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Erotico-->1. A PALESTRA -- 08/11/2003 - 10:22 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Adonias preparou-se para a aula. Antes de mais nada, quis conhecer os dez alunos que se inscreveram, sabendo que muita gente poderia comparecer na última hora, o que o punha, de certo modo, nervoso. Gostaria de saber a extensão dos conhecimentos daqueles a quem iria demonstrar como é que as estruturas adquiridas em trinta e poucos anos de peregrinação pela carne poderiam nublar a mente, a ponto de oferecer-lhe uma venda tão poderosa quanto a não dar a perceber os fatos mais corriqueiros da realidade.

Mas os que assinaram as fichas eram pessoas extremamente práticas, todas elas, pelas profissões denunciadas, voltadas para as ciências ditas exatas: mecânicos, professores de física e de matemática, organizadores de empresas, contabilistas e um geógrafo dedicado à cartografia.

Num esforço de penetração no cérebro etéreo ou perispiritual do sacerdote, agora dominando perfeitamente os impulsos da vontade, de sorte a elaborar pensamentos lúcidos com extrema velocidade, podemos dizer que ele assim se manifestou de si para si mesmo:

“Esses estão em busca de uma realidade supra-sensível que talvez hajam desleixado vivos. Mas não posso partir de uma base preconceituosa, porque pode ser que algum deles se tenha dedicado, também, aos temas religiosos com vistas a garantir a possibilidade da existência de uma vida espiritual bem determinada, para o que se premuniram com alguma sagacidade, tanto que, hoje, estão freqüentando cursos nesta instituição, com absoluto domínio de suas condições de desencarnados. Talvez queiram conhecer os procedimentos de um alienado que se proponha a falar dos tempos em que peregrinou pelo etéreo na condição de profeta a falar como messias, com a figura esquálida que imaginava a de Jesus, ele mesmo, trepando em bancos e mesas, alteando a voz para ser ouvido até a décima fileira, estimulando o uso das faculdades morais em estado latente, para que fizessem o bem.”

Esse longo parágrafo não representou para a atividade cerebral do conferencista mais do que dois minúsculos segundos, de sorte que os nossos dignos leitores devem imaginar que as ondas energéticas de que se viu dotado desde que descobriu, três meses antes, que pertencia ao mundo dos mortos, haviam tido um crescimento substancial, no sentido de se integrarem todos os setores cerebrais, como se dispõe a massa encefálica humana com diferentes centros nervosos, uns voltados para o sistema de recepção das informações apanhadas pelos sentidos, outros para a elaboração de raciocínios à luz dos interesses mais lídimos de seus organismos e de suas atividades exteriores, quer pelo sistema simpático, quer pelo parassimpático, sem nos esquecermos de todos os processos de memória como reservatório e como arquivo de pronta consulta.

Chegou Adonias a desejar saber quem foi para ele Alice, a enfermeira em que se transformou a companheira de crença e de votos, porque freira na existência corpórea anterior. Mas viu bloqueada essa recordação, o que não o perturbou, porque sabia que a memória voltaria quando estivesse melhor habilitado a receber os influxos negativos de sua personalidade. Pensava que a perfeição se obriga a dar o ar da graça, mas que existem regras e normas para se efetuar como lei de progresso, artigos a serem cumpridos em seqüência, agora que estava sob o amparo de espíritos mais evoluídos que lhe demonstravam estima e se propunham a guiá-lo.

Ponderou tudo muito bem, imaginou que seus ouvintes teriam enfrentado essas mesmas disfunções espirituais quanto ao conhecimento das existências anteriores, para seu próprio resguardo, porque dificilmente a pessoa, assoberbada por problemas e preocupações, teria a mente aberta para a recepção de novos conhecimentos, já que, sem um equilíbrio relativo, ninguém conseguiria assimilar convenientemente as verdades que se constituíam nos pontos humílimos de sua síntese, e partiu para a elaboração de um esquema bastante simples, para não assustar os prováveis discípulos, porque já se punha na cátedra a ditar conhecimentos etc.

