Convocados, iniciaram os amigos, “sotto voce”, íntima conversação que resultaria em diversas tomadas de posição frente aos trabalhos que desejariam desenvolver junto aos encarnados.
Começou Deodoro a avaliar os méritos das diretrizes da palestra:
— Tento compreender a razão de se insistir nas leituras e nos estudos. Dá a impressão de que a venda dos livros é o que há de mais importante. Alguém poderia falar a respeito?
Joaquim tomou a palavra:
— Meus caros, a literatura espírita tem ajudado muita gente, porque os autores, tradutores e médiuns, em geral, nada ou muito pouco arrecadam com os seus livros. Muitos editores também pouco lucram. Mas o volume das vendas é significativo, podendo dizer-se que somente as obras psicografadas por Chico Xavier devem roçar pelos vinte milhões de exemplares. E o virtuoso médium está rico? Só não vive na miséria porque soube criar amizades vigorosíssimas, que lhe dão amparo na velhice e na doença. Para onde foi o dinheiro dos direitos autorais? Para centenas de instituições de ajuda, como orfanatos, hospitais, sanatórios, maternidades etc. É seguramente a maior obra fundamentada no lema “fora da caridade não existe salvação: . Mas o que você está realmente querendo saber é se o centro espírita também pratica a caridade por meio dos valores auferidos na venda de livros. Parcamente, contribui esse setor para efeito do movimento financeiro da instituição, tão ínfimo é o percentual que se impõe como seu no preço final do produto. A insistência da leitura e do estudo deve buscar-se em outros elementos, tais como a origem da doutrina, que teve como berço a culta França, por meio de professor de nível universitário. Como tudo teve início através dos textos que Kardec preparou e publicou, não podemos desconsiderar o fato de que, para assimilação das lições neles contidas, as pessoas têm de ser letradas e acostumadas a decifrar a linguagem escrita. Isto mantém forte correlação com a advertência da oradora a respeito da preferência das pessoas por ficarem diante de um aparelho de televisão a dedicarem aquele tempo de lazer para os livros.
Deodoro desejou fazer um reparo:
— Aceito tudo quanto você disse, Joaquim, mas reservo-me o direito de suspeitar de que o momento cultural presente estimula sobremaneira o comportamento contemplativo, na atração que se exerce através das imagens cinemáticas, princípio psicológico baseado no interesse que desperta nos indivíduos o movimento. Bem comparando, é como se dá o êxtase da observação do crepitar das fogueiras ou do curso tumultuoso dos rios. Quando não existiam tantos apelos visuais, não é verdade que as pessoas acorriam ao teatro ou ao salão de danças? A partir do meu raciocínio, não existe uma contradição interna entre a censura da oradora e a ausência de atrativos que a reunião oferece? Não seria de interesse dos divulgadores da doutrina que utilizassem os recursos modernos dos estímulos tecnologicamente desenvolvidos, como quando inseríamos em nossas aulas o que denominávamos de motivação exterior? Não são os padres muito mais espertos ao enfeitarem os salões de cultos com imagens, flores, incenso, música e os aparatos suntuosos dos ritos? Bem compreendo que o cerne da doutrina espírita está nos conceitos e estes só podem fluir para os procedimentos evangelizados através da leitura e do estudo. O pessoal da casa espírita põe no ar, antes das reuniões, suaves melodias, pensando em tranqüilizar os espíritos para o recebimento das informações. Concordo que assim seja. Mas não posso recriminar os cultos protestantes, por exemplo, que ampliam a sonoridade a graus quase insuportáveis, para a indução do público à concentração unívoca e esquecimento de todos os outros sentidos. Não estou censurando ninguém. Estou tão-só levantando uma questão. Ou não se interessam os dirigentes espíritas por atraírem todo tipo de pessoas, exercendo, a rigor, certa discriminação cultural?
