O vocábulo mito vem do grego mythos, equivale à fábula, composição de uma trama teatral, ou a discurso, no sentido de epos, criado pela imaginação, logo, a um discurso impossível de comprovação histórica. Suscetível de diversos níveis de significação, o mito pode dar idéia de complexidade, obscuridade e ambigüidade. Sua derivação também é bastante discutida, bem como as diversas teorias sobre ele.
Para teoria alegorista, o mito é a tradução intencional de uma idéia, a transformação em lendas de personagens e fatos que existiram e aconteceram. Para teoria simbolista, o mito constitui-se um símbolo, o quadro ou a estrutura em que a ação humana tem sentido com relação ao tempo, podendo ser falso do ponto de vista científico, ou verdadeiro se remetido ao imaginário, ao fantasioso ou sobrenatural.
Há ainda os que consideram o mito como uma influência ruim que ilude e que desperta paixões produtoras de cegueira mental. Mesmo assim, é inegável a existência de mitos em todas as sociedades, sejam eles de esquerda, ou de direita. Como diz Roland Barthes: “o mito é um valor: basta modificar o que o rodeia, o sistema geral no qual se insere para poder determinar com exatidão o seu alcance.”
Entretanto há mitos que não permitem aos menos atentos determinarem suas áreas de alcance, sejam eles oriundos da burguesia ou das classes menos favorecidas. A estes podemos considerar complexos e ambíguos, por se apresentarem ora de direita ora de esquerda. Embora, o próprio Barthes afirme não haver as mesmas características entre eles, uma vez que, o mito da direita penetra em todas as camadas e se apodera de seus valores morais, culturais, religiosos e políticos, ao passo que o mito da esquerda se apresenta “inábil para atingir o imenso campo das relações humanas”.
Mas ao considerar o poder de penetração dos mitos da direita nas massas, havemos de concordar que “mascarados” transitam livremente nos dois lados, e que numa atitude ambígua usam os discursos dos revolucionários e a ação dos reacionários alternadamente conforme lhes for conveniente.
Para exemplificar, buscamos na história política alguns nomes de “representantes do povo” que jamais deixaram vagos seus espaços de privilégios, como Evita e Perón na Argentina, e Getúlio Vargas no Brasil. Ambos frequentaram os fascistas, acolheram os nazistas, conclamaram multidões e eternizaram-se entre a classe trabalhadora, porém vivendo como burgueses, conquistaram os pobres com o discurso opulento da direita.
Getúlio Vargas, o governante brasileiro que por maior número de anos se manteve no poder, tendo sido seu governo marcado pela intervenção do Estado na organização da sociedade e pelo autoritarismo. O mito de Vargas se fez pelo populismo, apesar de ter sido um ditador, por se empenhar em equilibrar forças ao atender as reivindicações das oligarquias rurais, garantir direitos aos trabalhadores, mesmo reprimindo os movimentos sociais, e por atender aos interesses dos militares revoltados.
Nos dois casos, o argentino e o brasileiro, podemos considerar que se tratam de mythos, ou trama teatral, montados pela classe dominadora para se manter no poder. No caso específico de Vargas, o mito é contraditório e despertador de paixões. Deseduca quando não permite que o povo pense e decida por si próprio seus rumos. A teoria alegorista considera esse tipo de mito, agora aplicando também ao caso argentino, como a tradução intencional de uma idéia: Evita e Vargas, uma idéia da direita manipulando as massas que, pela condição excludente, se situam nos blocos de interesse dos discursos construídos pela esquerda.
Há ainda mitos que nasceram na esquerda, mas foram acolhidos e aclamados pela mídia direitista por motivos que carecem de uma análise mais rigorosa sobre os fatores que provocaram tal fenômeno. Eis o caso de Chico Mendes, transformado pela imprensa em símbolo de luta pela defesa da natureza; e pela indústria cinematográfica, em “Mártir Universal,” na medida em que a sua Amazônia e sua biodiversidade, digamos riquezas, interessam ao mundo, e a sua preservação ao equilíbrio dos ecossistemas.
O Chico, o sindicalista, o homem comum vem, ao longo do tempo, afastando-se do logos, do fato verificável e passível de contestação, para se aproximar mais e mais do epos, mitificando-se no pós-morte quanto mais perde seus atributos humanos, redimido que foi pela morte carnal trágica.
Surgem, então, indagações: teria o Chico sido mitificado, se não tivesse recebido a ação da mídia que o colocou em foco para os organismos internacionais, “interessados” na causa, e que reforçaram a ação da imprensa, instaurando e reforçando, ao mesmo, os discursos do fato imaginado sobre “o homem que deu a vida em defesa da floresta”?
À luz da teoria simbolista, a história de Chico Mendes é a história de um homem que se tornou símbolo e divino ao morrer pela causa da natureza e da humanidade. Ao que perguntamos: o mito de Chico é falso ou verdadeiro? É mito de esquerda ou de direita?
Na ausência de uma resposta precisa, voltamos a Roland Barthes, não mais em busca de conceitos sobre mito, mas para a defesa que ele faz quanto à importância e a necessidade de mitólogos. Para o autor, a mitologia participa de um construir do mundo ... O que pode levar a desmistificação de seres sacralizados pela coletividade, ainda que isso possa fazer do mitólogo um “excluído da história, em nome de quem, precisamente, pretende agir”.