Primeira guerra mundial - A mãe de todas as batalhas
Há 95 anos, o planeta mergulhava no seu primeiro conflito generalizado, que provocou mudanças radicais no balanço de poder mundial e repercute até hoje
Rodrigo Craveiro
Era para ser apenas uma visita oficial a Sarajevo, na Bósnia. Em 28 de junho de 1914, porém, o arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e sua mulher, Sophie, acabaram mortos pelo sérvio nacionalista Gavrilo Princip. Os dois tiros foram suficientes para deflagrar um conflito cruel e sangrento, que custou a vida de 7.953.888 militares e deixou 21.770.196 de feridos. Exatamente 95 anos atrás, a Alemanha declarava guerra à Rússia, colocando a Europa sob perigo iminente. Pouco depois, seria a vez de França, Reino Unido, Japão e Turquia mobilizarem seus exércitos. Os Estados Unidos somente entrariam em combate em 6 de abril de 1917.
As hostilidades cessaram às 11h de 11 de novembro de 1918 e transformam o planeta: com o armistício, quatro impérios influentes ruíram como um castelo de cartas e o balanço de poder atravessou o Oceano Atlântico e migrou da Europa para os Estados Unidos. “O conflito também criou o comunismo como uma ameaça internacional dinâmica ao sistema capitalista global”, explicou ao Correio o britânico William Philpott, professor do Departamento de Estudos Bélicos do King’s College London e especialista em Primeira Guerra Mundial.
O impacto foi devastador também sobre as relações de poder econômico no planeta. Segundo Philpott, os laços entre as chamadas metrópoles e suas colônias tornaram-se mais débeis, especialmente em relação ao Império Britânico — os domínios ganharam status e poder e esperaram recompensas por suas contribuições aos esforços de guerra. No entanto, seria necessária outra guerra mundial antes de essas mudanças se confirmarem, em uma reviravolta rumo a uma ordem bipolar mundial e à descolonização europeia.
Reviravolta mundial
O velho sistema eurocêntrico mundial sacudiu e moveu-se, sem colocar um substituto à altura no lugar. Professora de história internacional da London School of Economics and Political Science (LSE) e autora de Untold war: new perspectives in first World War studies (A guerra não dita: novas perspectivas nos estudos da Primeira Guerra Mundial), Heather Suzanne Jones lembrou que as tensões de uma guerra total destruíram quatro grandes impérios: o Otomano, o Russo, o Austro-Húngaro e o velho Segundo Reich alemão.
Como a maior parte desses impérios era multiétnica, o resultado do conflito foi a ideia de um estado de múltiplas facetas culturais substituído pelo estado de nação em boa parte da Europa e da Ásia. “Esse processo levou ao aumento das tensões étnicas e desestabilizou o continente europeu”, observou Heather. De acordo com a especialista da LSE, as trincheiras também conduziram à Revolução Russa de 1917 e, indiretamente, levaram ao primeiro Estado comunista. Isso provocou novas tensões entre o Ocidente e o Oriente e entre os ideais comunista e capitalista.
Do ponto de vista militar, a Primeira Guerra Mundial foi inovadora, com os primeiros bombardeios aéreos às cidades de Londres, Karlsruhe e Freiburg (Alemanha). “Essa estratégia levou a uma ocupação militar cruel do norte da França, de toda Bélgica e dos países bálticos pelas tropas alemãs, além da invasão austro-húngara de parte do norte da Itália”, explicou Heather. O grande número de baixas civis forçou uma mudança de comportamento nos países envolvidos em combate: o recenseamento militar estava em alta; a necessidade de munições pesadas — capazes de confrontar os bombardeios — exigia que milhões de homens e mulheres trabalhassem em prol do esforço de guerra; e as mortes em massa determinaram que a sociedade aprendesse a lidar com o terrível legado do luto.
Philpott analisa o pós-guerra com olhos diferentes dos de Heather. “Por um momento, houve um balanço artificial de forças, com a França e o Reino Unido como os poderes mundiais dominantes, com os Estados Unidos retraídos ao isolamento, a Alemanha temporariamente aquiescente e desarmada, e a Rússia ameaçada pelo conflito interno”, explicou. O cenário, na opinião dele, pavimentou caminho para a ambição de novos poderes que estavam do lado vitorioso do conflito, a Tríplice Entente, formada por Sérvia, Império Russo, França, Império Britânico, Portugal, Itália, Estados Unidos e Japão. “Especialmente Itália e Japão empurraram sua influência crescente e suas colônias na Europa e no Oriente”, disse o especialista do King’s College London.
Batalhas
A chamada Primeira Batalha do Marne — travada de 5 a 10 de setembro de 1914 às margens do Rio Marne, a sudeste de Paris — foi decisiva para ditar os rumos do conflito. Segundo Heather, o Exército alemão tinha invadido a França, com o plano de capturar Paris. “Se Paris tivesse sido tomada, a Primeira Guerra talvez terminasse com uma derrota francesa em 1914”, opinou. No entanto, durante esse evento, a França, com o apoio britânico, empurrou o Exército Alemão de volta a seus limites e salvou a Cidade-Luz. Se os planos da Alemanha para uma guerra rápida haviam falhado, a Batalha do Marne também foi o presságio de uma longa guerra inevitável.
