A PESQUISA NAS CRÔNICAS DOS JORNAIS ANTIGOS DO ACRE
Por Maria Alzenir Alves Rabelo Mendes
Mestranda em Letras, Linguagem e Identidade (UFAC)
A motivação para a pesquisa sobre a produção textual do Acre, mais precisamente com as crônicas dos jornais antigos, reside na constatação de que o acesso à produção escrita no Acre ainda é bastante restrito. Daí a escassez de textos que possam ser utilizados como apoio didático nas aulas de Língua Portuguesa e suas Literaturas, bem como nos cursos de leitura e produção textual. Essa escassez é bem mais evidente quanto a leituras sobre as peculiaridades da cultura do Estado do Acre.
Na ausência desse material, não se pode estranhar que um estudante acreano conheça mais sobre outros Estados brasileiros do que sobre suas próprias origens. Uma grande parcela do alunado tem contato, pelo menos, na sala de aula, com a produção de escritores reconhecidos, nacionalmente, como Fernando Sabino, Humberto de Campos, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, e outros que tiveram suas criações literárias publicadas, a princípio em jornais, o que é comum às crônicas, e posteriormente em antologias, e em livros didáticos.
No caso do Acre, embora as crônicas também tenham sido publicadas nos jornais locais, é pouco provável que os estudantes saibam quem foi Antônio Carneiro Meira; Baxir Chaul ou Stelio de Amics; quem assinava as crônicas como “Zelinha”; “Zeferino”; “Zé do Barranco”, entre outros que escreviam para os periódicos da região. Pouquíssimos alunos, talvez, tenham lido as crônicas de José Alberto Mendes, José Chalub Leite, Adelino Moura, Francisco Dandão, Aluísio Maia, Antônio Stélio e outros que fizeram e ainda fazem jornalismo literário no Acre.
E nós, professores, não podemos responsabilizar esses alunos por uma falta que reside no nosso “acomodamento” à conformação, apenas, de um conhecimento que vem de outras culturas e que trata somente delas. Talvez, o nosso acomodamento se deva ao fato de que os livros didáticos, com os quais trabalhamos e as fontes de pesquisa que utilizamos, embora não contemplem os temas locais, já nos chegam prontas, e isso significa “meio caminho andado” para a atividade pedagógica.
No entanto, compete a nós educadores, instigar o espírito de investigação no estudante para, assim, garantir a preservação da memória e o reconhecimento de nossa identidade cultural, a partir do legado dos antepassados. Essa tarefa é possível, a princípio, através da localização e da coleta de material que nos permita revisitar a história e analisar os fatos sob o ângulo possibilitado pela diversidade de textos publicados em jornais. Na impossibilidade de coletar e analisar toda essa produção textual, concentraremos essa pesquisa nas crônicas que tematizam o Acre e sua gente.
O desejo de estudar as crônicas do Acre já era latente desde os primeiros trabalhos de pesquisa, os quais realizamos ainda no PIBIC e, posteriormente, no PNOPG , sob a orientação da Professora Doutora Olinda Batista Assmar, coordenadora do Projeto de Pesquisa Amazônia: os vários olhares .
Dentre os objetivos do trabalho iniciado, e ainda em andamento, encontram-se as primeiras medidas, no sentido de preencher os vazios existentes nas bibliotecas e nos centros de ensino, quanto a textos que tratem de temas locais. Até então, segundo a referida a Profª Olinda (2002) , os livros sobre a Amazônia “eram poucos (...) e, muito menos, sobre as manifestações literárias e culturais do Acre (...) Após avaliação do Projeto de pesquisa Amazônia: os vários olhares pelo comitê do CNPq/UFAC, foi iniciado o levantamento e a coleta de material que possibilitasse a descoberta do universo do amazônida a partir das manifestações culturais e literárias”.
O primeiro subprojeto foi desenvolvido pela bolsista Susy Andréa Araújo (1995-1996), intitulado A Produção Textual de 1900 a 1920 – manifestações literárias. Nesse trabalho, a ênfase maior foi dada à localização de acervos e à coleta textos. O segundo trabalho da pesquisadora visou à apreensão dos temas predominantes na poesia nos jornais de Xapuri.
Em 1996, enquanto a colega concentrava seu estudo sobre os textos poéticos, iniciamos outro estudo, dando continuidade à pesquisa sobre os textos coletados dos jornais daquele município. O resultado deste trabalho foi apresentado em seminários sob o título A prosa jornalística construindo a identidade do xapuriense - 1900 a 1984. O trabalho seguinte foi O Imaginário Xapuriense- Prosa Poética – 1907 a 1918, com a apresentação também em seminários.