Esse “et cetera” continha, entre outras coisas, todas as emoções que permitira aflorar quando percebeu que estivera alheio a si mesmo durante mais de vinte anos, recebendo assistência para não descair em processo ainda pior de julgamentos precipitados, quanto aos seres com quem lidou na vida e outros que, provavelmente, existiriam na erraticidade contrafeitos com a sua atuação no campo dos relacionamentos humanos e espirituais.

Quando subiu ao pódio do salão, bem no centro, diante do aparato eletrônico, olhou para o auditório e viu-o totalmente lotado. As cem pessoas ali presentes sorriam-lhe como a estimular-lhe a primeira aula, todos, evidentemente, conhecedores do fato. As paredes ao fundo pareciam ter criado vida e os afrescos que representavam a orla marítima mostravam palmeiras com folhagens farfalhadas pela aragem do mar, cujas ondas vinham suavemente quebrar e se desfazer na areia. Do lado oposto, prédios altos, sobre os quais passavam nuvens, tal qual soía observar em seus sermões de nove anos atrás.

Entre os presentes, dois amigos poderosos, os médicos Adão e Anésio, o jovem estafeta e cicerone Renato, o motorista Valério, o professor de física Vicente, a moça da recepção, cujo nome, Rose, confirmou na ficha que buscou pelo número do assento em que se situava, e sua “namorada” Alice. Os demais bem poderiam ser conhecidos mas de nenhum se recordou naqueles breves instantes em que se deteve a examinar a lista dos presentes.

Começou comentando a facécia da rima:

— Ao título: “Os meus dias de Messias”, juntei a informação: “Pelo Pastor Adonias”, querendo aproveitar a rima e os heptassílabos ou redondilhas maiores. Aí, cometi uma certa imprudência porque, desejoso de efetuar o gracejo, repudiei a palavra padre que reduziria o verso a um hexassílabo não combinado com o verso anterior: “pe/lo/Pa/dreA/do/ni-as”, disse, batendo os dedos a contar as sílabas métricas, demonstrando a elisão: dreA. Poderia ter dito: “Meus/di/as/de/Mes/si-as, pe/lo/Pa/dreA/do/ni-as”, o que resultaria em dois versos de seis sílabas, mas achei que os versos de sete são preferíveis aos de seis.; então, mantive a decisão, contendo o primeiro informe que desejaria deixar consignado nos seus cadernos de anotações, ou seja...

Antes de prosseguir, Adonias olhou demoradamente em torno de si, dando uma volta completa, a ver se havia olhos atentos a observá-lo, desejoso de decifrar as fisionomias para ministrar seu primeiro ensinamento. Tendo visto todo tipo de expressões e algumas incógnitas, prosseguiu:

— Tudo na existência se encadeia rigorosamente e para tudo existe uma explicação lógica ou psicológica: a primeira, relativa à verdade diretamente apreendida da realidade.; a segunda, a fluir das ações mentais, na intenção de consignar um momento particular de cada indivíduo. Quando formos capazes de entender de modo global todos os procedimentos hauridos das profundezas espirituais de cada um ou de nós mesmos, de preferência, estaremos aptos a tornar tais explicações psicológicas em explicações lógicas, transformando tudo em conhecimento, pondo-nos em condições de merecer adentrar a próxima estação existencial, onde os recursos do amor nos darão outros elementos com que investigarmos cada vez mais a fundo quem somos e como iremos continuar evoluindo. Sendo assim, se nos considerarmos, desde já, aptos a entender este raciocínio, que sei de difícil compreensão, também temos de concluir que estamos gozando de boa saúde espiritual, o que devemos atribuir à benemerência do Criador, a quem precisamos agradecer a todo momento, o que me remete ao fato de ter sido um sacerdote, padre ou pastor de almas, não importa, um representante eclesiástico de determinada fé religiosa, considerando-me, assim, privilegiado perante Deus, motivado a ponto de falsear a minha própria vida, querendo trazer as verdades evangélicas ao dia-a-dia das pessoas, sem distinguir direito a diferença entre o fato positivo da vida, como realização pessoal e intransferível, e minha vocação e destinação de guia de consciências. Sendo assim, quero pedir a um de vocês, se possível àquele que eu apontar ao acaso, se estiver disposto e não tiver pejo, que abra a minha primeira aula com uma prece.

No mesmo instante, na tela de seu computador, começou a piscar o número quarenta e quatro, correspondente ao lugar ocupado por Renato, que desejava falar.

