O caderno rosa de Lori Lamby
(Um ensaio sobre desmasculinização literária em Hilda Hilst)
Aflição de ser eu e não ser outra. Aflição de não
ser amor, amor, aquela muitas filhas te deu, casou donzela
e à noite se prepara e se adivinha
objeto de amor, atenta e bela.
(Hilda Hilst)
O que mais chamava atenção a dos transeuntes, era sua formidável aparência. Quando o polêmico empresário e produtor cinematográfico Bob Evans lançou a moda da calça jeans para mulheres nos EUA, ela talvez tenha sido usuária fina dos tecidos que auxiliaram a indústria cultural brasileira durante a contra-cultura, revestida por novas possibilidades de beleza.
Em diversas reportagens, relatos biográficos e conversas com seus contemporâneos, é supreendente a confluênciaa dos diálogos acerca de sua voz empostada, firme, suave e melódica. As sílabas eram tão bem pronunciadas, que o mais cavalheiresco Don Juan suburbano não seria capaz de lançar suas técnicas de sedução magnética em seus ouvidos.
Se julgasse uma mulher “fácil” – pelo simples fato de ser “difícil” no imaginário dos conquistadores – , provavelmente ficaria na retaguarda.
Era seu diálogo mordaz que chamava atenção nas entrelinhas. Para a década de 1950, não era uma mulher convencional. As femmeles na pós-modernidade despejaram sobre o discurso jurídico-discurssivo da lei, a melhor intelectualidade burguesa feminina de transcurso anterior ao establishment dos homens. A teia que tece todas as formas de poder – em sua polifórmica rede de transmissão social – são à medida do tempo, incapazes de resistir sob determinadas formas de resistência.
A posteridade não criou dúvidas quanto a isso. Pelo simples fato de termos a “menina dos olhos” do poeta em nosso consciente coletivo, a poesia mimética descreve os desejos humanos sob um ângulo bastante acadêmico. Em suas letras, ela desestrutura esses elementos tradicionais: uma enrijecida teoria literária masculina, construções imaginárias feitas pelos amantes de Lolita.
Essa rede de poder também se configura pelos estudos da literatura. A narração do exame e da clínica refletida no discurso dos magazines femininos do século XIX. O poder através da história dos discursos. Sua forma é essencialmente repressiva, atinge a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe (Foucault, 1999:173).
O que chamamos de marginália da literatura? O poder das mulheres na história? Quando essa elegante mulher disparava sua intrigante fala nos círculos burgueses, seus ríspidos senhores e senhoras da elite cafeicultora decadente teciam estúpidos comentários nos bastidores: “Isso é coisa de donzela de família andar falando por aí?!”. Felizes de algumas de nossas avós, que a conheceram no esplendor de sua juventude. Infelizmente, falar sobre mulheres livres é algo recente nos círculos de participação política nacional.
Ainda o pensador francês traria o debate ao alcance do olhar ontomológico: uma denúncia sobre a criação das “espécies” sexuais. Há so exibicionistas de Lasègue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing, os automossexualistas de Rohleder, haverá os mixoscopófilos, os girecomastos, invertidos e nesse interim, as mulheres “disparêunicas”. Conforme Foucault (1993), são esses laços de suposição fixista, onde a inteligência feminina é encarada como metaformismo inferior, aspectos da criminalidade sexual repulsiva ou controlável.
Quando Hilda Hilst, escritora paulista, publica O caderno rosa de Lori Lamby (1990), surge a inversão do desejo: a suposta pederastia de um homem vislumbrava-se nos caprichos de uma menina de oito anos. Humor, inteligência e erotismo redigidos por Hilsttraziam a menina libertina (em contraposição ao sonho velado e intocável) percebendo uma senil vontade de falar sobre sexo. É o grande diferencial, já que nos famosos “romançais de 30”, todos os desejos são descritos por pênis em detrimento de vaginas. Ao propor o contrário, a autora provoca uma catarse estética sobre o menino vadio... A autora dizia estar “deixando a literatura séria”.
Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as pernas abertas (...) Os meus amiguinhos lá da escola sempre falam dos papi e das mami deles que foram fazer compras, e então eu acho que eles são lambidos todo dia.