A pesquisa sobre a produção textual dos jornais foi concluída no Aperfeiçoamento em Pesquisa com o subprojeto A Prosa nos Jornais de Xapuri, cujos objetivos visavam à organização de uma antologia comentada, contemplando informações biográficas sobre os autores. O resultado desse estudo, publicado em forma de um Inventário: A produção textual oral e escrita de Xapuri é a síntese da pesquisa sobre a poesia e prosa daquele município, agrupada em um só trabalho, no volume I da obra As dobras da memória de Xapuri . O volume II é a antologia – A prosa xapuriense, na qual constam mais de trezentos textos em prosa, com notas explicativas e informações sobre os autores.
Na prosa que compõe aquela Antologia sobressaem-se as crônicas regionais, cujos assuntos têm fundo histórico, político, filosófico e humorístico, versando sobre assuntos do cotidiano como, as chuvas, o tédio e a solidão; sobre as “picuinhas politiqueiras”, desagravos disfarçados no jogo da ficção, sátira aos mandatários, aos coronéis de barranco, e outros tópicos, sempre em relação ao homem e ao espaço onde as crônicas foram escritas ou transcritas.
No decorrer dos anos, a prosa de cunho literário, que ocupou grande espaço nas páginas da imprensa acreana no início do século XX, cedeu lugar ao texto mais tipicamente jornalístico, como notas sobre: falecimentos; nascimentos; chegada ou partida de pessoas queridas, publicação de Balanço de firmas, etc. As crônicas humorísticas quase desapareceram; os anúncios de produtos importados cederam lugar aos de origem nacional; os eventos culturais, representações teatrais, concertos e recitais foram substituídos pelas de gincanas cívicas e atividades esportivas promovidas por pessoas do local.
A literatura, como arte mimética, imita pela palavra e recria a realidade conforme a concepção do espírito do artista, assim já a definiam os gregos, para quem a imitação não é mera cópia, mas a apropriação dos dados da realidade para a elaboração das abstrações que o indivíduo concretiza na forma de texto. Coutinho (1968) considera literatura como “um sistema vivo de obras agindo uma sobre outras e sobre os leitores, viva na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a ou deformando-a”. Assim, ampliam-se as possibilidades de temas a serem explorados no texto literário, mesmo que por questões didáticas estes sejam classificados em duas grandes linhas temáticas: universal e regional.
É também do autor a definição da temática universal como aquela em que predomina a linha introspectiva ou psicológica, que trata de 'problemas de conduta, drama de consciência, indagações e motivações em busca de uma visão da personalidade e da vida humana.” Quanto à segunda, a temática regional, é definida como “uma arte que se vincula ao contexto histórico, geográfico e social, retratando a realidade em suas minúcias”. Para o autor, a obra regionalista dá primazia aos assuntos relacionados à terra e ao homem na luta pela sobrevivência, focaliza o pitoresco e as peculiaridades de cada região.
A Literatura também é definida como a expressão da sociedade, dos grupos que a compõem, de seus valores, aspirações e reflexões. Dessa ótica, o texto de opinião será também literário, uma vez extrapolada a objetividade característica do texto de informação imediata. Mas partimos da preceptiva de que a informação jornalística acaba onde começa a literatura de sugestão. O jornalista pauta-se na pesquisa sobre a realidade concreta, prima pela linguagem objetiva, numa perspectiva de consumo rápido, e privilegia os conteúdos que exigem a mínima variedade formal.
Ainda que, conforme Reis (1997, 19-40) as fronteiras entre o literário e o não literário estejam cada vez mais tênues pela integração entre cultura e literatura. E esse processo tem sido observado ao longo da história quando autores que versam sobre cultura são inseridos no rol dos propriamente literários.
Dos textos de cunho literário, publicados em jornais, a crônica moderna, híbrida e transitória, é o texto que, pela própria origem da palavra do grego Krónos (tempo), acompanha a sucessão dos episódios diários, agora captados pela “lente” do observador que depura os fatos com sensibilidade artística, conferindo ao texto efeito estético no modo como re-cria a realidade pela reordenação de signos polivalentes. É nessa instância que a crônica torna-se perene, sobrevive à efemeridade do texto jornalístico e passa a integrar os compêndios das obras imperecíveis.
Segundo Moisés, (1998) , a crônica, como um gênero intermediário “tenderá ou para o lirismo ou para conto, que traduzem ou a elevada subjetividade na transposição do acontecimento, ou a sua dramatização, que confere ao cronista um papel de espectador. Em ambas as situações, para que a crônica ganhe foros estéticos, há de prevalecer o poder de recriação da realidade sobre o de mera transcrição”.
