. Cipolatti “era o cara!”
Alguns companheiros de farda me alertavam para não “dar uma de Cipolatti”, ou seja, não me comportar como ele, que era um “artista”, a quem os superiores de certa forma “passavam a mão” para pequenas faltas disciplinares, como usar eventualmente meias vermelhas ou andar no pátio sem o “bibico”, a cobertura obrigatória do militar para um tipo de uniforme de passeio. Ou seja, Cipolatti era um sujeito de quem não se cobrava com rigor os regulamentos militares e o mesmo não se aplicava aos outros companheiros de farda. Parece incrível, mas isto existia e, com certeza, ainda existe hoje em dia em alguns quartéis. Louco e artista, no quartel, têm algumas regalias...
Cipolatti tinha histórias incríveis para contar. Eram tão formidáveis que ninguém se importava se os “causos” passavam ou não do limiar da ficção.
Cipolatti uma vez me contou sobre sua odisséia em Fernando de Noronha, quando foi mandado para servir no local, na época em que o arquipélago era comandado por um oficial do Exército. Sargento novo, recém-casado, Cipolatti se viu em má situação quando o seu comandante, solteiro na ilha, estava de olho em sua mulher. A solução foi o Cipolatti trancar sua jovem esposa, à chave, dentro de casa, toda vez que saía para trabalhar... Certo dia, o oficial comandante deu uma ordem para Cipolatti cumprir com todo rigor, que era exterminar todos os ratos da ilha. Como se sabe, todo militar deve cumprir ordens, desde que não sejam absurdas. Porém, para que a ordem seja cumprida com perfeição, o superior deve fornecer ao subordinado todos os meios necessários à execução do serviço. Cipolatti então elaborou uma longa lista necessária para fulminar os ratos fernando-noronhos: além da compra de um certo número de gatos de uma raça da qual não me recordo, exigiu também que fossem adquiridos botas especiais de couro, luvas, raticidas e um grande número de outros objetos necessários ao “bom cumprimento da missão”. Como não havia dinheiro disponível para a compra, os ratos salvaram-se do genocídio que viria...
Certa vez, o hospital do Exército em Porto Alegre estava esperando uma autoridade militar. Como costuma acontecer nessas ocasiões, tudo é feito para ludibriar o chefe: os meios-fios das ruas são pintados com cal, “cuecas” são colocadas nas árvores (hoje é proibido pelo Ibama pintar os troncos com cal), a grama é aparada, as instalações são pintadas, o refeitório dos cabos e soldados recebe uma lavagem inédita e a comida do dia é melhorada... Enquanto a maioria dos militares, médicos e enfermeiros, ficavam praticamente de braços cruzados, cumprindo ordens superiores, sem fazer nada, senão esperar o chefe e fazer a apresentação, declinando o posto e a função, o enfermeiro Cipolatti aproveitou o tempo ocioso para extrair umas verrugas da glande de um soldado. E no exato momento em que Cipolatti fazia a cauterização, não é que aparece na enfermaria o chefe militar, que vê o enfermeiro Cipó segurando a “espada” do reco? Por favor, não me exijam o nome de pelo menos duas testemunhas do caso...
Como já se disse, Cipolatti era um artista dos sete instrumentos. E gostava de colocar os outros também para dançar. Certa vez, ele me trouxe um formulário para eu me associar à Maçonaria. Como sempre vi esse negócio de maçon como uma coisa um tanto misteriosa, agradeci o convite. Mais tarde, em Brasília, outro companheiro de farda também me fez o mesmo convite, novamente recusado.
Além de maçon, Cipolatti estudava Esperanto. E queria porque queria que eu também aprendesse. Até me deu de presente um pequeno dicionário que guardo até hoje. Agradeci o presente, mas não me interessei em estudar a língua criada pelo Sr. Ludwik Zamenhof, porque na época eu já achava que o Inglês me seria muito mais útil. E tinha razão: mais tarde, depois de fazer um intensivão de Inglês por conta própria, passei num teste que me fez ficar apto para cumprir missão no exterior, no Egito, durante dois anos. Com internet ou sem internet, o Inglês é hoje o Esperanto que deu certo.
Por falar em Esperanto, num certo dia do ano de 1975, Cipolatti me disse mais ou menos isso: “Nós vamos fazer um filme em Esperanto. Você mais ser meu cameraman”. Inicialmente, achei que Cipolatti estava delirando. Como é que ele iria convidar para fazer a fotografia de um filme um sujeito que não tinha nenhuma experiência no assunto? E como arranjar o dinheiro suficiente para arcar com os custos de uma produção cinematográfica, que sempre são altos?
