Prof. Dr. Luiz Carlos Assis Iasbeck
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Tornou-se padrão ao texto jornalístico brasileiro o uso dos verbos no presente do indicativo, independentemente do tempo em que ocorreu o fato reportado.
O assunto não é novidade nas gramáticas das línguas neo-latinas, notadamente do português falado em Portugal. É um recurso muito utilizado para dar ao passado ares de presentidade e ao futuro uma sensação de certeza no presente.
Quanto ao presente histórico, Luiz de Camões já o utilizara no episódio de Os Lusíadas em que fala do gigante Adamastor (Canto V, est. 37 de Os Lusíadas). Ele iniciou seus versos com verbos no pretérito, mas curiosamente colocou os dois últimos no presente, como que movido pelo desejo de que seus leitores se interessassem pelo inusitado da passagem seguinte:
'Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prósperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite estando descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.
Outro caso interessante, que nos remete também ao primeiro, é quando se emprega o tempo presente do verbo para indicar situação futura. Nesse caso, o presente do indicativo parece assegurar que não há dúvidas quanto ao fato de o acontecimento futuro ocorrer tal e qual é pensado aqui e agora. É utilizado principalmente quando há necessidade de se persuadir alguém de algo que acontecerá, como no caso de um executivo que pretende alcançar metas futuras em sua empresa e as apresenta como realizáveis, factíveis. Um executivo, Jeff Binder, presidente da Living Light Essences do Canadá, teorizando sobre o sistema de administração por metas em seu livro “Sistema de Cura”, alinha dentre as características de uma boa meta o enunciado com verbo no tempo presente:
Redija sempre uma meta como se ela de fato já estivesse ocorrendo. É melhor dizer 'estou gozando de ótima saúde física' do que 'pretendo melhorar desta gastrite' (apud
Há, ainda, o emprego do verbo do presente do indicativo para denotar tanto delicadeza e intimidade, quanto expressar rudeza e autoritarismo, ou seja, sentimentos extremados, casos que nos lembram os atos falhos de que Freud se ocupou em explicar no seu famigerado texto “Os Chistes e sua relação com o Inconsciente”. É o que acontece quando alguém diz “Você me passa isso amanhã”, (ao invés de “passe-me isto amanhã” ou “você me passará isso amanhã”) ou quando alguém anuncia “Quer me fazer uma favor?”, ao invés de “queira”. No primeiro caso, o pedido feito no presente do indicativo suaviza o desejo expresso pelo imperativo e antecipa o futuro, denotando ansiedade.
Dois respeitáveis gramáticos da língua portuguesa, Celso Cunha e Lindley Cintra, preferem considerar o presente histórico pelo seu valor afetivo. Segundo os autores, ao utilizarmos tais formas, nós não transportamos o passado para o presente, mas nos trasladamos para o passado e lá visualizamos, como se no presente estivéssemos, os fatos que descrevemos ou narramos. É nesse sentido que eles afirmam tratar-se de
(...) um processo de dramatização lingüística de alta eficiência, se utilizado de forma adequada e sóbria, pois que o seu valor expressivo decorre da aparente impropriedade, de ser acidental num contexto organizado com formas normais do pretérito. O abuso que dele fazem alguns romancistas contemporâneos é contraproducente: torna invariável o estilo e, com isso, elimina a sua intensidade particular (Cunha e Cintra, 2001:449-450)
O uso bem dosado desse recurso, torna-o mais evidente e proporciona o esperado tom dramático da reversibilidade mágica do tempo. Entretanto, como soe acontecer no usos exagerados de recursos sutis de linguagem, a repetição exaustiva faz perder a força expressiva que o justifica e sintomatiza outras questões altamente significativas, normalmente ligadas ao imaginário social e/ou pessoal.
Por isso, considerarmos tais possibilidades gramaticais apenas como recursos estilísticos (presente histórico ou presente narrativo) é pouco elucidativo para justificar a obsessão e a freqüência com que tais recursos têm sido utilizado nos meios de comunicação de massa, notadamente no rádio, na televisão, nos jornais e nas revistas semanais.