(O caderno rosa de Lori Lamby)
Lancemos o desafio: como desestruturar a literatura canônica? Então há muito a se desfragmentar nessas instituições literáticas da jurisprudência, de caráter normatizador. O olhar da fala – Lamby empresta à Hilst – corta esses saberes, propõe um caminho novo na literatura a partir do diário de Lori. Um ponto de vista “fálico” sobre autonomia de um saber feminino, um contexto intelectual para ocupar novas espacialidades simbólicas entre mulheres.
Lori mantêm, inclusive, relações com adultos. Idealiza o sexo dos pais, constrói uma narrativa realista de fatos excêntricos, bastante incomuns a uma criança de sua idade. Crianças pensam sobre sexo? Seguramente. O tempo natural da sexualidade humana é reflexo direto de várias experiências infantis reconstruídas, muitas das vezes, sob o olhar da perversão. Mas essa menina os descreve como prazeres íntimos (e por quê não?), a transgressão bem humorada de sua percepção: “O que papi e mami pensam sobre isso?”.
Quem nunca sentiu necessidade de ser lambido ou lambida, atire a primeira pedra. Obviamente, não serão levantadas pelo leitor. Para muitos adultos, a satisfação de se falar em pederastia é indescritível. Porém, estamos regidos sob uma organização definida, para que exista um fato social. Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais são e tais quais sempre foram (Durkheim, 2003).
A efusão de Hilst e Lamby traz à tona nossas fragilidades discursivas ao engedrarmos na cultura familiar cristianizada, os perigos do desejo e da função tátil, o sentir. Algo tão comum às crianças na idade de Lori. Se a autora brinca com algo que julgamos ser tão sério e proibitivo, não seriam esses instintos mal-resolvidos e inflingidos o resultado sociológico dos perversos sexuais? Discussão um tanto dicotômica.
O toque magistral do satírico-feminino deleita-se na ponta do cigarro. Entre uma baforada e outra, a desmasculinização literária colocada na ordem do dia é dita por uma liberdade singular. Quando foi homenageada pelo compositor Zeca Baleiro ao musicalizar alguns de seus versos, oartista teria dito: “Bela e firme como sua sensibilidade poética”.
A sensação do prazer na intimidade nos revela o grande dilema de uma fantasia erótica. A riqueza dos detalhes, no diário de Lori, são pressupostos transgressores do consciente coletivo mítico de Lilith** (a segunda mulher criada por Deus, de tradição cabala-judaica). A desconstrução da submissão feminina judaico-cristã, levada pela ousadia feminina que desafia Deus contrariamente à passividade de Eva. Analogia à literatura de Hilst: uma mulher que reluta as idéias de seu tempo.
As cidades do Rio de Janeiro e São Paulo não seriam as mesmas com os ácidos e incisivos passeios de Hilda, regados por arte chocante nos salões pseudo-intelectuais da burguesia tropical. Lori Lamby propõe uma complexidade literária que não aceita respostas fáceis aos deterministas acadêmicos e teóricos incontestáveis: ficção, não-ficção e uma sutil dose de subversão.
Na complexidade humana, persiste o princípio da ambivalência: não existe “mal” nem “bem” completamete. Benefício e prejuízo andam juntos. Há uma relação intrínseca que se encontra no cerne da ciência e das artes como um todo (Morin, 2003). Neste caso, ordem, desordem e organização tramitam enquanto conceitos auxiliares. Esses princípios de complementaridade são percebidos pela arte disruptora, uma potencialidade indescrítivel de fazer os hipócritas repensarem a solidez de seus muros inquebrantáveis. Concluindo, as figuras de Carla Camurati (cineasta), Leila Diniz (atriz) e Andréa Del Fuego (escritora) são personalidades marcantes de tendências que não se esgotam nunca...
Nossas congratulações à senhora Hilst...
'Porque há o desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladratura.
visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
tomas-me o corpo. E queescanso me dás
depois das lidas. Sonhei penhascos
quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
ao invés de ganir diante do Nada...'
Hilst
**A esse respeito, consultar a obra de Roberto Sicuteri sobre a mitologia de Lilith no imaginário ocidental. Ver:. SICUTERI, R. Lilith, a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Referências
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Bamby. São Paulo: Massao Ohno, 1992.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.