Adonias, imediatamente, apontou para o rapazelho de não mais que dezesseis ou dezessete anos aparentes de idade, passando-lhe a palavra.

— Prezado amigo e professor, padre ou pastor, gostei de sua introdução e, ainda mais, pelo fato de estar cedendo a vez para u’a manifestação sagrada de fé a um dos menores da classe. Proponho-lhe, contudo, que não seja por acaso a escolha de quem vá expor-se à turma aqui reunida, porque pode ocorrer que tenha um tipo qualquer de inibição e que não se sinta à vontade, de forma que sua prece não corresponderia às expectativas nem da turma nem dele mesmo. Sendo assim, sugiro que os que estejam dispostos a empreenderem tal iniciativa se inscrevam e, dentre estes, o mestre escolha aquele que julgar o mais adequado para exprimir uma oração em louvor e em agradecimento ao Pai. Antes, porém, de o senhor aceitar esta minha contribuição, ouça o que têm a dizer os meus colegas, porque bem pode estar ocorrendo de estar eu enganado, não por outra razão, por me haver atrevido a tanto e por apresentar-me o mais novato e com menos títulos acadêmicos ou técnicos. Calo-me, porque estou compreendendo que ousei demais.

Adonias, ao contrário do que poderiam pensar muitos dos presentes, divertia-se com a elocução do rapaz, acreditando que o desejo dele era o de colocá-lo à vontade, antes de começar o seu curso propriamente dito. Adonias, portanto, assimilou a indicação e acrescentou:

— Vou dizer-lhes, juntando mais uma razão para não escolher a pessoa da prece aleatoriamente, que, nas minhas peregrinações, encontrei várias pessoas de cabeça no lugar e bom quociente de inteligência que não logravam muito êxito na hora de se dirigirem em oração pública ao Altíssimo, porque ficavam tão envolvidos pelas emoções correspondentes ao fato de que estavam sendo observadas, não pelos circunstantes, mas pelo próprio Criador e pelos seus prepostos santificados e angelicais, que não chegavam a enunciar direito os pensamentos, de forma que os circunstantes, em lugar de concentrarem os pensamentos no fervor da hora sacratíssima, os dirigiam ao orador em dificuldade, deixando de ampliar as vibrações em torno de um desiderato de fé e de esperança. Querem que eu ponha em discussão a proposta ou passamos à votação? Respondam sim para aprovarem a proposta, que o resultado irá sair em segundos.

De fato, houve noventa e oito votos favoráveis e duas abstenções, de modo que a fórmula do Renato estava aprovada. Adonias acrescentou:

— Os que desejarem orar, que se declarem agora.

Vinte e três nomes apareceram relacionados, entre eles o de Renato. Mas nem Adão, nem Anésio, nem Valério, nem Vicente, nem Alice se ofereceram. Então, Adonias declarou:

— Se não houver objeção, recomendo que a classe aceite a indicação do coleguinha Renato para efetuar a prece. Vocês acham que ele deve orar em voz alta ou deve fazer uma vibração, enquanto a gente ouve alguma suave melodia? Um para voz alta.; dois, para a vibração.

Ganhou o número dois, de modo que Adonias fez ouvir ao fundo uma doce e harmoniosa peça do mestre Anésio, a qual ele havia conhecido quando tomava analisava os recursos audiovisuais. Ao mesmo tempo, estampou em todos os monitores a imagem de Jesus recolhido em oração, quadro elaborado por um dos artistas que haviam passado pela colônia e que agora pairava em esfera de maior evolução. Insuflou na atmosfera um agreste perfume de flores silvestres e solicitou a Renato que fizesse a sua prece.

O rapaz, que se preparara para a ocasião, ergueu-se da poltrona, levitando levemente, olhos cerrados, irisado como a desprender uma aura que abrangia todos os colegas, e deu início a uma prece que todos sentiram no âmago de seus seres, palavra a palavra, tal era o poder de transmissão telepática do jovem. Ao final, o ambiente estava resplandecente de uma luz que não cegava mas que punha, nos corações, muita calma e, nas mentes, o desejo de aprender com as lições do professor.