O Presente na Mídia
Tal tendência aguçou-se nas décadas 60/70, quando a televisão se popularizou no Brasil. A presença física da imagem animada – como signo do fato – cria a ilusão de presença real, adensada pelo sincronismo verbo-visual, como bem explica Arlindo Machado em seu livro A Televisão Levada a Sério. Ele nos lembra que
(...) nem tudo o que vai ao ar é transmitido ao vivo, mas a transmissão direta dá o modelo de produção para toda a programação da televisão. De fato, grande parte da programação televisual, mesmo daquela que é gravada previamente para posterior emissão, incorpora em sua matéria uma boa parte dos traços da trans missão ao vivo”(Machado, 2000:125-126)
Também o rádio, que desde o seu início notabilizou-se pela mobilidade e, conseqüentemente, pelas transmissões on-line, utiliza fartamente o presente histórico e as demais formas de antecipação do futuro ou refrescamento do passado para dar maior frescor às notícias. Ainda que não possa dispor dos recursos da visualidade, o rádio utiliza metáforas e toda a sorte de recursos estilísticos para ativar a imaginação do ouvinte.
A imaginação resulta da competência humana de tornar presentes imagens passadas ou projetá-las no futuro e atua sempre numa mesma temporalidade: o tempo da imagem. Quem nos diz isso é o filósofo e psicólogo francês Philippe Malrieu (1996). Ao analisar o imaginário a partir de temporalidades, o autor nos mostra que grande parte das representações imagéticas produzidas pela mente humana abolem ou indeterminam o passado e o futuro em função de uma situação contingencial presente, que ele prefere considerar como a origem dessas imagens .
O momento em que surge a imagem é sempre um momento presente, ainda que ela se reporte e nos transporte para o passado ou nos projete e nos remeta ao futuro. Essa fixação no presente talvez explique, de maneira imediata, a preferência pelo uso do presente do indicativo nos meios áudio-visuais em detrimento das formas pretéritas e futuras.
Gilbert Durand nos lembra que “imagem” é representação. Seja ela uma imagem visual, metafórica, gráfica, estilística, seja uma reminiscência ou uma ficção, ela sempre se coloca no lugar de algo que não é ela mesma, a não ser quando resulta de uma apreensão direta em contato com a realidade. Todos os outros são de apreensão indireta
Em todos estes casos de consciência indireta, o objeto ausente é re-presentado na consciência por uma imagem, no sentido muito lato do termo (Durand, 1995:7-8)
Não nos parece absurdo admitir que a imaginação produza em nós a sensação de presença da imagem, ao mesmo tempo em que evoca em nós uma certa nostalgia pela perda de sua referência última, o objeto que essa mesma imagem intenta representar. Durand admite que nos dois casos a imagem é signo, mas distingue entre os signos arbitrários, aqueles puramente indicativos e que, portanto, se remetem a algo fora deles , e os signos alegóricos que nos remetem a uma realidade significada e dificilmente identificável fora de si mesma.
O Presente como Ícone
O que Durand identifica no processo imaginativo corresponde aos dois níveis de representação do objeto pelo signo, aqueles que o filósofo estadunidense Charles Sanders Peirce – em sua Teoria Geral dos Signos – denominou índice e ícone. Ambos estão presentes no símbolo, um signo mais evoluído que, além de representar é reconhecido e assumido como representação categórica, habitual ou rotineira, capaz de gerar significados mais ou menos uniformes na mente de que os compartilha.
O ícone é um tipo de signo que nos traz imediatamente a sensação de presentidade, na medida em que não evidencia qualquer mediação entre ele (a representação) e o objeto ou fenômeno representado. Comumente associado às imagens, o ícone se torna presente toda vez que comparece num determinado contexto representativo. Sua integridade não causa nostalgia de objetos ou tempos perdidos e muito menos evoca algo além de sua própria presença. De certa forma, ele abole a história (e a memória), bem como torna desnecessária toda e qualquer ansiedade com o devir. O ícone se instala no tempo presente e toda vez que o presente é evocado, de certa forma, iconizam-se as representações, despregando-se das relações que mantêm com o tempo passado e o tempo futuro.
