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Ensaios-->O Poeta Manuel Vaz de Carvalho -- 07/10/2018 - 14:59 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MANUEL VAZ DE CARVALHO(1921 - 2011) - UM POETA TRANSMONTANO PARA SER LIDO E CONHECIDO

João Ferreira
Brasília, 1 de outubro de 2018

Numa estadia que fiz em Agunchos, minha terra natal, em 2011, a artista plástica Leonor Vaz de Carvalho, me galardoou com uma prenda especial que nunca vou esquecer. Foi à Casa do Cabo, solar famoso que sua tia Maria de Lourdes herdara das tias fidalgas da aldeia D. Ermelinda e D. Engrácia, para me oferecer a segunda edição de Poemas do Solstício, escritos por seu pai, o advogado e poeta Manuel Vaz de Carvalho, que fazia naquele ano de 2011, noventa anos. Eu estava hospedado na Casa do Cerrado, um gracioso anexo da casa do Cabo, de propriedade de D. Maria de Lourdes. Ao ler os primeiros poemas da obra que me tinha sido oferecida tive a imediata sensação de que estava diante de um livro de alta qualidade poética. A edição era acompanhada por ilustrações da autoria de Leonor Vaz de Carvalho, filha do Poeta e tinha sido preparada com muito esmero e capricho. Ao promoverem esta edição, os filhos quiseram comemorar os 90 anos de idade do pai e os quase oitenta em que ele escrevia poesia. A dedicatória que os filhos incluíram na parte inicial do livro é emocionante: 'Ao nosso Pai, de quem houvemos o dom de entender a Essência da Vida e de nela revermos, como ele, a nossa alma./Os filhos.' Por outro lado, os quadros de Leonor, com a função de ilustrarem o mundo poético de Manuel Vaz de Carvalho, são figurações pictóricas referentes aos poemas relativos ao homem e à terra, à apologia da vida, à memória do pai e da mãe, às origens, paisagens da montanha, campos, jardins e casa doméstica, emoldurada por trepadeiras floridas. Há ainda tons e conjuntos habitacionais rurais e campestres, acrescidos de um típico retrato pintado em que o personagem é uma figura popular nos 'chavascais cercãos de Vila Boa', na região de Mirandela. Para rematar, finalmente, um quadro memorável que o pai apreciava sobremaneira e ao qual aludia como 'visão de écloga'. Este quadro que encerra a ilustração que Leonor faz dos poemas de seu pai, é a expressão objetiva da paz mansa dos campos rememorados de infância à mistura com a figuração conjunta de mata e de montanha, num colorido e detalhe que mostra realisticamente a beleza rural da terra de nascimento do inspirado poeta, extremoso pai, famoso advogado, caçador, tocador de guitarra e declamador.
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Quem é Manuel Vaz de Carvalho
O rico arquivo que a família possui sobre a história de vida do poeta Manuel Vaz de Carvalho e o cuidado extremo dos filhos pela memória do pai terminarão, acredito eu, por organizar e publicar, quando menos se esperar, uma sonhada, bem-vinda e rica biografia deste importante homem de letras. Graças a um esperado empenho e decisão de toda a família e principalmente dos filhos do distinto poeta, esse livro virá detalhar, com mais pormenores e com maior riqueza, aquilo que foi Manuel Vaz de Carvalho na vida civil, familiar, social, advocatícia, cultural, artística e venatória. E dar-nos-á elementos interessantes ainda sobre sua extraordinária sensibilidade como homem amoroso, amigo das pessoas, protetor dos humildes, da natureza e dos animais, da terra onde nasceu, da terra onde viveu, e como cantor telúrico das terras do Alvão.

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Origens

O Doutor Manuel Vaz de Carvalho nasceu na casa de Pombeiro, em Cerva, vila pertencente ao concelho de Ribeira de Pena, em Portugal, como declaradamente ele próprio registrou em 'O Moinho':'Cerva. Casal de Pombeiro, onde nasci.' Conheci o simpático poeta, numa de suas visitas a Agunchos. Ele, sua esposa e filhos, costumavam deslocar-se, nas férias grandes, até ao solar da casa do Cabo, propriedade das fidalgas D. Maria Engrácia e D. Ermelinda, tias de D. Teresa e minhas madrinhas . Causídico famoso e grandiloquente, nos foros de Vila Real, Porto e Norte de Portugal em geral, Manuel frequentara o curso de Direito na Universidade de Coimbra, no período conturbado da segunda guerra mundial, que durou de 1939 a 1945. Era muito inteligente, vivo e agradável, um homem franco, e bem disposto. Ao mesmo tempo, como diz seu amigo e biógrafo Ângelo Sequeira, era um homem de 'infindável cultura, fecunda imaginação, refinada educação e fino trato, docente e decente, humor numa verdadeira orgia de poesia, muitas vezes em apaixonada e convicta declamação'. Nesta 'infindável cultura' estava incluída uma atenção especial para o mundo da arte e da literatura. Segundo Sequeira, confirmado por testemunhos de familiares e amigos, era 'exímio na arte de tocar guitarra'. Os filhos, num texto magnífico intitulado 'quase uma biografia' publicado em 'Poemas do Afélio', contam que 'pelos quarenta e tal anos foi a Lisboa, bateu à porta de um banco para apertar a mão a Artur Paredes que o fitou, levantou uma tábua do balcão, passou do lado do serviço para o da guitarra. Depois veio também Carlos Paredes. Artur, Carlos e Alvim tocavam para ele, noite dentro junto à janela do 4°andar do 125 da Salvador Correia de Sá, casa da cunhada Maria de Lurdes, com varanda para o Tejo'. (Cf. Poemas do Afélio, págs. 7-8). Era um 'homem lúcido'. Num poema intitulado 'Eurobalbúrdia' faz uma 'crítica mordaz contra o 'desnorte generalizado' da União Europeia. O poema enumera as principais mazelas da eurobagagunça em que Portugal esteve metido durante os anos iniciais dos programas transnacionais da União Europeia. Há alusão à crise e são destaque, no poema, as greves, os problemas da agricultura, da pesca, dos transportes, e das finanças, que atingiram inicialmente o país dentro da nova União. Sua visão pragmática inclinada para defesa dos valores legados pela tradição, levou-o a estranhar 'a praga dos telefones' encarnada nos telemóveis (PA, pág. 58). Acima de tudo, era um homem agarrado à sua terra, à sua família, ao Alvão, aos costumes da terra e às 'paisagens natais'.
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A obra literária de Manuel Vaz de Carvalho