Adonias se regozijava por ter entre os discípulos um ser de tantas qualidades. Também percebeu que a turma que ali se reunira era afiadíssima nesse contato com as forças transcendentais que davam amparo às realizações da colônia. Mas não temeu pelo êxito de sua exposição, porque sabia que estava sendo ajudado pela mesma assistência superior, ainda mais que até seus protetores diretos estavam presentes.

Foi com o ânimo absolutamente no alto e com o intelecto assente e equilibrado que pôs em ação o esquema que havia traçado.

— Meus irmãos, penso que a minha experiência, de maneira geral, não contenha nenhuma novidade. Sendo assim, preferi organizar a palestra através de uma série de situações específicas que me envolveram e que poderão oferecer à turma o ensejo de meditar a respeito, segundo um prisma evangélico de nível superior. Começo por lhes afirmar que Jesus, quando disse que, se dois ou três se reunissem em seu nome, ele estaria presente, estava expendendo uma verdade rigorosíssima. No entanto, na qualidade de padre, posso assegurar-lhes que não vale quando a reunião se dá sem interesse algum em que Jesus compareça para a repreensão, de modo que, toda vez que eu com mais outras pessoas pedíamos ao Senhor que cumprisse sua promessa, nunca obtivemos a certeza de que ele estivesse ali conosco. Antes, cada qual de seu lado, todos suspeitávamos de que não fazíamos jus a atendimento tão sagrado, porque tínhamos a certeza de que o nosso pedido jamais se efetuara honestamente. Nem quando eu comparecia com o viático, para atender aos reclamos religiosos dos doentes ou de seus familiares, não percebia ao meu lado, nem no cálice em que levava as hóstias, a presença divina do Nazareno. Hoje mesmo, senti, neste ambiente maravilhoso, a demonstração inequívoca de que espíritos de nível superior estão vivamente interessados em nosso progresso e, por isso, nos estimulam através de sentimentos os mais puros de que somos capazes. Entretanto, para que tivéssemos o ensejo de receber Jesus, ele mesmo, teríamos de suplantar os traços de egoísmo que estamos mantendo conosco. Então, vão perguntar-me, por que Jesus prometeu a seres tão imperfeitos que estaria junto a eles, empenhando-se em iluminá-los para a compreensão do evangelho? Porque Jesus sabia que a inocência da infância viria a transformar-se, lentamente, na malícia da humanidade que devorou o fruto da ciência no paraíso, até fazer desabrochar nas mentes e nos corações a necessidade da pureza e da perfeição. Eis porque, eu lhes asseguro, eu me perdi para o reconhecimento de minha condição de desencarnado, porque não via ao meu derredor nenhuma criatura que, ao se juntar comigo, conseguiria fazer que Jesus viesse atender ao nosso chamamento, porque eu acusava o mundo todo de degeneração moral e não me dava por satisfeito jamais com a humildade de um procedimento regrado pelo amor restrito a alguns familiares, sempre e cada vez mais desejoso de oferecer a cada um em particular e à sociedade em geral os recursos obtidos das passagens evangélicas em que Jesus fazia a sua pregação. Queria eu assumir o livre-arbítrio e a consciência da humanidade, sem, definitivamente, compreender que a fé na misericórdia do Pai é que deveria pautar o meu temperamento, no sentido de restringir o meu serviço público. Em suma e para não cansá-los mais, entreguei-me de corpo e alma ao que julguei ser a minha vocação religiosa, trazendo para o etéreo as minhas estruturas materiais, conforme a minha visão distorcida do fazer o bem e de praticar a caridade. Devo avisá-los de que, por recomendação do meu amigo e protetor aqui presente, o Doutor Adão, vou reservar uma parte do tempo para algum debate esclarecedor, levando todas as questões que se registrarem para estudar e responder individual ou coletivamente, conforme julgar que seja o interesse do consulente ou a oportunidade do tema.

Imediatamente, choveram sugestões e perguntas na tela do computador, endereçadas de todos os pontos.

Chamou desde logo a atenção de Adonias uma questão levantada pelo Doutor Anésio, que rezava:

“Como ocorre muito freqüentemente o fato de que os sacerdotes chegam ao etéreo buscando os anjos que os conduzirão ao paraíso, a que o amigo atribui o fato de ter sido resguardado das imprecações que em geral se dão nessas ocasiões, tendo permanecido por tanto tempo na condição de ignorante da própria desencarnação?”