Assim, não é precipitado concluir que não há história no presente. Na mitologia grega, a figura mitológica de Clio (que simboliza a história) é filha de Zeus (a inteligência) com Mnemosine (a memória) e neta de Cronos (tempo). Zeus é o filho que Cronos (o tempo) não devorou e que destrói o pai, simbolizando a vitória da imortalidade (inteligência vence o tempo). O sonho humano de vencer o tempo alimenta todo um imaginário que se faz, refaz e desfaz na busca dessa imortalidade. O ícone realiza tal façanha ao apresentar-se com um tal vigor que o torna perceptível aos sentidos (percepção sensível), inquestionável enquanto existente e inapreensível fora dos efeitos que ele mesmo produz.
Por isso, o ícone – considerado por Peirce a mais pura forma de representação ou um signo degenerado – nos traz de maneira bastante convincente uma certa sensação de realidade. Essa sensação arrebatadora e inapreensível fora da apreensão direta combina perfeitamente com o tempo presente: não tem mobilidade, não ocupa espaço nem tempo, é o que é.
O Presente como Índíce
A tal sensação de “ausência de mídia” que o tempo presente nos proporciona, quando evocada pela própria mídia, elimina as evidências do trabalho de produção a que a notícia é submetida nos telejornais, nas rádios e nos meios impressos de comunicação de massa, descaracterizando, ainda que superficialmente, esse tratamento ideológico. Arlindo Machado acredita que tal recurso não é suficiente para retirar do receptor (telespectador, ouvinte ou leitor) o senso crítico e a capacidade de julgamento:
Há uma ponta de ingenuidade na insistência com que muitos analistas e intelectuais tentam provar que os telejornais não são neutros, nem objetivos, nem imparciais, refletindo apenas uma produção ideológica. (...) Não se pode deduzir que o espectador vai necessariamente endossar opiniões majoritárias. Pode ser até que, a partir das opiniões apresentadas, ele forme uma terceira, nem sequer cogitada em tela (Machado, 2000-114).
Ainda que o receptor mais atento e crítico não se deixe levar pelas tentações da alienação a que o ícone nos conduz, a constatação de que incertos interesses atuam cotidianamente em escancarada preferência ao tempo presente não nos permitem concordar com as explicações fornecidas pelos gramáticos ou com os argumento utilizados para justificar tal uso, em manuais de redação de jornais: o uso do presente revitaliza a ação e dá mais frescor à notícia.
O frescor do acontecimento, nesse caso, não está ligado à instantaneidade da notícia mas ao mascaramento dessa instantaneidade pelo mecanismo mental que não nos permite dissociar o ícone da realidade ela mesma. Uma dissimulação que por si só já descaracteriza a presença do ícone para torná-lo um índice, no entender de Charles Peirce.
O leitor, o ouvinte e o telespectador mais atento e esclarecido tendem a irritar-se com o uso obsessivo de verbos no tempo presente para indicar ação pretérita. Assim, não se permitem admitir o ícone sugerido, substituindo-o outro signo de caráter indicial. Abre-se, portanto, uma fenda enorme entre as intenções do discurso jornalístico e as imagens formadas na mente desse público. As conseqüência mais imediatas são a quebra do envolvimento com a notícia e, ato contínuo, o rompimento da credibilidade.
O índice é – na melhor das possibilidades – um estímulo à presentificação, uma marca que nos reporta a outra coisa fora da narrativa, um apelo às possibilidades que não se apresentam mas que são “ possíveis” à matéria jornalística. Por isso, traz incontinenti a sensação de incompletude, de vácuos informacionais e, portanto, de manipulação ideológica.
A Imagem e a Diluição da Presença
Entretanto, o convívio diário com tais usos cria o hábito. O hábito cristaliza os formatos discursivos que, nessa situação, deixam de contemplar ícones ou índices para se plasmarem como símbolos. O tempo presente é então transformado em símbolo do presente para efeitos jornalísticos, e assim pode ser tacitamente aceito sem estimular qualquer tipo de crítica, evocação de presentidade ou de camuflagem do real.