Cipolatti então começou a esclarecer o assunto: a produção do longa-metragem em cores, de 16 mm, A Sexta Raça, seria feita pela Cooperativa Cultural dos Esperantistas, sediada na Av. 13 de Maio, no Rio de Janeiro, então presidida pelo Sr. Braz Cosenza. O filme, a ser lançado durante o XI Seminário Brasileiro de Esperanto, em Brasília, no período de 15 a 18 de julho de 1976, seria todo falado em Esperanto. Projeções simultâneas do filme seriam feitas no Rio e em Atenas, no mesmo período.
Cipolatti me provou que não estava para brincadeiras e me mostrou o enredo do filme, já em adiantado estado de composição, e desenhos com pessoas vestindo roupas espaciais, à semelhança dos atores de Jornada nas Estrelas. Um folheto que Cipolatti posteriormente mandou imprimir a respeito do filme trazia o seguinte resumo:
“O filme, intitulado ‘A Sexta Raça’ (La Sesa Raso), apresenta a Terra em tão elevado grau de evolução que, graças à mente humana, associada à avançadíssima tecnologia da época, alguns cientistas conseguem materializar e, assim reviver, pessoas que (em nossa época) se haviam suicidado – e, por isso, apareciam pairando no espaço cósmico como enigmáticos pontos verdes, estacionados na evolução universal. Revive-se, assim, um ser disforme, um ‘Monstro’ que transmite todos os seus poderes misteriosos a uma estranha mulher, Ester, a quem nem o próprio esposo, Mário, compreende. Ester apaixona-se, então, por Alexandre, um escritor que pesquisa a vida dos humildes pescadores da região (Camocim, Ceará) em que se desenrola a estória ligada ao ‘Monstro’, o qual, por ignorância, a supersticiosa população do local deseja eliminar”.
Quando me certifiquei que Cipolatti havia convencido o velho Cosenza a realizar o filme, comecei a pensar como iria resolver o problema da filmagem. Então fui perguntar a quem sabia fazer filmes, se podia me ajudar na empreitada. O salvador da pátria foi o subtenente Raul Abbot, monitor do curso de Cinegrafista que eu havia feito na Escola de Comunicações. Abbot trabalhava então no Serviço Cinefotográfico do Exército, localizado no Palácio Duque de Caxias, antigo Ministério do Exército, no Rio de Janeiro, e tinha feito vários filmes de 16 mm, alguns deles premiados. Desconfiado no início, achando que a coisa não era séria, Abbot enfim prontificou-se a me ajudar a filmar A Sexta Raça, quando trocamos muitas sugestões e dividimos todo o trabalho de câmara.
A ficha técnica de La Sesa Raso era a seguinte:
PRODUKTANTO: KULTURA KOOPERATIVO DE ESPERANTISTOJ
TEKNIKA DIRETORO: APOLONIO KAY WALMIR
HELPDIREKTORO: MÁRIO POLIMENO
FOTO-ARTO: FÉLIX MAIER KAJ RAUL ABBOT
VESTMODELOJ KAJ KARAKTERIZOJ: LÚCIA CIPOLATTI
KARAKTERIZ-PRODUKTOJ: HELENA RUBINSTEIN
MUZIKA TEMO: ANDRÉ LUIZ
AUTORO KAJ DIRECTORO: REGINALDO CIPOLATTI
TRADUKO: BRAZ COSENZA KAJ CEDILHA NETO
CEFAJ AKTOROJ: ROLCI KAJ AIENNICLOR
PARTOPRENANTOJ: A. Fausto, André, Jacaré, Nino, Naldo, Neuza, Lúcia, Geni, Nevinha, Fernando, Karnauba, Quevedo, Ana, Paulo, Apolônio, Lihagba, Meira, M.A.J. Neto, Alexandre, Ivonete, Walmir, Marcos,Ligia, Adonai, Afonso, Jane, Scheila, Jair, Célio, Telma, Cosenza, Paulo, Doglima, Wolmar, Rosana, Cedilha, Hilda, Neves, Maira, Cyro, Pandiá, Chico, Elmano, Alan, C. Fernando.
