Adonias saiu da entrevista extremamente impressionado com o discernimento do mestre Maciel, reflexionando bastante acerca de haver ele tido procedimento absolutamente integrado aos problemas em que estava imerso o sacerdote, ao mesmo tempo que sua expressão era fidelíssima ao princípio da benquerença humanitária que se requer de todos os seres, porque fazia emanar do fundo de seu coração uma ternura compassiva toda adequada à estabilidade emocional e intelectual do consulente. Multiplicou Adonias aquela postura por mil colegas e obteve um resultado admirável quanto a atribuir ao orientador o poder magnânimo da superioridade efetiva de quem havia progredido para além do círculo comum das entidades que ele, pobre recém-nascido para a espiritualidade real, segundo o prisma da consciência adquirente dos valores evangélicos, tinha o privilégio de conhecer.
Tornava-se, assim, Maciel luz a irradiar esperança e fé, símbolo a concretizar todas as virtudes que brotavam inscientes do quadro mental de Adonias, nomes e idéias a se conjugarem na atmosfera de sua sabedoria meramente intuitiva, como a bailar sem apoio, indo no vai-da-valsa das quimeras de quem sente lampejos da verdade, mas sem ânsias efetivas de se pôr em mangas de camisa para o árduo trabalho das conquistas definitivas.
“Preciso estabelecer, o quanto antes, um roteiro de atividades em prol do bem-estar de meus irmãos, ao menos, para corresponder a tudo quanto venho recebendo desta instituição, sem a qual estaria ainda a pregar no deserto de minha imaginação, para seres fictícios, existentes para mim apenas como alvos de uma benemerência insólita.”
Adonias suspendeu essa linha de pensamentos depreciativos de suas realizações da vida toda, a ver se lhe ocorria, naturalmente, a contrapartida das reflexões que lhe dariam motivos para entender de outro modo essa postura negativista, como se a memória fosse despertar-se para atos e procedimentos em favor do próximo, como no caso daquelas pessoas que mantiveram a doce recordação de sua personalidade altruísta, quando dava conselhos, após ouvir as confissões protocolares no exercício do sacerdócio. Pensou nos professores de toda a existência e valorizou esse aspecto saudável do interesse em que os pupilos realizassem para seu proveito os exercícios que iriam torná-los aptos em determinada matéria. Achou a comparação justa mas relacionou esse tipo de “sacrifício” às necessidades corpóreas, concluindo que, no mundo, poderia haver um desgaste energético e um empenho de tempo de vida, os quais, no etéreo, nada significavam.
“Maciel, pelo que entendi, atribuiu à sua visita o dom de tornar os alunos aptos a reconhecer objetivos mais elevados, como estou agora tentando fazer, no entanto, sua aplicação se deu sem que houvesse um verdadeiro sacrifício de qualquer ingrediente espiritual, a não ser que tenha deixado em suspenso alguma atividade de caráter superior, cujo mérito, extensão e profundidade não estou em condições sequer de compor intelectualmente.”
Adonias deparou-se de novo a ralhar consigo mesmo, como se tivesse uma culpa profunda, inerente ao fulcro de sua personalidade, pelo fato de não haver atinado até então com sua verdadeira situação existencial. Percebeu que a consciência estava alerta como nunca, mas precaveu-se quanto a imergir num mar de desespero e desalento, ousando supor que seria capaz de suplantar todas as dificuldades se partisse de uma prece dita com a mais absoluta sinceridade quanto a aceitar qualquer tipo de sentença condenatória, desde que a penitência lhe fosse útil para a formulação dos conceitos de causa e efeito, de ação e reação, para que, diante de cada episódio da realidade, estabelecesse um padrão de procedimento evangelizado e, portanto, coerente com os princípios cristãos que propugnava, desde os tempos no mundo, como os únicos a conduzir os filhos a seu Pai que está nos céus.
“Não posso eu, todavia, assumir sozinho a responsabilidade pelo meu destino próximo, porque tenho compromissos morais com os entes com quem simpatizo, já que, segundo Maciel, é possível que jamais, existência afora, eu haja compreendido, com isenção de ânimo, ou seja, com integral doação de mim mesmo, o que vem a ser o amor que torna o objeto de nossa atenção em um outro eu, segundo a expressão de Jesus quando nos recomendava que deveríamos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como amamos a nós mesmos.”