A divulgação dos poemas de Vaz de Carvalho foi feita em primeira mão junto de amigos e na tertúlia literária de que ele fazia parte em Vila Real. Aqui nasceu a primeira opinião qualitativa sobre sua poesia em terras de Trás-os-Montes. Formado por pessoas cultas que conheciam de perto seu talento poético, este grupo constituiu o marco inicial do conhecimento e da divulgação da poesia de Manuel Vaz de Carvalho. A confirmar o apreço que o público já tributava a Vaz de Carvalho vieram seus livros para garantirem o conhecimento e a oportunidade de uma leitura direta. Primeiro, surgiu o livro Poentes, publicado em sua juventude, onde já se definia uma vocação poética própria, definida, quase inata, e um estro poético mais do que promissor. A confirmação dessa vocação chegou na maturidade com a publicação de três obras fundamentais que passaram a constituir a base textual de estudo do caráter e do nível de sua poesia. São elas: Poemas do Solstício. Vila Real: Câmara Municipal, 2000; com segunda edição em Lisboa: Edições Colibri em 2011; Visão Alvânica. Poemas. Lisboa: Edições Colibri, 2006; Poemas do Afélio. Lisboa: Edições Colibri, 2010. A partir destas obras foi possível ver definir-se o trabalho analítico e crítico de profissionais da imprensa e de críticos literários publicado em periódicos, revistas e monografias. Aos poucos foi-se tornando palpável um ponto de vista inteiramente favorável ao talento do poeta. Entre essas vozes, enumeramos o artigo de Luís Neto publicado em Notícias de Vila Real em 23 de março de 2011 por ocasião da publicação da segunda edição de Poemas de Solstício e, em seguida, o depoimento de Manuel Cardona em Visão Alvânica bem como o texto apenso a Poemas do Afélio 'Quase uma biografia' assinada pelos filhos do Poeta. Semelhantemente, há que dar toda a atenção ao prefácio, de alto valor crítico, de Hercília Agarez aos Poemas do Afélio. Por sua vez, os textos de Sérgio Paulo Silva e de Ângelo Sequeira fazem parte deste conjunto de escritos pioneiros na atenção responsável pela valorização pública da poesia de Vaz de Carvalho. O trabalho de Sérgio Paulo Silva, surgido no n. 31 da revista Calibre 12,foi posteriormente reproduzido na contracapa da segunda edição de Poemas do Solstício. O texto de Ângelo Sequeira, faz a abertura da segunda edição de Poemas do Solstício. Acresce ainda o texto de Ribeiro Aires na contracapa de Poemas do Afélio extraído de Notícias de Vila Real (maio de 2006). Além destes textos que indicam a fase inicial da referência crítica à poesia de Vaz de Carvalho, é de inteira justiça fazer um destaque especial à contribuição dada pela monografia sobre a paisagem transmontana na poesia de Vaz de Carvalho de Ana Lavrador. Este estudo faz parte do esforço crítico de valorização da figura literária de Vaz de Carvalho. O louvor a esta monografia baseia-se, em primeiro lugar, no alto nível de investigação, de organização e de linguagem exibido pela autora na elaboração de seu estudo. Em segundo lugar, pela rigorosa metodologia científica empregada e pelo quadro bibliográfico de fontes referenciais exibido. E, finalmente, pela via de seleção com que este estudo entrou num foro universitário nacional e ainda pelo aspecto gráfico impecável e pela roupagem artística e crítica com que este estudo se apresenta ao público. Na sequência destes estudos, junto-me também eu, universitário, a todos aqueles que valorizam o talento poético de Vaz de Carvalho e teimam em prestigiar sua memória. Como base de meu estudo aproveitarei os ensinamentos que me deram famosos mestres lusitanos e brasileiros, de Aquém e de Além-Mar, sobre leitura, análise literária, crítica e hermenêutica. Entre eles, Afrânio Coutinho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro que defendia ostensivamente que 'literatura é texto'. Hernani Cidade, Professor da Faculdade de Letras do Porto nos tempos de Leonardo Coimbra e meu excelente amigo que me visitou em Brasília em 1972. Jacinto do Prado Coelho, com quem me correspondi e troquei separata de estudo sobre saudade e saudosismo em 1957. Agostinho da Silva, autor de Um Fernando Pessoa ( Porto Alegre, 1959) e de Reflexão à margem da Literatura Portuguesa(Rio de Janeiro/MEC 1956), meu mestre, de boa memória, e meu amigo que me trouxe para a Universidade de Brasília. Apoiado nesses mestres, meu roteiro de trabalho será fundamentalmente a leitura, a análise literária e a hermenêutica dos textos poéticos de Vaz de Carvalho. Pela naturalidade da construção poética, tenho a impressão de que o Poeta de Cerva já nasceu sob a proteção das musas e que, ao protegê-lo, o dotaram do maior dom que um poeta pode ter, que é a inspiração e a sábia competência para lidar com seus metros poéticos. Na esperança de que sua obra passe a ser mais conhecida, cuidarei de destacar alguns aspectos importantes desta interessante figura literária transmontana e nacional e mostrar destacados ângulos de sua poesia enquanto arte literária. A leitura atenta dos poemas associará a sua análise as interessantes notas e biografias que antecedem alguns textos poéticos. Essas notas revelam, por si sós, o espírito observador, sensível e culto que caracteriza o poeta Vaz de Carvalho.