O autor argumenta que “fora daí, a crônica vai envelhecendo à medida que o evento determinante se distancia no tempo, tragado por outras ocorrências igualmente rumorosas e passíveis de gerar equivalentes crônicas.” No entanto, como os gêneros literários evoluíram, a crônica também evoluiu através do tempo e adquiriu novos traços, o que possibilitou o surgimento de novas tipologias. (Wellek e Warren, 1971).
As crônicas são textos que possibilitam leituras plurissignificativas pela linguagem figurada e pelo uso equilibrado de metafóras sugestivas. Nelas, a descrição subjetiva, a adjetivação intencional expressa o juízo pessoal, no sentido de valorar ou de depreciar certas personalidades de destaque do passado ou contemporâneas à escrita do texto. Nas crônicas modernas são freqüentes o uso de chavões, de ditos populares e expressões coloquiais com um toque de humor. Mas o humor não é gratuito. Muitas vezes depura a alma do homem, induz o leitor a uma nova maneira de encarar o assunto que provocou o riso e a refletir sobre o seu estar no mundo (Bergson, 1940, 100).
Como um gênero misto, às vezes, adquire tom poético, ou aproxima-se do artigo e do ensaio. Em síntese, é um meio-termo entre a Literatura e o jornalismo. (Tavares, H., 1996, 123). Este mantém estreita relação com a Literatura, uma vez que ambos refletem as diferentes concepções de vida, existentes em um povo. Além de informar, influir e transformar a mentalidades, os jornais constituem-se em acervos plenos de material para a linha de pesquisa Memória e Literatura Cultural.
A Professora Alice Campos Moreira reconhece a importância de se “preservar, recuperar e editar textos fundamentais para desenvolver conhecimentos históricos, teóricos e críticos. (...) a função que desempenham na preservação da memória daqueles periódicos que tiveram e têm papel destacado no desenvolvimento da literatura brasileira.
Nos últimos 10 (dez) anos, os professores pesquisadores têm encontrado nos jornais uma fonte a mais para os estudos culturais. A Professora Drª Ivia Alves , afirma: “por experiência própria, constatei que só se pode resgatar as idéias veiculadas no lugar acompanhando os jornais e revistas específicas. E elas são inúmeras.”
A pesquisadora Carla Patrícia Santana reitera o posicionamento da Professora Ivia. Segundo ela, os textos recuperados de periódicos “permitem discutir as idéias de um intelectual, que não se ateve apenas à literatura mas também à educação e à implementação de uma Universidade pública.(...) é uma maneira de “cuidar da memória” dos que se foram e que contribuíram na construção da nossa história coletiva, neste caso específico, da nossa história literária e cultural.
O Professor Rildo Cosson , objetivando explicitar a inserção do Projeto Literatura, Jornal e Cultura: Autores Pelotenses – 1851/1889, no âmbito dos estudos de história literária, define os princípios que norteam as pesquisas que visam a recuperação de textos em periódicos. O professor prioriza três aspectos para o que ele denomina “petição de princípios”:
1- O passado como memória - (...) o papel da memória nas reivindicações de grupos ou setores das sociedades globalizadas pelo reconhecimento de suas especificidades; 2- Do cânone ao banco de dados: a pesquisa da memória – (...). A certeza de que a memória cultural precisa de documentos para se sustentar leva o ímpeto revisionista a ser substituído ou complementado por uma preocupação preservacionista; 3. Uma alternativa para a leitura da memória cultural: o polissistema literário – (...) ampliar seu horizonte para além das questões envolvendo o cânone, mesmo que esse resgate não deixe de revelar como formamos nossa memória, o que esquecemos, o que apagamos, o que inventamos.
Os resultados alcançados nas pesquisas já realizadas em Literatura e memória cultural nos permitem enveredar mais por esse trilho e resgatar, através das crônicas, publicadas ou não em periódicos, aspectos culturais da vida do acreano até então não contemplados na literatura disponibilizada aos estudantes e a outros leitores. Sabemos que tanto é possível como é urgente o estudo das produções literárias do Acre para que sejam integradas aos compêndios culturais, de natureza estética, histórica e/ou didática. É preciso garantir o diálogo permanente entre o passado, comunicado pelo escritor, e o presente cada vez que o leitor recepcionar o registro escrito, possibilitando, desse modo, a preservação da memória e o reconhecimento da identidade regional, pela linguagem e pelos valores nela sugeridos.
A escrita de uma região tem como foco principal os temas, ali tratados, muito mais pela natureza dos temas do que pela natureza do gênero, sem relegá-lo ao descaso, uma vez que é através dele, enquanto forma, que o tema é exposto e possibilita a interação entre o “desbravador” do texto e o universo desvendado. Nesse sentido, o escritor acreano Jorge Tufic (1892), em sua série de Ensaios sobre a Literatura Amazonense, defende que: “uma pesquisa desse gênero, levada a efeito (...)dará aos estudiosos e produtores de literatura, recursos inéditos de linguagem, os quais, aliados à temática, poderão conferir existência verdadeiramente regional aos textos de sua autoria”.
