Dois anos mais velha que o esposo, Margarida não era aquela figura balofa que a nossa intromissão nos pensamentos dele nos obrigou a transcrever. Era gorda, sim, mas também era saudável, porque levava sozinha as tarefas domésticas, mantendo o lar asseado, limpo e, o que é mais digno de nota, absolutamente arrumado.
Se Plínio estava acima do peso ideal, lutando por perder muitos quilos, era porque a mulher cozinhava com primores de perfeição. Entretanto, desde uns três meses antes, mais ou menos à época em que compareceu ao centro espírita pela primeira vez, havia iniciado rigorosa dieta alimentar, tendo emagrecido de dez a doze quilos.
As coisas não estavam correndo de modo a favorecer a mais completa integração dela nas teses doutrinárias, porque se via o tempo todo enleada pelos mórbidos pensamentos relativos aos desvios de conduta dos filhos. Nesse aspecto, Plínio até que não estava muito longe da verdadeira expressão psíquica da esposa. Ficava ela a imaginar como seria possível reverter as condições desfavoráveis e mais ainda se dedicava ao asseio, limpeza e organização da casa.
Quanto às fantasias do Plínio, não tomara conhecimento, julgando que o seu homem estivesse extremamente apegado ao conforto do aparelho de televisão, do carro velho, que mantinha lustroso e operando satisfatoriamente, do guarda-roupa e da camiseira em dia, bem como da mesa bem posta, dentro dos rigores dos horários.
Em suma, na fatídica semana, embaraçou-se com a presença daquele ser estranho, a vagar fastasmagórico de um cômodo a outro, em momentos completamente inusitados. Conhecia a vontade do marido de sair, de bater papo com os companheiros de bar, de se espairecer pelos estádios de futebol e de petiscar salgadinhos durante os jornais televisivos. Não lhe entrava pelos hábitos a necessidade de ter mais alguém a compartilhar os seus domínios.
Quanto aos filhos, desde bem pequenos, ia dividindo a responsabilidade da educação com os da rua, porque não os queria a arruinar o seu mister de afadigada dona do lar. Era tão mais fácil deixá-los à vontade, tanto que demorou para matriculá-los na escola, fazendo-o pelo empenho agressivo do marido. O mais novo e agora defunto desejou fazer de criado, ensinando-lhe os serviços mais simples, sem sucesso, contudo, que a liberalidade quanto aos outros foi um dos principais motivos que levaram Ari a se rebelar.
Resolvemos adentrar no mundo intelectual da personagem, de forma a estruturar com mais economia a análise que levou a efeito desde que a Dona Antonieta lhe evidenciou o problema das drogas. Se fôssemos reproduzir-lhe os trâmites lógicos dos raciocínios, precisaríamos de vários capítulos, sem proveito para os inteligentes leitores, que são bem capazes de inferir que Margarida despertava para a vida que elegera desde quando se conhecera como gente.
A morte do filho, portanto, caiu-lhe como uma chuva de prata sobre a cabeça, em que pese a atração que se possa ter pela coruscante luminosidade da peça festiva dos folguedos juninos. Foi a maravilhosa sensação de descoberta do “ego”, com o martírio de haver sido abrasada naquela incandescência dolorosa. Quem esteve a presenciar um vulcão em atividade, conhece a força da natureza, a beleza do espetáculo e a desgraça da população atingida pelas lavas e pelas cinzas.
Lembrava-se da extrema simplicidade do caixão e da escassíssima comitiva que acompanhou o féretro. Mandara Plínio buscar Ovidinho, porém, tivera de amargar a resposta deste, que fez pouco caso da imprudência de quem se deixara abater por uma “overdose” de cocaína. Desconfiou de que o filho do meio, afinal, manifestara, com muita clareza, a repulsa que sempre tivera em relação ao caçula. Não foram poucas as recordações de malfeitos contra o mais novo, especialmente no período em que o trouxera agarrado às suas saias.
Viu-se a derramar lágrimas pelo mais velho desaparecido, não sabendo o que fazer para enviar-lhe a notícia do desastre familiar. Se ele estivesse em casa, com certeza teria obstado Ari de fazer o que fez, porque o teria orientado quanto ao consumo da droga.
Margarida não percebia o descaminho das lucubrações, tanto que estava pondo a vida do que se perdera nas mãos do que desaparecera.
Quanto a Saldanha, acompanhava com vivo interesse o desenvolvimento da crise emocional, sem saber exatamente como interferir para que a mulher não cometesse algum deslize psíquico, no sentido de atentar contra a própria vida, porque, de repente, constatava que tinha vivido um vazio, quando acreditava manipular a sorte, realizando o seu ideal de esposa e de mãe, conforme os preceitos do materialismo social que dá ênfase à posse e não ao desfrute, no interesse das realizações familiares, nos campos da criação, educação e felicidade moral dos consangüíneos.
Estranhava Saldanha que Margarida não incluísse o marido como co-autor da obra que desandara. Fez com que pegasse o retrato de casamento para instigar-lhe as recordações mais amenas dos tempos de felicidade, no entanto, teve o desprazer de vê-la passar o dedo pelo talhe de sua própria imagem, a indicar que algo muito precioso se perdera naquele enlace.
No segundo dia após o enterro, quando Plínio voltou da rua trazendo a papelada que lhe daria direito ao auxílio funeral, encontrou as louças usadas na pia, a cama desfeita, a descarga do banheiro não acionada, uma roupa fétida no balde, a mulher ausente.
“Onde terá ido a energúmena? Tem agido de modo diferente, o que é perfeitamente compreensível, porque o luto do Ari está ainda muito pesado. Mas deixar a casa neste estado deplorável é mau sinal...”
Por dever de narrador, devemos informar que o mau sinal não se caracterizou direito, tendo Pedro Otávio, que assumira provisoriamente a vigilância etérea dele, suspeitado de que Plínio não considerara a hipótese da loucura.