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Natureza da Poesia

Não há melhor ajuda para analisarmos um livro de poesia do que ter na mão a teoria poética que levou um autor a construir seus poemas. Manuel Vaz de Carvalho diz-nos o que entendia por poesia: “A poesia existe imanente à vida e às coisas. O poeta tem apenas o poder, humano ou divino, de surpreendê-la, captando-a e transformando-a em mensagem. Ele tem, pois, para o ser, de aliar a expressão verbal à música íntima de si próprio”. Como primeira observação diríamos que um professor universitário de teoria literária não sintetizaria nem melhor nem com mais clareza o que precisamos entender como teoria poética. Ou seja, por outras palavras, o que precisamos entender sobre a associação que existe entre teoria e prática poética. A teoria elaborada por Manuel Vaz de Carvalho mostra-nos duas coisas: a primeira é que ele, como poeta, sabia, na prática, construir versos acabados, inspirados e sensíveis. A segunda é que conseguia visionar teoricamente a essência poética ou o modelo ou o arquétipo que condiciona o fazer-poético. Sua teoria é por isso um espelho exemplar para os leitores avaliarem sua poesia. Ela os habilita a uma melhor leitura analítica e compreensiva. E, não só. Habilita-os, também, a uma atenção e a uma emoção que os farão mergulhar nos abismos poéticos dos textos de Vaz de Carvalho.

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O eu poético e a idealização romântica
Para melhor entendermos a poesia de Manuel Vaz de Carvalho achamos essencial partir da tese de que ele é, acima de tudo, um poeta romântico ortodoxo. Há por isso que retomar alguns dos princípios que caracterizaram os poetas românticos clássicos.
Para o poeta romântico, o comando da criação estética e da visão de mundo, é regido por um 'eu' soberano que concebe o ideal como se fosse o real. Essa é a essência do idealismo poético que entrou na literatura romântica mediante a aplicação da concepção do eu proposta pela filosofia dos idealistas alemães Fichte, Schelling e Hegel. Manuel Vaz de Carvalho encarna este romantismo. Ele idealiza o mundo. Guiado pelo coração, pela emoção, pela imaginação, pela sensibilidade e pelo sonho, seu mundo será essencialmente subjetivo. Idealiza a mulher, idealiza a Humanidade, idealiza os valores da família, os valores da educação, os valores da bondade e da fraternidade, a cultura popular, a paisagem, os vários tipos que há de seres humanos.
Este eu central reduzido modernamente à fórmula unamuniana de um 'Yo, soy yo y mi circunstancia' ('Eu, sou eu e minha circunstância'), passou a conscientizar de maneira especial as novas condições existenciais do 'eu' poético romântico moderno. Partindo da base de que o ser humano é um 'ser que está aí' (um Dasein, na expressão de Martin Heidegger),ou seja, que é um ser existencializado, no espaço e no tempo, haverá de se entender que, graças ao comando deste 'eu', a palavra poética ficará marcada em todas as suas manifestações verbais, ao traduzir suas emoções e seus sentimentos.

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Ideal e choque da realidade

Este ideal romântico será o norte e o propulsor criativo do poeta. Ditará detalhadamente seu percurso de vida, será base de seus sonhos, de sua mobilidade existencial. No outro pólo dialético, contrário ao ideal e ao sonho, o poeta romântico sofrerá o choque frontal e brutal da realidade quando esta se lhe deparar com outro rosto, com o rosto real que tem, manifestamente diferente e em contradição com o rosto ideal concebido anteriormente pela sua imaginação. O poeta romântico terá desenganos, frustrações, sentirá revolta. Ao viver este choque de realidade, a tendência habitual no poeta romântico é sentir-se desiludido, derrotado, vencido num primeiro momento e pensar depois, na etapa seguinte, em evadir-se, fugir, evitando o contato com a realidade.

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A derrocada, o pessimismo, a angústia e o desespero

Ao deparar-se com a desilusão brutal que o choque de realidade costuma oferecer aos românticos, é natural que na desilusão a consciência sonhadora seja avassalada pela derrota, pelo sentimento de derrocada, pela melancolia, pelo pessimismo, pela angústia e pelo desespero. A tendência será a de generalizar a visão do mundo como caótica, cultivar o tédio, chegar ao sentimento do nada, acalentar o sentimento de vencido, de 'cisne caído', para, finalmente, invocar a evasão como saída. Estas são as principais formas com que, tal como os poetas românticos clássicos, Manuel Vaz de Carvalho, terminou por exprimir sua desilusão ao perceber que o idealismo romântico se tornou insustentável perante a verdade real. É dominante na história da Literatura esta visão romântica que se desdobra entre sonho e choque da realidade. Na Literatura Portuguesa, entre outros exemplos, encontramos essa duplicidade, por exemplo, no soneto Palácio da Ventura de Antero de Quental (Sonetos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, pp. 80-81). No poema, Antero narra o sonho de um cavaleiro andante, 'paladino do amor' buscando o palácio encantado da ventura'. O cavaleiro luta, prossegue no encantamento e sonho,mas no decorrer do tempo sofre a exaustão, torna-se vacilante, e quando ainda tinha a ilusão de encontrar o palácio da ventura, batendo à porta do palácio, sofre o choque de ver abrirem-se 'as portas com fragor', encontrando só, 'cheio de dor, 'silêncio e escuridão - e nada mais!'. A verdade do poema consiste em mostrar os dois pólos da vida, que são o sonho e o desencanto, e que geram em suas instâncias próprias, a alegria e a felicidade de um lado, e a decepção e o sofrimento, de outro.
Entre seus muitos e variados poemas, Vaz de Carvalho já mostra esta dupla face em O cisne (PA 19: 'O cisne nasceu [...] Sonhava delírios na alma ideal...[...] cresceu...e cresceu [...] PA 20 E voou...voou... e sonhou...sonhou.../ e lá foi redimido/ liberto iludido.../ amou os espaços[...] amou as estrelas/ amou as alturas/ abismos sem fim... PA 20 'sem mãe, sem regaço/ perdeu-se no espaço... e não mais voltou.../ 'cansou e caiu[...] E o cisne caído/ de branco vestido[...]caiu e morreu/ o cisne...sou eu 'PA 21
Em Visão alvânica há dois blocos em que este choque da realidade aparece com muita evidência trágica em vários momentos. São os blocos Delírios e Tédios. Em Visão do caos: 'Sinto-me regressado ao caos das origens.../ rastos de luta e sangue e glória e humilhação/ cruzam-se no meu espaço em túrbidas vertigens/ num pego abissal de vã contradição...'[...] ' Sofro a contradição das causas originárias/ de um Deus atormentado em lutas milenárias/ caído em desespero ao ter criado o Mundo!' VA 95. No poema Nada: 'Nada./ Passa por mim a vida/ nua, desfigurada/ sem destino e sem norte/ a caminho do nada/ a caminho da morte[...] sou uma figura estranha/ em que o tédio se entranha/ com esgares e perfis já de loucura...[...] VA 98. 'sou apenas a esfinge/ de um outro que em mim finge./ O negativo.../ ou a mentira do outro, que não sou...[...]VA 99. 'Viver não tem sentido/ é uma exceção ao Nada/ dentro de nossa alma atormentada/ em formas espectrais de sonho e amargura...'(VA 100). Como dissemos atrás, entre as várias temáticas que constituem o segundo pólo dialético do poeta romântico estão o desespero, o pessimismo, o nada, o tédio e a evasão. É oportuno lembrar que o desespero humano é uma tese existencial trazida ao palco da filosofia pelo dinamarquês Soeren Kierkegaard(1813-1855), em 1849. O pessimismo, por sua vez, é uma tese veiculada por alguns pensadores alemães e poetas franceses do século XIX. O Nada é uma temática que enraíza nos na milenar filosofia budista, posta modernamente em destaque em 1943 pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre durante a tragédia existencial vivida pela Humanidade na segunda guerra mundial(1939-1945). A obra de Sartre, que se tornou um clássico do existencialismo no século XX, intitula-se: L`être et le néant (O ser e o nada). Por outro lado, o tédio é um estado vivido e tratado correntemente em poesia pelos poetas decadentistas do final do século XIX e princípios do século XX. Da mesma forma, a angústia metafísica faz parte da psicologia do poeta romântico. Em 1844, o filósofo dinamarquês Soeren Kierkegaard publicou o conceito de angústia. Na modernidade entre as duas Grandes Guerras esse sentimento se estabeleceu como sentimento existencial forte, com tendência a diminuir depois que o terror das guerras mundiais decresceu.