E como bem diz de Márcio Souza (1994), “a História da Amazônia precisa ser escrita o mais urgentemente possível, e por autor ou autores da região.” Embora não seja esse o nosso objetivo, entendemos ser tarefa do estudioso buscar a compreensão sobre como se deu a percepção e a condensação, através da escrita, de um dado momento na história de um povo.
No que se refere à atividade jornalística no Acre, esta teve início paralelamente à formação da sociedade e foi sustentada pela economia do extrativismo gumífero. Calixto, et al (1985, 166) observam que “no caso do Acre, jornais surgiram mesmo antes de esta região ser incorporada ao Brasil, com o “El-Acre” (1901-1902), cujo papel era divulgar o pensamento do governo e dos capitalistas bolivianos. Os autores confirmam a presença de homens letrados na região. Porém, as razões que os moviam ao jornalismo eram alheias aos interesses da maior parte da população.
Mas a crônica tem sua presença marcada antes mesmo do surgimento da imprensa na região,como um registro de acontecimentos em ordem linear, foi a forma de documentação mais usada pelos primeiros exploradores da Amazônia, que dotados de veia poética imprimiram uma visão subjetiva aos relatos de viagens. Assim, o documento dos fatos assumiu outras facetas do gênero como a fusão entre a realidade e a fantasia.
Quanto aos cronistas, aventureiros e cientistas, Márcio Souza (1994) afirma que muitos desses identificaram-se com a região. O autor cita alguns exemplos, como: “o Bispo João de São José Queiroz deplorou o estado em que os povos indígenas se encontravam em 1761; (...) Charles Frederick Hartt (1840-1878) escreveu uma síntese etnográfica da Amazônia; (...) Euclides da Cunha (1866-1909), escreveu um dos mais contundentes textos de denúncia da terrível exploração a que eram submetidos os seringueiros”.
As crônicas dos jornais impressos, diferente dos relatos dos primeiros viajantes, têm outra conotação: serviram como veículos para o extravasamento da frustração daqueles que investiram na independência do Acre. Em Xapuri , as crônicas humorísticas tiveram seu ponto alto. Através delas, podemos perceber a presença de grupos dominantes, ideologicamente opostos, e separados pela diferença cultural. Há crônicas em que os escritores satirizam os “Coronéis-de-Barranco”, empedernidos pelo poder do “ouro negro” (a borracha). Dessa fase, a série “Riscados” de Zé do Barranco, o humor é feito sobre os seringalistas, sem instrução, expostos a gafes, viajando de primeira classe nos navios da Iloyd: “... reclamavam de tudo porque tudo pagavam com seu dinheiro. Supunham que isso era chic e constituía um aprova de civilidade...” (O Acre 1913, p.2)
Em outras, como as da série “Fitas”, assinada por de K. Listo, no jornal Alto Acre (1913-14), as questões municipais, a inconstitucionalidade das Intendências nomeadas no Acre, os impostos, a administração pública e a relação entre os seringueiros e seus representantes são tratados com boa dose de ironia e humor. Na série, publicada também pelo jornal Alto Acre (1913-14), entitulada “Nossos Antigos Bons, Burros e Bravos” de J. Brígido, escritor da Academia Cearense de Letras, o autor satiriza os “Coronéis-do-Sertão”, ricos, poderosos, ignorantes e esbanjadores, podendo-se estabelecer um paralelo entre eles e os “Coronéis-de-Barranco” do Acre.
Surgem então questionamentos quanto às razões da sátira. Seria a frustração com a política local ou com fato dos intelectuais da imprensa estar subordinados, por motivos econômicos, àqueles homens rudes, mas que exerciam poder sobre os homens das letras? Por que então satirizavam os “coronéis”mantenedores dos jornais?
Outras indagações dizem respeito à natureza das crônicas: São históricas? Folclóricas? Reflexivas? Lúdicas? Expressam os valores, as crenças e os costumes do acreano de forma a desvendar-lhe a identidade cultural? Mantêm relação com o contexto local, de modo a possibilitar o resgate e da memória cultural?
Que temas predominam e que fatores determinam a recorrência de alguns deles nos textos em estudo? A linguagem é acessível, representa o falar regional ou restringe-se a um grupo intelectualizado?
Ainda: Qual a contribuição do escritor/jornalista para a cultura local? Quem eram / Quem são? De onde vieram / Que influências receberam?
Essas são questões que somente uma pesquisa criteriosa poderá responder. E é pouco provável que em apenas dois anos de mestrado cheguemos a elucidá-las.