Era como que o elo de sua corrente temática, de modo que assinalou que iria responder àquela pergunta, levando toda a classe a ler, cada qual na sua tela, a questão em pauta. Depois explicou:

— Esse foi um dos problemas mais sérios com que me defrontei ao reconhecer minha atual condição. De fato, nestes últimos três meses, precisei sair um pouco desta esfera e, com muito cuidado, levado por uma guarnição de protetores, fui visitar um mosteiro ou algo que o valha, para onde se recolhem muitos religiosos ávidos de passarem logo a integrar as hostes do Senhor. Lá me deparei com esse sério problema de quem se julga injustiçado por haver destinado grande parte da vida à Igreja e agora tem de esperar pela boa vontade dos mensageiros do Pai, que demoram para os vir pegar. E esses são os que praticaram o bem, deram aulas, cuidaram de pessoas enfermas, aconselharam e orientaram, ministrando o conforto da palavra do Cristo aos que se desesperavam ou se agoniavam. Outros, segundo me contaram, exasperados pelo infortúnio de se reconhecerem egoístas e com outros graves defeitos morais, se perdem nas trevas, procurando o paraíso e resvalando abismo abaixo, para as regiões de maiores sofrimentos. Estou contando-lhes isso para dar relevo ao fato de que a minha longa permanência na ignorância de meu trespasse foi um recurso de meus protetores, para evitar que eu me deixasse penetrar pelas falácias da perfeição só porque me entreguei às mãos da Santa Madre Igreja. E por que fui apaniguado com tal deferência? Porque, desde os últimos tempos que passei no mundo, já vinha, de certo modo, renegando o fato de que muitos sacerdotes estimulavam a sociedade a se manter do jeito tradicional, para não correrem o risco de perder suas regalias. Por outro lado, desde algum tempo, vim observando que outra parte do clero, sub-repticiamente, vinha gerando muito descontentamento entre os mais pobres, dando-lhe razão aos atos de violência, apoiando o desalojamento de famílias de suas terras, para incrementar nelas o que chamavam de reforma agrária, mas que, na verdade, mais não era que o desejo de manter sua ascendência religiosa também sobre aquela parcela da população, à vista, evidentemente, de que, se não fizessem isso, outros fariam, em nome de outras instituições religiosas, políticas, econômicas etc. Ora, para mim, uns e outros perdiam de vista a pregação de Jesus, que, tendo vivido em época em que seu povo se subjugava a outro mais forte, porque os judeus estavam sob o tacão dos Império Romano, mesmo assim pregava o amor pelos irmãos e pelos inimigos, numa reação pacífica exemplar, mandando dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, fomentando o altruísmo e alimentando o sacratíssimo fogo da união de todos em torno dos ideais das virtudes elevadas à quinta-essência da tolerância, da abnegação e da distribuição das responsabilidades, segundo o poder de exercer cada qual seu livre-arbítrio. Está claro que, a partir dessa tese, que eu pretendia puríssima, passei a censurar toda atitude que gerasse um distanciamento entre as pessoas, como no caso de se concentrar a renda em cofres cada vez mais recheados, tornando cada vez maior a faixa dos miseráveis. Essa postura, graças a Deus, granjeou a antipatia das autoridades eclesiásticas, que me afastaram de meu núcleo de atuação, e facultou a meus protetores a saudável condição de me manterem, após a morte, iludido com o meu poder de auxiliar através de simples pregações, que era o que me havia formado o caráter, de sorte que, acredito, ao responder à questão, preciso esquecer que errei em muitos sentidos, em quase todos eles, mas acertei em me dedicar honestamente à busca, no evangelho de Jesus, dos preceitos mais legítimos de seu ensinamento. Isso fez de mim, não uma criatura ingênua, mas alguém desprendido dos bens materiais imediatos, satisfazendo-me com muito pouco, preparado para ceder a quem aparecesse, os dons de minha inteligência e de minha cultura, que eram os únicos que possuía. Sei agora que fui beneficiado grandemente pelos meus protetores, mas compreendo perfeitamente que eles fizeram por mim exatamente como eu teria feito, e pretendo fazer em breve, para quantos necessitados de auxílio me procurarem. Mais ainda, se corresponder aos anseios dos meus mentores, especialmente os que regem o curso de socorrismo para o qual me inscrevi, logo requisitarei um alvará para peregrinar à procura de quem esteja à espera de um coração amigo que possa aliviar-lhe o sofrimento. Sei que este meu curso roça perigosamente pela pretensão de trazer algum benefício aos inscritos, mas, como pretendo não expender conceitos próprios, preferindo contar meus casos para que vocês tirem suas conclusões, atrevo-me a prosseguir, prometendo-lhes, para a próxima sessão, orientar as minhas palavras pelas questões que tenho diante de mim. Meu amigo Adão faz-me sinal que devo encerrar, mas, antes, quero saber se minha resposta satisfez a pergunta.