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A evasão como saída, como fuga e como sobrevivência anímica


A evasão é outra temática adotada pelos românticos desiludidos. Na verdade, trata-se de uma temática que o modernismo brasileiro ainda cultuou em pleno século XX, como ficou evidente no poema Vou-me embora pra Pasárgada de Manuel Bandeira. Voltando a Manuel Vaz de Carvalho, diremos que nosso poeta transmontano teve uma vivência cultural de todas estas correntes europeias de pensamento, muitas delas, suas contemporâneas, incluindo o desespero, a angústia, o tédio, o nada, a derrota. Se partirmos em busca de poemas seus capazes de fazer soar esta contemporaneidade, não haverá muita dificuldade para isso. Além de 'Tédios', 'Delírios' 'Nada', 'Caos' ou 'Nenhum', registramos um soneto especial intitulado Evasão : 'Dai-me mais luz, mais espaço, mais ventura!/ dai-me mais fé na vida, mais amor!/ sou livre de viver minha loucura/ na alegria, na paz, na própria dor!'[...] VA 97. A evasão neste poema é a busca de um refúgio em sentimentos seguros e espaços humanos ideais. Nesses poemas de desencanto, de choque e de tédio, Vaz de Carvalho elabora o que na verdade podemos chamar de uma filosofia existencial. Na elaboração dessa filosofia, Vaz de Carvalho dá à sua palavra um sentido intimista. Fugindo de fora para dentro, Vaz de Carvalho mostra a fase dura do embate com a realidade que viveu, acusando o toque, mas tentando não se render a ela. Seu 'eu poético' aparece na forma existencial de tempo, de lugar e de ação, e torna-se operacional graças à base que encontra em alguns eixos primordiais. O primeiro eixo que dá equilíbrio e vida a todos os outros é o eixo afetivo centralizado no Eu, um anti-eu contraditório que carrega sinais poéticos de revolta mas que, se rende afetivamente, como criança, ao dirigir-se a Teresa em 'Indeferido' (VA 14) e 'Ela', onde diz: 'Eu vejo em ti bondosa companheira/uma daquelas almas que Deus cria/ para cobrir a nossa vida inteira/ de uma bênção de paz e alegria'[...]VA 15. Ou quando se dirige a seus filhos, a quem narra, em soneto a eles dedicado ('Meus Filhos VA 23) a travessia existencial por ele feita como jovem possuído por 'um sonho ardente':'Julguei-me um iluminado e fui um crente!/ até que a vida, impiedosamente/ me revelou o rosto corrompido/ e então compreendi mudo de espanto/ quanto era ingénuo e vão meu pobre canto/ que nem o próprio Deus tinha entendido!' (VA 23). Deste eixo afetivo, sustentáculo da grandiosidade deste Poeta, fazem parte fundamental suas casas de Pombeiro e Timpeira, e Cerva, sua terra natal. A consciência afetiva destes bens dão ao 'eu poético' um sentimento de pertença, igual ao que o ser humano sente por seu eido nativo, quando no inconsciente se planta a segurança identitária que nasce com a posse dos primeiros laços de origem: 'ditosa pátria minha amada (do Vaz...de Carvalho), 'terra minha que vives no meu canto', 'terra bendita', terra minha prometida, onde em sonhos de criança[...] vivi descuidos de infância[...] VA 48; 'Terra bendita esquecida/ nas caídas do Alvão/ Terra da Promissão' VA 50) VA 47... Neste eu poético sustentado pela afetividade, a evasão, após os duros momentos de tédio, de angústia ou de sentimentos decadentes de vencido e derrotado, desenha um refúgio num desejo mais intenso de luz, espaço e ventura, de fé na vida e de mais amor'(VA 97).
O eu poético sente em suas manifestações íntimas sua Home, sua casa, seu eido, sua terra, seus valores, seus amores, seus encantos, de acordo com as circunstâncias existenciais que se ofertam ao Poeta para ele rememorar em verso. A produção de Manuel Vaz de Carvalho assume, neste eixo, um tom bucólico e romântico, por vezes até de teor junqueiriano, com referências e cantos dirigidos à terra, aos rouxinóis, ao boieiro, ao moinho. Um segundo eixo, ainda na faixa do eu lírico e romântico, é constituído pelo entorno. que é traduzido pela terra, cães, meio ambiente e caça como paixão, evasão e distração.