Não é preciso traduzir a ficha técnica, é facilmente compreensível, apenas dizer que “cefaj aktoroj” significa “atores principais” e “partoprenantoj”, “os participantes”, o elenco em geral. A Sexta Raça era, antes de tudo, um filme em família. Os atores principais eram os filhos mais velhos de Cipolatti, Rolci e Rolcinnéia (Aienniclor, nome invertido). Outro filho de Cipolatti, o pianista André Luiz, compôs o tema romântico do filme. E a esposa em segundas núpcias, Lúcia, era a responsável pela roupa e adereços. Todos os atores, muitos deles integrantes da equipe de teatro do Cipolatti, prontificaram-se a trabalhar inicialmente de graça, para receber alguma coisa mais tarde, quando o filme rendesse algum dinheiro. Eu me prontifiquei a trabalhar porque iria colocar em prática o que apenas sabia em teoria, e a companhia de Abbot e seu trabalho era muito mais do que uma simples aula prática.
O filme, como todos podem depreender, era uma ficção científica. Para que o cenário futurista tivesse alguma credibilidade, Cipolatti conseguiu do coronel diretor do Campo autorização para fazer tomadas do novo sistema de lançamento de mísseis – o tal Sisram -, com painel de controle, monitores, plotters etc. Quem “na vida real” operava toda aquela parafernália era o tenente Quevedo, com estágio na França, na Thompson, prontamente contratado pelo Cipolatti para participar do filme. E Quevedo não se fez de rogado: aparou as sobrancelhas, para ficar parecido com o Spock de Jornada nas Estrelas, e encarnou o personagem para valer.
E assim fomos tocando o filme, as tomadas iniciais eram feitas pelo Abbot e por mim, e depois, da metade para o final, praticamente eu fiz todas as tomadas sozinho. Havia cenas românticas filmadas debaixo de casuarinas, na sombra, quando era necessário o uso de rebatedores de luz, para não escurecer muito a cena e não “chapar” o fundo. O sargento Apolônio fazia o papel de “Monstro”, usando uma máscara de borracha que nas quentes praias da Marambaia deveria quase queimar seu rosto. Cenas da atriz principal com o amante foram feitas na casa de um sargento que morava na vila militar do Campo. O povaréu que corria atrás do “Monstro”, para tentar matá-lo, era composto por moradores locais, tanto da Marambaia, quanto de Barra de Guaratiba.
Havia horas em que as tomadas complicavam um pouco. Era quando havia necessidade de se fazer efeitos especiais, como o aparecimento e o desaparecimento de um personagem, exatamente como no teletransporte visto em Jornada nas Estrelas. Sem nenhum tipo de aparelhagem para isso, o único instrumento que dispúnhamos era a própria câmara filmadora. Hoje, com o uso da informática, consegue-se fazer qualquer coisa e um pouco mais. Na época, as cenas de efeitos especiais eram sempre internas, com pouca luz, para mais facilmente fazer o fade in ou fade off do personagem. Funcionava razoavelmente. Planetas e asteróides eram filmados utilizando-se pedras e corais. Havia ocasiões em que fazíamos a fusão de três imagens no mesmo pedaço de filme, gravando três cenas diferentes, para dar um efeito etéreo, entre as nuvens. Nesses casos, fazíamos marcação do contador do filme, em pés, se não me engano, do início da tomada até o final.
Certa noite, filmamos o prédio principal do Sisram, que tinha um enorme radar fixo no teto. Como era bastante escuro e as luzes pouco iluminavam o prédio, pensei em filmar a cena três vezes, no mesmo pedaço de filme, de modo que a luz fosse mais intensamente absorvida pelo filme. O Cipolatti me sugeriu que a gente filmasse o trecho do filme, tanto para a frente, como para trás, “para ganhar tempo”. Eu disse a ele que não sabia se na volta o filme seria corretamente impresso, devido ao sistema de obturação, eu nunca tinha ouvido falar de tal operação. Mas, não custava tentar, qualquer problema, repetiríamos a filmagem depois. Quando era feito o “copião” na moviola, o editor Ronald Henze, proprietário do laboratório, queria saber como tínhamos conseguido aquela estupenda filmagem, em que o prédio aparecia bastante nítido e as luzes, em vez de ficarem fixas, oscilavam alternadamente de cima para baixo e de baixo para cima, como se fosse um estranho balé. O Cipolatti preferiu não dizer que truque era aquele e, provavelmente, até hoje Herr Henze, um alemão radicado no Brasil, deve se perguntar como aquilo havia sido feito...