Roberto levantou a mão, solicitando permissão para responder:
— Deodoro tocou num ponto crucial do espiritismo. Como a doutrina é evolucionista, ou seja, acredita em que todas as criaturas estão sempre crescendo espiritualmente, e como coloca o uso do livre-arbítrio como conquista do espírito humano, não se sente na obrigação da catequese, nos termos em que púnhamos nós os sacerdotes católicos, que críamos que fora da Igreja não haveria salvação. Também procede com maior abertura a Reforma protestante, aceitando quantos desejem partilhar da alegria ou da felicidade de viverem em comunidade sob o signo da mesma fé. Claro está que a mentalidade humana é crítica e sempre nos surge, como ocorreu a Deodoro, a suspeita de que tudo se faça por dinheiro, porque é o vil metal que proporciona as melhores condições de gozo material da vida. Ponto pacífico. Não nos cabe argumentar em defesa de ninguém, como também não nos afeta aqui, no espaço espiritual, a crítica que se fazia às religiões. Cada qual sabe de si mesmo e terá de literalmente pagar ou devolver figuradamente as importâncias que subtraiu do erário eclesiástico. Ora, vimos que o dinheiro não move os mecanismos das casas espíritas de pendor kardecista, mas a vontade de adquirir prosélitos ilustrados pelos conhecimentos doutrinários, porque, sabendo que sem caridade não existe salvação, precisam ampliar o quadro dos que contribuem em espécie ou em trabalho para que haja cada vez maior possibilidade de atendimento aos infelizes que batem à porta do centro pedindo comida, agasalho e remédio, como ainda ajuda nos setores educacionais e psicológicos, tornando cada centro em local de forte tendência benemérita, misto de refeitório, orfanato, escola, hospital e clínica psiquiátrica, tanto que as diretorias se organizam segundo vários departamentos, um dos mais importantes o de assistência social.
Deodoro interveio:
— O nosso bom amigo Roberto volta-se para os aspectos práticos, mas é preciso não esquecer jamais que o principal, em função de nossa participação nos trabalhos dos mortais, está no atendimento dentro da esfera espiritual. Aqui, mais do que em qualquer outro departamento, sem qualquer depreciação de todos os aspectos científicos que se vinculam aos trabalhos de benemerência, é preciso que se desenvolvam as leituras e os estudos, que não poderão obter-se no ensino regular propiciado pela sociedade laica. Há institutos de nível superior?
Coube a João esclarecer:
— Algo como uma Faculdade de Espiritismo?
— Sim.
— Temos notícia de que diversas federações espíritas estão empenhadas na montagem curricular de curso superior completo. Atualmente, salvo falha minha, pois não pesquisei o assunto, existem matérias definidas em alguns cursos de caráter científico voltados para a Parapsicologia. Mas estas considerações, creio eu, estão fugindo das análises que programamos realizar a partir da conferência.
Arnaldo se fez ouvir, finalmente:
— A tanto nos conduz o nosso teólogo. Pois desejo observar que, modestamente embora, participam dos cursos levados a cabo pelos centros espíritas muitos médicos, advogados, engenheiros, professores, enfermeiros e mais gente de nível educacional superior, oferecendo gratuitamente os seus préstimos profissionais para a assistência dos carentes, bem ainda a luz de seu discernimento para as reflexões de caráter metodológico, na apreciação dos pontos da doutrina. É o que dá este tom azulado claro à atmosfera fluídica, porque são entidades encarnadas que compreenderam a importância das palavras de Jesus de que o amor é a condição da eterna felicidade nos páramos quinta-essenciados dos círculos mais evoluídos. Não nos importará, de fato, que muita gente tenha vindo atrás dos eflúvios magnéticos dos passistas e que as palavras da oradora se percam, porque ninguém se apresentará para matricular-se nos cursos da casa. O que noto é a paz nos corações confiantes em que Deus é pura misericórdia.
Hermógenes se deixou enlevar pelas expressões animadas do colega:
— Muito bem colocado, amigo. É importante que tenhamos um professor erudito a nos indicar o caminho da verdade, segundo os dispositivos intelectuais de que estamos municiados. Mas também é particularmente significativo que haja quem nos lembre de que os sentimentos, no final de tudo, vão orientar a nossa esperança em alcançar o beneplácito dos protetores que por nós velam e que nunca nos faltaram. Graças a Deus!
Enquanto todos davam graças a Deus, também a conferencista encerrava a palestra:
— Graças a Deus!
O dirigente da reunião fez atenuar a luz e, rapidamente, agradeceu à amiga que trabalhara pelo progresso moral da comunidade, pediu que as palavras dela não se perdessem no vácuo dos interesses imediatistas da vida corpórea, orou contrito um pai-nosso em agradecimento ao apoio dos guias e protetores, solicitou que os da esfera maior dessem o seu quinhão indispensável para que os trabalhos dos passistas se realizassem em plenitude de saúde espiritual e convocou o povo para que, ordeiramente, obedecesse às duas jovens que iriam organizar a fila para a saleta contígua, onde todos seriam atendidos.
A luz voltou a ser acesa e a música a soar, imprimindo ao “Tugúrio do Divino Amor” clima de respeito e de solidariedade, como se ali se reunissem encarnados e desencarnados para a confraternização ideal do cristianismo. Muitos dos presentes se conheciam e se cumprimentavam, enquanto várias pessoas procuravam a conferencista para perguntas pertinentes aos temas doutrinários.
Alfredo, que se mantivera alheio aos debates, interrogou o grupo de chofre:
— Vocês notaram como Francisco, Eugênio e Tomé organizaram o cerco aos malfeitores que desejavam desviar a atenção de seus obsidiados encarnados?