Nesse momento, ocorreu-lhe que talvez fosse preferível citar outra passagem, aquela em que o Mestre dizia para que as pessoas amassem umas às outras com a mesma intensidade com que ele, o salvador da humanidade, as amou. Esta última consideração possibilitou que Adonias mergulhasse mais profundamente em seus conhecimentos da Bíblia, até que se deparou diante de um problema de grande magnitude, qual seja, o de que, além dos textos sagrados, cuja autenticidade ele discutia, atribuindo-se até alguns desvios históricos da veracidade das informações ali consignadas, havia uma formulação existencial mais complexa, mais abrangente, mais universal do que uma simplória visão fundamentada em conceitos adquiridos em estreita faixa de humanidade, que ele caracterizou como judaico-cristã, abrindo um leque de outras possibilidades filosófico-religiosas apenas dentro da perspectiva dos encarnados na Terra, porquanto ampliava sua visão intuitiva para a perspectiva espiritual, a partir da informação de Maciel de que Jesus havia legado aos seres além do círculo carnal outros ensinamentos, para os quais ele mesmo, Adonias, não estava preparado.
“Se tudo o que mantenho arquivado na memória é reflexo das ponderações humanas que ficaram registradas nas obras que li e estudei, se, além delas, também sou capaz de levantar os acontecimentos históricos que milenarmente foram dando contexto para a formulação das aspirações dos seres humanos, em todos os setores de suas realizações, também posso projetar, para além deste círculo em que me prendo, outras tantas possibilidades de atuação em prol do crescimento inerente aos espíritos, para a condição superior de absorção de parcelas cada vez mais significativas e importantes da verdade.”
Ocorreu a Adonias que mantinha linear, apesar de tudo, o pensamento, porque bloqueava, através de um vigor muito forte, as suas decisões em torno da idéia principal do pragmatismo das pequenas conquistas no campo dos relacionamentos, trabalho a efetivar-se categoricamente, sacrifício real e forçoso justamente desse seu brilhantismo teórico.
“Preciso ouvir Alice o quanto antes. Quem sabe ela me sugira a permanência em algum quadro de funcionários de categoria inferior mas que prestam serviços relevantes e úteis para a comunidade, como conduzir os visitantes, o que faz meu amiguinho Renato, ou atender na portaria, como a Rose, ou a transportar as pessoas através do trânsito, como o motorista Valério, ou mesmo como um simples paramédico, a colocar os doentes nas macas para levá-los de um lado para outro.”
Esforçou-se para ser atendido pela amiga de tantas existências infelizes até que recebeu dela uma forte resposta aos seus apelos:
— Caríssimo Adonias, as suas pretensões me parecem muito justas. Muito embora você tenha capacidade para desenvolver temas de caráter superior, falta-lhe aquela luta diária contra os males e contra a dor instalados nos corpos físicos e perispirituais dos nossos irmãos. Vamos pensar em conjunto, após ouvirmos Adão e Anésio, como é que superaremos essa injunção de suas meditações, porque estou a concordar com você quanto ao fato de sentir a necessidade de algo mais prático e positivo, vamos dizer assim. Enquanto isso, considere a possibilidade de se empenhar no setor de limpeza e higienização de nossa casa, sabendo que irá reencontrar-se com muitos irmãos nossos em fase de conscientização das falhas e caracterização das culpas. Pense nisso.
O contato se desfez, compreendendo Adonias que Alice estava ocupada com suas tarefas de enfermeira.
“Será que ela me aceitaria na condição de auxiliar?”
A pergunta logo ficaria soterrada numa sombria avalancha de sentimentos desalinhados.