9
Apologia da vida

Encontramos nos poemas de Vaz de Carvalho o contraste dos autênticos poetas românticos. De um lado, linda, vital e vivenciada, a apologia da vida. De outro, perfeitamente enquadrada na psicologia e nas características do escritor romântico, a angústia metafísica. No primeiro caso, o poeta assume a apologia da vida em versos mágicos, irmanado vivencialmente na verdade vital que transmite com muita sensibilidade e entusiasmo. Entenderemos isso mergulhando na leitura do bloco Apologia da Vida integrado em Poemas do Solstício: em Oração da manhã, puro, de toada junqueiriana, franciscana; em Prenúncio:'sinto-me apaixonado pela vida/pelo sol, pela cor, pelo luar[...] /sinto a alma das coisas agitar-se/num frémito de amor e exaltação/ (PS 38); em Novo dia: 'Acorda meu amor, já nasce o novo dia/ que o sol nos prometeu ouvindo a nossa voz'[...] PS 39; em Alvorada de amor: 'Quero que seja um dia imenso/ aquele do nosso amor!/ E há-de haver rosas brancas/ e papoilas vermelhas/ e searas em flor![...] PS 40; em Apelo à vida: 'Pára, vida, não vás! Eu não vivi ainda/ As promessas de ideal que em ti acreditei[...] PS 44; em Hoje: 'Não adies a vida, vive a vida/No dia de hoje em pleno acontecer!/Cada hora que passa não vivida/ é derrota sem luta - é não viver. [...] PS 45.

10
Angústia metafísica

A angústia metafísica é um capítulo típico e contrastante da clássica poesia romântica. Vaz de Carvalho como homem vivido e pensante fez refletir, em parte de sua poesia, acentuados tons da filosofia existencial onde a dúvida, as ansiedades metafísicas, as incertezas, os pessimismos e as angústias, dominam a forma poética. No clima verbal de certos poemas parece perceberem-se ecos casuais de Antero de Quental, assim como tédios da poesia decadente do final do século XIX, ou até os vestígios do nirvana budista. Exemplos próprios dessa poesia existem no bloco Tédios de Visão Alvânica. Entre eles, registramos Caminhos sem regresso: 'Vai longa a vida...e a vida também cansa/ é uma longa e penosa enfermidade/O quanto se deseja e não se alcança/mantém em nós a chama da ansiedade/[...] VA 119; O nenhum: 'Sou um mundo insular.Um solitário/vagabundo do espaço irreal, disperso/ sem órbita nem sistema planetário/cruzando estrelas,a esmo, no Universo/Lanço a minha mensagem, o meu grito/é um apelo agónico, já rouco/ que se escoa sem eco no infinito/ nas distâncias do nada...sou um louco[...] Quero voltar ao antes dos inícios/anterior à vida, sem sentido algum/ não deixar de mim sequer indícios/ quero ser o meu 'nada' - o meu 'nenhum'(VA 120); Caminhos do nada: 'Vou tropegando ao longo das estradas/ que me não levam a nenhum lugar[...]vão na minha jornada outros viandantes/ de olhos vagos dobrados sobre o chão[...] Sigo com eles ao acaso, a descomando[...] E nesta muda e lúgubre jornada / sou mais um desertor em debandada/ Na horda silenciosa dos vencidos.' VA 121; Regresso do nada: 'Treva eterna da noite tenebrosa/ em que o meu ser precário e contrito/ se dissolve na angústia dolorosa/ dos mistérios de Deus e di Infinito..../Noite eterna de formas rarefeitas/ em que o meu pensamento se inconsuma[...] Noite anterior às formas, à existência[...] Eu quero a tua paz eterna e calma/ dissolve no teu nada a minha alma/ O nada absoluto - a indimensão de Deus.' VA 122. O poema Legado marcando uma vontade última na despedida não deixa de acentuar três coisas importantes: a primeira é a identificação que o Poeta faz com a Natureza: '[...] terei a luz do sol e o cântico das aves/ num perene Te-Deum de exaltação da vida'; a segunda é o destaque do ciclo Vida-Morte como inerente ao ser que o poeta admite que também se cumprirá nele; a terceira, como um gran finale, que 'em vez de angústia e nada/ nos seja um grande alívio a mística alvorada/ cheia de paz, cheia de amor, cheia de Deus' VA 123