Ninguém prestara atenção nos aspectos técnicos do cerceamento da liberdade dos obsessores.
— Recomendo-lhes que, assim que um deles estiver disponível, descreva o processo utilizado, principalmente ao meu colega Arnaldo, pois se trata de procedimento que nós desconhecemos.
Nesse momento, chegou Francisco com largo sorriso nos lábios:
— Tiraram bom proveito da estadia no centro?
Deodoro tomou a iniciativa da conversa:
— A sua pergunta sabe-me a despedida. Estou certo?
— Claro está que vocês teriam muitas outras atividades que mereceriam examinadas detidamente. Mas não lhes faltará oportunidade, em futuro breve, de acompanhar a vida nos dois planos dentro dos centros espíritas. Se algum de vocês se julgar apto a ajudar na sessão de passes, não se acanhe. Podem também simplesmente assistir ao evento, mas com nenhuma curiosidade, apenas predispostos a oferecer as suas vibrações mais puras aos que estão operando os aparelhos magnetizadores.
Deodoro desejou saber se eram os médiuns que estavam recebendo a nomenclatura diferenciada ou se existiam verdadeiramente objetos com tal virtude.
— Embora muitos chamem os mediadores encarnados de aparelhos ou de instrumentos, referi-me aos objetos construídos com tal finalidade. Vamos até lá?
Everaldo expôs o seu medo:
— E se perturbarmos os efeitos das aplicações energéticas?
— Eu avisarei e vocês restaurarão o equilíbrio vibratório.
Antes, todavia, de serem admitidos no recinto fortemente iluminado em âmbito espiritual, embora existisse semi-escuridão no quarto em que se encontravam de pé os passistas e sentados, com as mãos espalmadas para cima sobre as pernas, os assistidos, cada um do grupo recebeu forte onda de elementos fluídicos, capazes de deixá-los de prontidão para qualquer ato reflexo do pensamento no sentido de oferecer perigo para os que condensavam as energias eletromagnéticas da atmosfera, dirigindo-as para um reservatório de onde partiam vários cabos que os irmãos tarefeiros do espaço acionavam, um para cada passista, recarregando-lhes o perispírito que se desgastava a cada nova aplicação.
Cinco dos sete (João ficara do lado de fora), permaneceram extáticos a observar os trabalhos. Os outros dois, imediatamente, se postaram ao lado dos fornecedores de energia, acompanhando “pari passu” todos os esforços de manutenção do volume energético disponível. Eram Joaquim e Roberto, naturalmente, porque, conforme concluiu Deodoro, nada ali se constituía em novidade para eles.
Terminado o trabalho de transferência energética aos passistas, restava ainda restabelecer os níveis de equilíbrio de cada trabalhador do etéreo. A Deodoro pareceu que esta última fase foi a mais demorada e penosa, porque se sentiam todos exauridos de forças. Foi preciso que os orientadores da casa dessem sustentação fluídica para canalizarem as ondas eletromagnéticas diretamente aos perispíritos depauperados. Houve momento em que pareceu ao grupo dos cinco receberem eles mesmos um chuviscar delicioso sobre a aura, de sorte que se desfez a camada mais sutil que lhes havia sido implementada ao adentrarem a sala de passes, voltando-lhes a constituição ao normal.
Enquanto o pessoal responsável pelo desenvolvimento dos trabalhos no perímetro dos encarnados não se retirou, mantiveram-se em atitude de atenção todos os protetores. À medida que se despediam, os participantes eram imediatamente analisados quanto ao espectro da aura, sendo fornecidos a cada um os elementos mais propícios para sábia definição do valor da atividade da noite. A providência foi acompanhada por Deodoro e companheiros por recomendação expressa de Francisco, desejoso de deixar assinalados os serviços de benemerência especial aos que mais esforços dedicam no atendimento dos princípios doutrinários e evangélicos. Não passou despercebido a Deodoro a intenção de fazê-lo compreender a importância desse tipo de informação aos leitores de sua futura narrativa.
Instado para expor o que realmente pretendia, Francisco esclareceu:
— Sempre que podemos levar ao conhecimento dos humanos que os seus esforços estão sendo recompensados, segundo a nossa possibilidade de imantação de seus corpos espirituais, para que possam sentir-se tranqüilos, com a exata noção do dever cumprido, iremos fazê-lo. Quando alguns saem com sentimentos de frustração, o que ocorre mais comumente com os oradores, com os médiuns e com os doutrinadores e dirigentes das sessões de desobsessão, buscamos ocasionar algum episódio para que lhes seja restituído o otimismo e o entusiasmo. Isto se alcança, por exemplo, com a informação transmitida por um dos presentes ao desiludido de que uma palavrinha, dita sem aquela premeditada intenção, repercutiu fundo na explicitação ou explicação de um drama íntimo, como no caso de um pequeno remorso, por não se ter dado a devida atenção a um cliente, que se esclareceu pela apreciação de que um sorriso poderia conter o resumo da boa vontade que os recursos não atenderam.