Assim, ao observarmos na conversação do dia-a-dia a simbolização do “presente” como hábito instaurado pelo uso da mídia no cotidiano das pessoas, questionamo-nos sobre sua eficácia na linguagem, mas nos preocupamos quanto às suas conseqüências na cultura.
Peirce não nos parece ter pensado na cultura quando discorria logicamente sobre os processos de produção de sentido, mas mesmo assim, podemos inferir que a passagem dos níveis de representatividade do signo traduzem muito mais que um processo de geração ou degeneração sígnica gradual.
A abolição do passado nas imagens, bem como a falta de perspectivas futuras para sua proliferação gera um fenômeno no qual as imagens se desligam de seus objetos de referência. Uma imagem assim concebida – em tempo presente absoluto ou prsente histórico exagerado – , não tendo outro objeto ao qual se referir só poderá fazê-lo com referência a outra imagem.
É esse fenômeno que Norval Baitello Júnior (2005) identifica com o sugestivo nome de iconofagia: as imagens não mais se referem ao mundo, mas a outras imagens, igualmente clichês, simbólicas, estereotipadas que necessitam, numa progressão infinita, alimentar-se de outras imagens que lhes tragam ou ampliem a significação. Todas elas em tempo presente, na forma de camadas superpostas ou superexpostas.
Esse aparente “excesso de presente” é, paradoxalmente, uma perda gradual do presente, na medida em que “há um quadro crescente de transformação do presente vivido corporalmente em presente vivido imageticamente, in effigie”, alerta o comunicólogo alemão Dominik Klenk em seu livro A Perda do Presente na Sociedade da Comunicação .
Baitello Júnior nos fala que essa tendência não é nova: ela já tinha sido surpreendentemente antecipada por Walter Benjamim , quando alertou para as conseqüências da perda do “valor de culto” para o “valor de exposição”.
Um processo que, no seu final, explica a proliferação de iconofagias aceleradas, sem perda de substância:
Vivemos hoje sob a marcha triunfal das realidades bidimensionais que trazem em sua alma as fórmulas abstratas da nulodimensão: por trás de uma imagem sintética já não há sequer uma imagem concreta e muito menos o corpo de matéria tridimensional; há apenas o conceito abstrato de entidades numéricas, codificações sem tatilidades ( Baitello Júnior, 2005:88)
E como – assim – não temos mais compromisso com uma meta de chegada que sirva de referência última às imagens, contentamo-nos com a presentidade de imagens sem referência ou de referência contínua a outras imagens que a replicam, como podemos observar no caso do uso obsessivo das formas gerundivas ... na mídia e na linguagem popular.
Mas essa é uma outra história, também muito perigosa em teremos culturais.
Referências Bibliográficas:
BAITELLO JÚNIOR, Norval. A Era da Iconofagia – Ensaios de Comunicação e Cultura. São Paulo, Editora Annablume:2005.
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. A Nova Gramática do Português Contemporâneo. São Paulo, Nova Fronteira: 2001
DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. Lisboa, Edições 70/Perspectivas do Homem: 1993.
ELIAS, N. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 1998.
IASBECK, L.C.A. A Arte dos Slogans. São Paulo, Editora Annablume: 2002.
MACHADO, Arlindo. A Televisão levada à Sério. São Paulo, Editora do Senac: 2000.
MALRIEU, Philippe. A Construção do Imaginário. Lisboa, Instituto Piaget:1996.
NUNES, M.R.F. O Mito no Rádio- A voz e os Signos de Renovação Periódica. São Paulo: Editora Annablume: 1997.
PEIRCE, C.S. Semiótica e Filosofia. São Paulo, Cultrix: 1989.
SANTAELLA, Lúcia. A Assinatura das Coisas. São Paulo, Imago: 1993.
Sites na Internet:
BORG, Gustavo. Você faz a Diferença, in http://carreiras.empregos.com.br/comunidades/rh/artigos/081101-diferenca_boog.shtm , 23.08.2006.
MARTINS, Ana C. Souza. O PRESENTE NA NARRATIVA E NO RELATO DE VIAGEM. in http://www.ucm.es/info/circulo/no19/martins.htm, 23.08.2006.