11
O Homem e a Terra

O primeiro bloco do livro Poemas do solstício contém poemas sobre o homem e a terra. É composto pelos sonetos Império da Pedra, - um soneto cheio de magia telúrica com seu epicentro na paisagem serrana de Lamas d’Olo -, Alvão, Fragão, Fronteiras, Cântico pagão, A velha cerejeira, Exoração, O cosmonauta, e também pelos poemas Terra feita e Terra minha. Interessantíssimas aqui e ali, nos vários blocos, as biografias, as notas e as informações sobre terras, lugares, meio ambiente, casa de Pombeiro, em Cerva, onde nasceu, notas que são crônicas por vezes ou prosas de alta performance como a que precede Cardenhos e Canção da choça, biografias poéticas de cães e burros, crônicas e episódios de família, que o autor nos oferece e que normalmente historiam a gênese do poema, como acontece com Fragão: 'Um dia, a minha filha Leonor, disse-me esta injúria: 'O pai é como um fragão da serra do Alvão. Ninguém o arranca daqui...Corei e confessei: 'Eu sou como um fragão da minha terra:/quando regresso à origem das imagens/ ao convívio das íntimas paisagens/ aos mitos do luar, aos vales, à serra/ E oiço a voz dos silêncios perfumados,/ em nocturnos azuis do céu sereno/ volúpias seminais que o vento ameno/ traz até mim dos agros fecundados,/ Sinto que volto ao mundo das quimeras,/ ao renascer dos tempos de outras eras/ da infância descuidosa que vivi.../ E sou um velho fauno regressado/ ao meu chão duro e forte - demarcado/ onde há cem milhões de anos que nasci! ' (PS 23). O mesmo se passa com Cântico pagão que é antecedido pela seguinte história: 'Cerva, no meu agro de Quintela. Semeada de batatas. Sol a prumo. O senhor Albino, intendente da feitoria, abria o rego e eu tapava. A filha, de azul, 'punha' as batatas a compasso. Espessa manta de esterco de curtimenta, a tresandar 'às origens'. Meio dia. 'Ela' chamou da sacada: 'Manuel e Senhor Albino, venham, o almoço está na mesa'. Arreamos. O Sr. Albino (já dito intendente) ergueu os lombares derreados das setenta translações e, lançando um olhar de bênção às leivas, disse: 'Ó senhor Doutor, isto é que vai dar batatas!'. Era a profissão de fé fisiocrática. Ainda antes do caldo lavrei em acta:
'Se acreditas na terra que semeias/ E no sol que a fecunda e te alumia/ Se acreditas na vida em que te anseias/ Que morre e que renasce dia-a-dia/ Se bendizes a água e as estrelas/ E o amor que te abrasa e perpetua/ Se te sufoca a angústia de entendê-las/ Da humana condição, que é minha e tua/ Se a tua voz se humilha e emudece/perante o sol esplendente que amanhece/Teus olhos deslumbrados de pagão,/ A paz seja conosco! Solidários/ Cumpriremos iguais nossos fadários/ Eu quero te abraçar - és meu irmão'! (pág. 29).
Mas há outros poemas contando a história da gênese do poema, geralmente colocada estrategicamente sob a forma de minicrônica para que o leitor a possa ler antes do poema propriamente dito. É o caso, em 'Poemas do Solstício', de Terra Feita( PS 24), Terra minha(PS 26), Exoração(PS 31), Alvorada de amor(PS 40), 17 de março(PS 52), Cardenhos( PS 59), Canção da choça(PS 62) e outros. Em 'Visão Alvânica', temos essas minicrônicas em Aniversário (VA 34), O Antropopithecus VA 35), Primavera (VA 40), Árvores - minhas irmãs(VA 41), Sol nascente (VA 42), Cantata dos cucos (VA 43), Uma grade na Saínça VA 61), Caçada em Bustelo (VA 63), As dinossáurias (VA 66), A morte do cão (VA 68), O Pelourinho (VA 81), Dolor (VA 87), Noé & Companhia (VA 89), Cruz de sangue (VA 90), Arena e Morte (VA 91), Coimbra (VA 114), Caminhos do Nada (VA 121) ou notas (Terra minha (VA 47), Cantilena do boieiro (VA 53), O Moinho (VA 54), Revoada (VA 65), Elegia de Setembro (VA 71), Ao Santo Leonardo Galafura (VA 88), Última mensagem de Moisés (VA 92), Melancolia azul (VA 108), Canção Inacabada (VA 113) ou dedicatórias (Visão alvânica (VA 59), Carvalhos & Companhia VA 77). Em 'Poemas do Afélio' podemos considerar minicrônica o curtíssimo texto que antecede o soneto em homenagem ao Francisco Botelho (PA 35) e dedicatória 'À Teresuca com amor' em 'Sega Rega' (PA 62)

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Sensibilidade poética, memória e lembranças

O terceiro bloco de Poemas do Solstício contém os poemas subordinados ao título “A meu pai e minha mãe”. Idolatria é um poema de memória carinhosa, em 7 quadras. Abre a série apontando para 'a dúlcida lembrança do místico olhar da mãe' e o soneto Regresso celebra a Casa de Pombeiro onde há o domínio da figura materna que enche de lembranças todos os espaços vazios: 'Dera tornar a ver-te e que um dia voltasse/ ao perdão do teu colo e que escutasses/ as mágoas que só tu escutar me saberias!' (PS 51). Os poemas 17 de março, Campa rasa, Sonambulismo, Escambo de lágrimas e Casa antiga completam o bloco.

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Afetividades associadas

Constata-se em Poemas do Solstício como Vaz de Carvalho é um poeta sensível sem segredos. No bloco Origens, desde Idolatria onde retrata a figura da mãe, símbolo de bondade, amor e perdão, até Regresso, dedicado à casa de Pombeiro, até 17 de março e Campa rasa onde poetiza a figura do pai, reúne e canta afetividades variadas e associadas. Há diálogos com gente do povo, introduções explicativas e poemas. Cardenhos vale como arquivo de linguagem interiorana, regional e serrana. O poeta alcança os fundos da história, evocando 'velhas casas da serra abandonadas/ descolmadas sem portas sem janelas/ como caveiras ocas descarnadas/ tugúrios de almas penadas/ onde pernoitam estrelas.../ Quero-vos habitar...mansões antigas/ de desertores de escravos e heróis/ inçadas de codessos e ortigas/onde o tempo parou sem antes nem depois.../ Vós fostes os abrigos milenários / de antigas gerações que padeceram/ os grandes cataclismos planetários/ onde a Vida e a Morte aconteceram[...] (PS 60). Canção da choça é um hino à sua terra natal. O bloco Cães e burros é parte destas suas afetividades associadas à arte poética. Em todos os nove sonetos de que se compõe o bloco, o sujeito poético é o cão. No primeiro, 'Cão - O paleolítico' (PS 69), canta assim: 'Não desprezes o cão - teu leal amigo'/chama-o de irmão e afaga-lhe o focinho/ não lhe dês cárcere, leva-o é contigo/ alegre a dar ao rabo, a abrir caminho! /Ele vive a adivinhar teus desejos/ ele merece do teu pão e o teu teto/ faz tu por entender o seu dialeto/ só de grunhidos broncos e boquejos!/Ele defende o teu eido e o teu cardenho/ como se fossem dele, a duro cenho/ só em troca de restos e abrigada./ Não o deixes noitar ao léu na lama/ Dá-lhe ninho aos pés da tua cama/ e que ele te acorde a mimos de patada!' . A Caça foi parte importante das vivências do advogado Poeta e constitui por isso uma temática à parte. O bloco abre com uma narrativa em verso, 'Uma caçada em Vila Boa' (PS 81).Depois vem 'Galáxia'(PS 82), soneto-ata de um acontecimento ocorrido em Fragas de Anta: 'vento furioso, acompanhado de granizo pesado e faíscas. O poeta teve de abrigar-se, agachado, 'a contra-vento duma anta' e deixou do episódio este canto (PS 82): 'Vão em louca farândola exangues folhas mortas/ da última Primavera que passou,/e anda o vento a uivar faminto pelas portas/ apátrida e sem Deus, que sua dor voltou./[...]. Depois vem 'A da Galinhola'(PS 83). Em 'Velhos trastes(PS 86) pede humildemente: 'Não me tires as coisas já velhinhas/ que são símbolos mudos do meu ser/ estão gastas acabadas... mas são minhas!/ Quero-as no meu espaço até morrer'[...] PS 86
Ao optar pela constituição de um bloco aparte que apelidou de Terra Santa (PS 85-96), Vaz de Carvalho, mostrou-nos mais uma vez, o carinho que devotava à sua terra. Faz-nos lembrar o culto que Junqueiro nutria pela vida dos trabalhadores em 'Os simples'. Vaz de Carvalho abre com 'Terra minha', também publicado em 'Visão Alvânica': ' Terra minha que vives no meu canto/ abrigada a antiquíssimas montanhas/ onde repousa o génio humano e santo/ dos ancestrais caídos nas entranhas [...] PS 89 e prossegue com O Caminheiro: ' Longes caminhos der além da serra/ de ruins trilhos que caminhei[...] PS 91-92/, Reminiscências: 'Ermos caminhos de além da serra/ eu não vos posso já caminhar/ dai lá saudades à minha terra/ promessas minhas que hei-de voltar'[...] PS 93-94; Nostalgia: 'Mas por destino descaminhado/ deixei infame meu vale fecundo,/ deixei meu berço desabitado/ tornei-me apátrida a corta-mundo'[...] é composto por quatro poemas. Em 'Poemas do solstício' há outras afetividades associadas, como Lembranças que reúne importantes poemas para análise e interpretação do eu poético de Vaz de Carvalho.