Anésio não se fez de rogado e comentou:

— Faltou apenas ressaltar que a sua busca do paraíso vai prosseguir, muito embora, fazendo o balanço dos anseios e das perspectivas atuais, você devesse ter confirmado que está passando, rigorosamente, por uma fase de bom equilíbrio espiritual, porque está realizando algo em função dos outros e de si mesmo. Sei que está condicionando-se para enfrentar certos dissabores históricos, bem ainda que precisa decifrar os mistérios dos relacionamentos familiares, já que, em relação a seu pai, existe um sério entrave emocional, mas isso está sob controle, ou melhor, queda como em estado latente, aguardando que chegue a primavera para desabrochar. Peço permissão para indicar a sua pessoa, caro Adonias, para orar a prece de encerramento, oportunidade que estamos propiciando-lhe para nos encher com suas vibrações positivas, ainda que, conforme nos expôs de início, possa pertencer ao grupo dos que estão lutando com as dificuldades de elaboração de uma prece que não deixe transparecer sua sensibilidade à flor da pele. Nós todos, sabendo que quem se dirige ao Senhor se sente constrangido pelos olhares dos seres superiores, imaginando que Jesus mesmo possa estar presente, vamos esquecer do expositor, concentrando-nos na alocução, cientes de que seremos todos aquinhoados pelo maior saber e sensibilidade daqueles que já experimentaram todas estas vicissitudes e as suplantaram. Por favor, Adonias.

Em lágrimas, Adonias limitou-se a dizer:

— Pai de infinito amor e bondade, olhe por todos nós, seus filhos.

Em seguida, repetiu um velho Padre Nosso, adaptado para o linguajar moderno da colônia, em que a segunda pessoa do plural se substituía pela terceira do singular, tornando o “vós” em “senhor”, sem qualquer vestígio de diminuição do respeito que devia ao Criador:

— Pai nosso, que está nos céus, santificado seja o seu nome, venha a nós o seu reino, seja feita a sua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dê hoje. Perdoe as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores. Não nos deixe cair em tentação, mas livre-nos do mal, porque seu é o reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.

Adonias não percebeu, mas, tal como Renato, volitou um pouco acima do solo e resplendeu em luz, enchendo de júbilo o coração dos amigos e granjeando a simpatia dos novos companheiros.

Após a palestra, o orador foi cumprimentado efusivamente por todos os amigos, tendo auferido conceito máximo pela avaliação espontânea que a direção da colônia solicitou da classe.

Isso o encorajou a prosseguir na mesma linha de confessionário, pensando seriamente em que tanto Renato quanto Anésio haviam colaborado, fazendo-o dar um passo à frente, como se a participação deles fosse imprescindível.

Havendo revisto a lista dos alunos, notou que, dos cem ouvintes, noventa e oito mantiveram seus nomes, todos agora devidamente inscritos, com as obrigações inerentes à matrícula oficial. Os dois que não se registraram foram exatamente Adão, seu protetor, e Anésio, aquele ser superior que tratara de seus problemas mentais cientificamente, eliminando o antigo tumor no cérebro, dando-lhe vazão aos recursos intelectuais que se encontravam obstruídos. Mas havia, nas fichas correspondentes aos dois, uma explicação uniforme: deixavam de se matricular para darem oportunidade a dois outros novos alunos, quem sabe com maior necessidade de ouvir as ponderações do ex-sacerdote.
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