Deodoro percebeu que, se deixasse a turma do centro expor cada pequenino tópico das atividades, iria ter de dedicar muitas páginas para a orientação específica das providências mentais e morais dos encarnados, em sintonia com as aspirações dos benfeitores espirituais. Mas teve de ficar ouvindo diversas histórias particulares, como se, a cada instante, os mentores da casa se revelassem cada vez mais apegados ao serviço, diretriz única de seus propósitos imediatos de crescimento.
Foi Eugênio quem decidiu dar explicação a respeito:
— Cada um de nós recebeu esta missão. Tal ponto é primordial para que se entenda o nosso empenho em realizar um bom serviço. Vocês sete estão sendo encaminhados para a descoberta preliminar das vocações, tendo em vista...
Hesitou na conceituação dos méritos e deméritos da derradeira romagem terrena. Mas prosseguiu:
— ... as qualidades de que se deixaram impregnar nos últimos tempos. Por exemplo, não é difícil de reconhecer, na demonstração inconsciente dos desejos de Alfredo e de Arnaldo, a vontade de permanecerem trabalhando conosco. Ocorre, contudo, que temem não estarem cumprindo a missão que se impuseram de defesa do grupo despreparado para o enfrentamento de certas ondas de maldade que perpassam pelas zonas umbráticas por onde deveriam caminhar. Se aceitarem um palpite fundamentado na minha experiência de guardião e de instrutor, devem confiar em que os demais irão defender-se muito bem, não apenas porque adquiriram conhecimentos e virtudes, como têm para si a ajuda dos amigos que estagiam em plano superior.
Foi Joaquim quem pegou o ponto do fio da conversa:
— De algum tempo para cá, venho notando que todos nós estamos afastando-nos uns dos outros, adquirindo interesses diversificados. Não são só os dois da tonsura que pretendem ficar pela face do planeta. Também Roberto e Everaldo manifestam íntimos anseios de se encontrarem com os parentes muito queridos. Quanto a mim, acompanharei Deodoro sem problema. Penso que Hermógenes também. Então, que resolvam a respeito da melhor decisão os que se encontram titubeantes.
Everaldo, tendo consultado mentalmente Roberto, sugeriu:
— Talvez, pela coesão que nos manteve unidos até agora, acho que deveríamos votar o destino do grupo, enquanto força conjunta a caminhar com segurança, tanto que jamais nos vimos em situação de perigo, ainda que de penúria tenham sido muitas travessias sem definição exata dos objetivos. Falo com conhecimento de causa, porquanto ninguém mais do que eu esteve temeroso de encontrar-se com os inimigos de outrora. Sei, finalmente, que, se precisar dos parceiros e guardiães, bastará lançar ao espaço um pedido de socorro, que comparecerão de imediato ou enviarão um contigente de milicianos para a proteção requerida.
Tomé pediu licença para acrescentar:
— Vou fornecer-lhe um pequeno instrumento eletrônico, uma espécie de rádio cuja extensão de ondas está ligada ao centro de atendimento de emergência da colônia, que, acionado, revelará de pronto onde se situa o irmão em perigo, desencadeando o sistema de socorro que atingirá qualquer ponto do hemisfério em dois ou três segundos, no máximo.
Deodoro solicitou um esclarecimento:
— Quer dizer que o “apito” não irá funcionar se passarmos para o outro lado do planeta?
Tomé brincou:
— É ver para crer, meu caro!
Aproveitando o momentâneo clima de descontração, Joaquim definiu as diretrizes para as deliberações de cada qual:
— Vamos realizar a proeza da separação, erigindo a vontade de cada sacerdote (ou já poderia chamar de “irmão”, à maneira dos espíritas?)...
— Chame de “fratello”, de “hermano”, de “brother”, de “frère”, de “frater”, que todas estas palavras também são usadas nos mosteiros e conventos. — Informou Deodoro.
Mas Joaquim não se perturbou:
— Pois bem, vamos fazer prevalecer a vontade de cada um, com a sublime condição do reconhecimento do desacerto, se alguém se sentir ao desamparo, em crise de consciência ou com sentimento de culpa, o que deverá redundar em solicitação de agrupamento.
Hermógenes concordou:
— Bem ponderado, preclaro amigo, principalmente porque você, Deodoro e eu seguiremos juntos. Nada a opor.