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A arte versificatória

Poeticamente, os livros de Manuel Vaz de Carvalho são tão cheios de interesse literário e cultural que mereceriam uma maior expansão, leitura e estudo. A arte versificatória de seus poemas é variada. Temos poemas como Indeferido composto em estrofes de seis, quatro, três e cinco versos. em variado e livre número de sílabas (VA 14). Sonho de Infância (VA 25) é composto com duas estrofes de cinco versos, uma de dois e três de quatro versos.Cantata dos cucos (VA 43-44) consta de 8 quadras: é uma composição em redondilha perfeita ou maior, em versos heptassilábicos, com rima cruzada de abab. Terra bendita (VA 48-50) tem 17 quadras em versos heptassilábicos. De igual forma, ainda em redondilha maior ou perfeita, os versos heptassilábicos de Os rouxinóis (VA 51), em 5 quadras, em rima cruzada abab. Achado histórico (VA 52), composto de 5 quadras, em heptassílabos. Cantilena do boieiro (VA 53), redondilha maior, com quatro quadras em heptassílabos. Por sua vez, O Moinho (VA 54-55) é composto numa variedade de estrofes e variedade silábica dentro da mesma estrofe: duas estrofes de quatro versos. A terceira e quarta de seis. A quinta de quatro, a sexta de dois, a sétima de quatro, a oitava de cinco, a nona de quatro. O poema Visão alvânica (VA 59-60) consta de 8 quadras em onze sílabas (undecassílabos). Em Uma grade na Saínça (61-62) e Caçada em Bustelo (VA 63-64),o Poeta volta à redondilha maior. Em Pelourinho VA 81-83), Vaz de Carvalho opta pelo terceto, em heptassílabos também. Fazendo uma conta por alto, num livro como Visão alvânica temos cerca de 37 sonetos contra 26 composições em estrofes livres.
No meio de tudo, é importante observar que, de uma maneira geral, é o soneto que domina. Neste sentido, Vaz de Carvalho alinha no classicismo petrarquiano adotando o soneto em decassílabos. Estando na linha de Petrarca, está também na linha de Camões e dos melhores sonetistas portugueses, dentro da tradição aberta por Sá de Miranda, e continuada depois por Camões, por Frei Agostinho da Cruz, Bocage, Antero de Quental, Florbela Espanca e outros. Esta constatação depõe em favor da qualidade poética de nosso vate transmontano.


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Riqueza expressiva e variedade lexical

Um outro aspecto a ressaltar é a riqueza, a variedade e a criatividade lexical de inconfundível tom pessoal que marcam seus poemas. Alguns são registros regionais transmontanos. Mas ao lado de termos regionais que mostram a riqueza de linguagem do poeta, temos a diáfana expressão clássica portuguesa, que acompanha seu talento expressivo e criativo. Fizemos uma pequena incursão pelas suas obras, fomos de Poemas do solstício até Visão alvânica e Poemas do Afélio para confirmar este aspecto e ficamos admirados da beleza lexical que encontramos.Na lista dos termos que registramos notamos em “Cantata dos cucos” um belo poema em heptassílabos produzido em homenagem à Ana Mafalda, sua neta, emoldurado com termos incisivos e próprios: 'casa sobradada, cantorio, cantaréu, olhos noiteiros', entre outros. Não é o momento para um levantamento completo de expressões próprias e termos lexicais utilizados por Vaz de Carvalho em seus textos poéticos. Mas fica a observação de que há um glossário típico do léxico em sua obra, e que neste glossário há termos novos com outros de extrema importância dignos de figurarem no Dicionário geral de Língua Portuguesa no qual estão interessados os oito países da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Entre esses termos, alguns deles, de criação própria de Vaz de Carvalho: 'paz idílica das leivas' PS 22 volúpias seminais PS 23 agros fecundados PS 23 fragão PS 23 muragalho da vinha PS 24 agitação orgásmica PS 24 pólenes sensuais PS 24 tenrais outoniços PS 24 seivas capitosas PS 25 cincinelas PS 27 esfolhadas PS 55 lavradas PS 55 dúlcida lembrança PS 50 vivência insubstancial PS 50 9 saiméis PS 61 PS codesso PS 60 transumância PS 59 PS cardenhos PS 59, fundeiro PS 62 quinchoso 62 cercão PS 62 oblata isíaca PS 111 PS algar PS 62 fragada PS 62 escano PS 94 tremonha PS 94 segada PS 94 esfolhadas PS 94 quentor PS 62 PS 64 valhacoiro PS 63 janelo PS 63 montado PS 63 alapado PS 63 colmilho PS 63 mezio PS 64 pousio PS 64 chibo PS 64 pampa PS 64 hidrângea PS 65 ulmo PS 65 desdobar PS 65 niveal PS 66, chão saibrento 81 povoléu 81 encosta das estevas PS 81 escorria do cachaço às grevas PS 81 chavascais cercãos PS 81 peso do armental PS 81 aganado PS 90 tremonha PS 94 segadas PS 94 brenha PS 95 ensalmos PS 93 arribadas PS 91 montanheiro PS 91 destrilhado PS 90 caçaria 83. fedência VA 81 diúculo VA 71 refego VA 71 entristecente VA 71 esbangado VA 71 aquinhoar VA 68 charca VA 66 batuxar VA 66 fieiro VA 66 povoléu VA 63 pedonal VA 63 cabrada VA 63 pragana VA 63 esvasar VA 89.