E se a Batalha do Marne foi importante do ponto de vista estratégico, a Batalha de Somme, em 1º de julho de 1916, mostrou-se crucial pelo número de baixas. “Somente no primeiro dia de combates, o Exército britânico perdeu 60 mil homens sem ganhar terreno”, lembrou Heather.
Para Philpott e Heather, jamais haverá uma guerra daquelas proporções. O especialista do King’s College London acredita que a sociedade não tem hegemonia suficiente para embarcar em um esforço nacional sujeito a consequências funestas. “Já estamos engajados em uma ‘Terceira Guerra Mundial’, se ela pode ser definida como um conflito ideológico prolongado”, alertou. “A Primeira Guerra Mundial era o evento climático de uma batalha entre liberalismo e autocracia, que durou de 1789 a 1917. A luta entre capitalismo e comunismo perdurou de 1917 a 1991. Agora, temos as rusgas entre democracia e teocracia”, acrescentou. Por sua vez, Heather lembra que, com a tecnologia militar, mudou a estrutura de poder das nações. “Não temos mais um sistema de classes rígido na Europa, algo que foi essencial para encorajar as pessoas a lutarem”, opinou.
Anos de horror
1914
28 de junho — Assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, em Sarajevo (Bósnia)
29 de julho a 9 de dezembro — O Império Austro-Húngaro invade repetidas vezes a Sérvia, mas é repelido
1º de agosto — Começa a guerra: a Alemanha declara guerra à Rússia
3 de agosto — A Alemanha declara guerra à França
4 de agosto — A Alemanha invade a neutra Bélgica e Londres declara guerra a Berlim. O presidente norte-americano, Woodrow Wilson, declara neutralidade dos EUA
14 de agosto — Começa a Batalha das Fronteiras. França e Alemanha intensificam os combates
17 a 19 de agosto — A Rússia invade a Prússia Oriental
23 de agosto — O Japão declara guerra à Alemanha
26 a 30 de agosto — Batalha de Tannenberg, na qual a Rússia é derrotada. Trata-se do maior sucesso alemão na Frente Oriental da guerra
5 a 10 de setembro — A Primeira Batalha do Marne suspende o avanço alemão e inicia a guerra de trincheiras
21 de dezembro — Primeiro bombardeio aéreo alemão sobre o Reino Unido
1915
4 de fevereiro — Navios alemães atacam embarcações de aliados e neutros
7 a 21 de fevereiro — A Rússia sofre pesadas baixas na Batalha do Inverno
22 de abril a 25 de maio — Primeiro uso de gás venenoso, pelos alemães, na Batalha de Ypres
23 de maio — Ao ignorar acordos com as Potências Centrais, a Itália declara guerra ao Império Austro-Húngaro
4 de agosto — Os alemães capturam Varsóvia
1916
21 de fevereiro a 18 de dezembro — A Alemanha ataca Verdun (França), na mais longa batalha da guerra
Abril — Forças britânicas chegam à Mesopotâmia e avançam em Bagdá
31 de maio e 1º de junho — Batalha de Juntland, a maior batalha naval da história, termina sem vitorioso
1º de julho — Começa a Batalha de Somme, com o maior número de baixas militares na história do Reino Unido (60 mil mortos)
28 de agosto — A Itália declara guerra à Alemanha
15 de setembro — Os tanques são introduzidos pela primeira vez na Batalha de Somme, pelo Reino Unido
18 de novembro — Termina a Batalha de Somme
1917
31 de janeiro — A Alemanha anuncia “guerra irrestrita”, com o uso de submarinos
3 de fevereiro — Os Estados Unidos rompem relações diplomáticas com a Alemanha
11 de março — Os britânicos capturam Bagdá
20 de março — O gabinete de guerra do presidente norte-americano, Woodrow Wilson, vota a favor da declaração de guerra contra a Alemanha
6 de abril — Os EUA entram na guerra
27 de junho — A Grécia entra na guerra, em apoio aos aliados
7 de novembro — A Revolução Bolchevique, na Rússia, resulta na implantação de um governo comunista, com Lênin no poder
7 de dezembro — Os EUA declaram guerra ao Império Austro-Húngaro
1918
31 de janeiro — A Alemanha lança a Ofensiva da Primavera e realiza cinco grandes avanços contra as Forças Aliadas
25 de maio — Navios alemães aparecem pela primeira vez nas águas territoriais norte-americanas
15 de julho — Fase final da Ofensiva da Primavera, com a Segunda Batalha do Marne
19 de setembro — Começo da ofensiva britânica na Palestina, a Batalha de Meggido
3-4 de outubro — Alemanha e Áustria enviam notas de paz ao presidente Woodrow Wilson, nas quais pedem armistício
3 de novembro — A Áustria-Hungria conclui o armistício
10 de novembro — A República da Alemanha é fundada, depois da renúncia e da fuga do Kaiser Wilhelm II
11 de novembro — Dia do Armistício. A guerra termina, às 11h