Para uma melhor caracterização das residências dos pescadores, algumas tomadas foram feitas em Deodoro, subúrbio do Rio, onde havia algumas casas antigas, com a pintura já apagada pelo sol. Em Ilha de Guaratiba, onde foi montado um palanque para comício político, com uma faixa “Popolo de Kamocim”, também foram feitas cenas dentro da igrejinha local. Certo dia, o “padre” faltou às filmagens e sabem quem foi escalado para rezar a missa? Eu... afinal, pra que fui seminarista? Na ocasião, Cipolatti pilotou a câmara.
Como já foi dito, Cipolatti era bom de lábia. Conseguiu permissão do paisagista Burle Marx para que fizéssemos algumas tomadas dentro de seu sítio em Barra de Guaratiba, cerca de 9 km da Restinga da Marambaia. As tomadas foram feitas na subida do morro, depois da casa e da capela do artista. Era uma cena romântica entre os atores principais e Cipolatti não teve dúvidas: apanhou uma flor do sítio e entregou ao ator, para doá-la à amada durante a filmagem. Foi quando ouvimos impropérios vindos de baixo, era o próprio Burle Marx, furibundo com o abuso cometido, dando ordens para que deixássemos imediatamente o local. Mas Cipolatti não se estressava nunca. Com a conversa convincente de sempre, conseguiu acalmar o paisagista e os trabalhos continuaram...
Bom, para apimentar um pouco o filme, Cipolatti resolveu mostrar uma mulher tomando banho no mar, ocasião em que uma onda fazia o biquíni cair e deixar os seios à mostra. Foi difícil convencer Geni a fazer a cena. Somente quando um dos atores, um amigo da atriz, foi comigo e com Cipolatti a um trecho bem distante da praia da Marambaia, é que a cena pôde ser feita. A atriz se sentia mais segura com a companhia de um “bichinha”...
Durante as filmagens, apareceram alguns artistas para acompanhar o trabalho, como o cineasta Ipojuca Pontes e o escritor Roberto das Neves, proprietário da Editora Germinal. Posteriormente, Cipolatti foi convidado por Ipojuca para participar do filme A Volta do Filho Pródigo, estrelado por Tereza Rachel, então mulher de Ipojuca. Boa parte das cenas foram feitas na cidade histórica de Alcântara, Maranhão, onde há inúmeras casas em estilo lusitano antigo. Cipolatti me convidou para viajar a Alcântara, para participar do filme como figurante, mas disse a ele que A Sexta Raça estava de bom tamanho para mim... Cipolatti conseguiu – com a lábia de sempre! – acomodações e alimentação para toda a equipe junto ao prefeito de Alcântara, pois o filme faria os devidos créditos à cidade, e era para ser o assistente de direção daquele filme. Porém, Ipojuca não cumpriu o prometido, cedendo o lugar para um garotão. Contudo, Cipolatti participou do filme, numa cena hilária, em que o bodegueiro do filme serve cachaça a vários cabras e, depois, faz retornar à garrafa a cachaça que havia sobrado nos copos dos pinguços...
E, finalmente, chegamos ao fim das filmagens. Foi quando aconteceu o pior. O Sr. Cosenza, presidente da Cooperativa esperantista, não conseguiu convencer seus conselheiros a levar o filme avante, ou seja, finalizar o trabalho, que no caso seria a parte mais custosa, por envolver laboratórios de montagem e dublagem, que costumam cobrar por hora, de preferência com dinheiro na hora, não esperar para quando o filme rendesse algum lucro – coisa que tanto eu quanto os atores de A Sexta Raça estamos esperando até hoje...
A única coisa concreta que sobrou do filme – além dos rolos atualmente perdidos em algum lugar na cidade de São Paulo, segundo o Cipolatti me disse certa vez – foi que ele gerou um filmete de uns 5 minutos, Poema, que participou de um Festival de Curta-Metragem promovido pelo Jornal do Brasil.
“Viva, viva!” Essa era a saudação predileta e indefectível de Cipolatti quando encontrava os amigos. E foi há uns 7 anos que ouvi pela última vez essa saudação, na casa de minha mãe, em Herval d’Oeste, SC. Na ocasião, Cipolatti havia retornado à região onde eu nasci, com sua terceira esposa, para rever a cidadezinha tirolesa de Treze Tílias, que se tornou famosa com a apresentação da novela “Ana Raio e Zé Trovão”.
É por isso tudo o que foi descrito acima que a memória de Cipolatti está viva, “Viva, viva”, na memória de seus amigos. Que o “Grande Arquiteto do Universo” o tenha em um lugar muito especial!