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Lirismo profundo

Dando continuidade ao nosso comentário, importaria ressaltar o lirismo profundo e inigualável que existe em poemas como Alvorada de amor, por exemplo: 'Quero que seja um dia intenso/ aquele do nosso amor/ E há-de haver rosas brancas/ e papoilas vermelhas/ e searas em flor'[...] PS 40, ou Arco-íris (PA 67) e tantos outros.

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Notável tom telúrico

Outra marca muito forte é o tom telúrico e alvânico da poesia de Vaz de Carvalho. A geografia montanhosa e serrana de Cerva e do Alvão, é terra sua. Faz parte congênita do seu poetar. Com muita habilidade e arte, Vaz de Carvalho soube explorar como ninguém esta alma alvânica que lhe está no sangue e que explode em sua obra. A ajuntar a isto, sua condição de caçador apaixonado leva-o a frequentes incursões pelos montes, vales e serras. Estes percursos proporcionam-lhe surpresas e ensinamentos que sabe reverter em poesia e narrativa poética. Poderíamos dizer que, de maneira paralela ao Poeta Teixeira de Pascoaes, que canta o Marão, Vaz de Carvalho canta o Alvão, serra irmã, igualmente transmontana. Cantando o Alvão, canta sua terra amada, Cerva, em “Terra minha”:'Deixai-me ser menino/ em minha terra moça/ onde o sol tem mais brilho/ e o luar é mais doce.'[...] Deixai-me ser menino/ na terra onde nasci'[....] 26. O bloco ' Timpeira, Alto das Cruzes', parte importante do livro Visão alvânica, traduz toda a outra parte da inspirada alma de Vaz de Carvalho que não podemos omitir aqui.O soneto 'Viver' dá o tom da simbolização profunda do que significou em sua vida a Timpeira, onde viveu tantos anos em família e criou seus filhos. 'Como é belo viver! Viver a vida/ao clarear das madrugadas suaves/ ao transpirar da terra amanhecida/ e adormecer ao gárrulo das aves!/ Ver ondear as searas florescentes/ ver ondear os fulvos milheirais/gorgolejar ribeiras e nascentes/ao silêncio sonâmbulo dos pinhais!/ Esquecer o tempo! E numa entrega de alma/ aos remansos edénicos, à calma/ na placidez do apagar do dia.../A vida é uma dádiva divina/ chama da eternidade que ilumina/ a verdade de Deus e da alegria!' (Visão Alvânica, 39).

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Ternura e fraternidade franciscana

Entre tantos aspectos a destacar na poesia de Vaz de Carvalho torna-se notório, entre os profundos tons que a caracterizam, a confraternização franciscana com a natureza e com os animais. Poemas como O cão e Oração da manhã têm esta profundidade e irmanação. Última mensagem do cão, em 'Poemas do solstício' é comovente: 'Perdoa ter morrido assim tão cedo/ eu bem vi teus olhos marejados/ a fitarem os meus embaciados/ no infinito sem luz, já frio e quedo...[...] PS 77. A ternura exalada do soneto ' cão - o paleolítico' pode ser avaliado como um paralelo interessante com a narrativa exibida no livrinho Fiorettti sobre o lobo de Gubbio amansado por S. Francisco de Assis. A natural fraternidade de S. Francisco para com a fera consegue vencer a ferocidade do lobo de Gubbio. O soneto de Vaz de Carvalho pratica esta fraternidade: 'Não desprezes o cão - teu leal amigo!/ Chama-o de irmão e afaga-lhe o focinho/não lhe dês cárcere, leva-o é contigo/alegre, a dar ao rabo, a abrir caminho' ( PS 69).Oração da manhã, em 'Apologia da vida', coincide com a sensibilidade de Francisco de Assis em “Cântico do irmão sol”. Em Visão Alvânica Vaz de Carvalho escreveu o soneto “Árvores-minhas irmãs” irmanando-se com a natureza. Nesse e em outros sonetos, o Poeta aproxima-se de São Francisco como amante incondicional da Natureza. Com intensidade, mostra-se ainda em “Alvorada de amor”, “Carta ao meu filho” e “Apelo à vida”, um poeta sensitivo que adivinha o pulsar da vida e a grandeza do Universo nas vozes que capta. Estes e outros aspectos latentes nas letras poéticas de Vaz de Carvalho são convidativos para que todo aquele que gosta de poesia e de literatura e, de maneira especial, os professores, os jornalistas, os críticos literários e os formadores de opinião, leiam e divulguem este poeta transmontano que é um artista da palavra com muita qualidade.

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Florilégio

'Não adies a vida, vive a vida!/No dia de hoje em pleno acontecer!/Cada hora que passa não vivida/ É derrota sem luta - é não viver' (Poema Hoje, PS 45)
Quero que seja um dia imenso/Aquele do nosso amor! (Poema Alvorada de amor, PS 40)
'Acorda meu amor, já nasce o novo dia/Que o sol nos prometeu ouvindo a nossa voz!/ Vem comigo beber as seivas da alegria/ Pelos campos em flor, cingindo as mãos a sós' (Poema Novo dia, PS 39)
'Sinto-me apaixonado pela vida/pelo sol, pela cor, pelo luar/E sinto em mim a infância redimida/Na harmonia irreal do teu fundente olhar! (Poema Prenúncio, PS, 38).
'Adeus, adeus, vou-me a viver a vida/ por longes terras onde houver cantares/ acordar mitos de uma fé perdida/ amores proscritos que não soube amar...' (Poema Evasão, PS, 37)
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SIGLAS
empregadas nas citações:
PA = Vaz de Carvalho,M. Poemas do Afélio
PS = Vaz de Carvalho, M. Poemas de Solstício
VA= Vaz de Carvalho, M. Visão Alvânica.

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