Mas Adonias reagiu:
“Que tipo de fuga é essa a que me habituei? Quando as coisas apertam e eu desconfio de mim mesmo, logo procuro desligar-me das pressões que a consciência provoca, como se um desmaio, um delíquio, uma síncope me livrasse de todos os problemas. Preciso opor às idéias e sentimentos de inferioridade, exatamente, os conceitos superiores do trabalho em prol do próximo, o que, fatalmente, me levará a um esquecimento de mim mesmo. Eis que estou me definindo egoísta, orgulhoso, vaidoso, prepotente, pessimista... E o que significa isso no fundo? Significa que me arvoro em paladino da fé, mas, na verdade, ponho a Providência Divina em plano absolutamente inferior, como se a sua misericórdia fosse tão-somente uma brilhante inferência intelectual dos seres racionais, aqueles que são capazes de analisar o mundo exterior, dando-lhe uma origem transcendente obrigatória. Aí, os indivíduos mais enérgicos mentalmente pressupõem a existência dessa inteligência criadora, estabelecem um nexo com os deveres sociais ou humanos, comparam com as atitudes instintivas dos animais e deduzem que precisam respeitar a magnanimidade do único ser, ou espírito, ou força cósmica, ou o Absoluto, aquela luz hipotética de imanência e de inerência em concepção totalmente intransigente com a imperfeição das chamadas criaturas, capaz de lhe transferir os atributos todos da presença divina, transformando-o, ele mesmo, em ser a pique de integrar-se nessa consciência mais que universal, porque acima de tudo.”
Adonias, apesar de estabelecer a necessidade de enfrentar o tumulto do cérebro, a confusão das idéias, precisou reconhecer que caminhava perigosamente à beira de um abismo e que o chamamento para a inconsciência talvez estivesse dentre os recursos naturais de proteção dos seres. Mas a idéia de adormecer, perdendo a sintonia consigo mesmo, não lhe agradava, numa hora em que precisava fazer vingar a prerrogativa da vontade sobre as intempéries psíquicas das acusações.
Reviu os defeitos de sua personalidade, reconhecendo os que havia relacionado, acrescentando outros mais, praticamente esgotando todos os defeitos, incluindo os que conhecia só de ouvir.
“Dizem que as pessoas não devem buscar ressaltar as próprias virtudes, que elogio em boca própria é vitupério, que seria absoluta falta de humildade dizer-se possuidor de qualquer mérito, mas a verdade é que verter sobre a alma o estanho derretido das mazelas também é um defeito a gerar agudo negativismo, não direi quanto ao Pai, mas quanto à falta de determinação pessoal em enfrentar os desafios da conduta imprópria. Se Alice julga que devo pôr-me a trabalhar na limpeza dos dejetos mais nojentos (nojentos: eis um preconceito que preciso eliminar), devo reconhecer que não posso rebelar-me contra um serviço necessário e útil, que deve encontrar sempre voluntários para sua realização, já que não há vantagem nenhuma em organizar um corpo de funcionários especializados e remunerados, que iriam aperfeiçoar um sistema mecânico qualquer, sem que nenhum dote de virtude se exija de ninguém, não se configurando sacrifício algum.”
De novo Adonias suspendeu sua linha de raciocínios para verificar dois fatos principais. O primeiro dizia respeito a como era insidiosa a infiltração dos raciocínios em descompasso com a lógica que o manteria aceso para as concepções absolutamente sob domínio da vontade, resultado a que chegou ao observar que, depois de algum tempo, seus pensamentos tendiam ou para a fantasia, ou para uma completa desconexão entre agentes e reagentes das ações mentais. O segundo remetia-o à reflexão anterior a respeito do sacrifício de Maciel, configurando-se, “mutatis mutandis”, latinismo que fez questão de consignar, que o orientador, ao vir conversar com essa turma de pleiteantes ao cargo de socorristas, devia sentir-se como quem empresta seus dons para o serviço de eliminação dos detritos humanos de que se lotam os hospitais.
Pensou em contatar de novo Alice, mas, com medo de perturbá-la em suas atividades da mais alta benemerência, abriu a tela do computador a ver se, eletronicamente, ao invés de telepaticamente, obtinha o interesse de algum dos administradores da instituição em hora de atendimento ao enorme fluxo da correspondência de toda a comunidade e até de fora.
Estava disponível o seu protetor particular, o Doutor Adão, que imediatamente se pôs a par das derradeiras reflexões do pupilo. Não hesitou em sugerir:
— Caro Adonias, recomendo-lhe refletir a respeito da história de Maciel registrada em nossos arquivos. Talvez a informação de que passou, em determinada época, por mais de quinhentos anos dos terrenos exercendo o humilde encargo de ajudante de pedreiro, possa demonstrar-lhe que a evolução é um fato e que você necessita vencer a sua ojeriza por uma condição de inferioridade. Se está lembrado, na penúltima encarnação, tendo sido abandonado em um orfanato, você tudo fez, no plano da espiritualidade, para convencer os seus protetores de que seria bem mais útil aos semelhantes se aplicasse o seu intelecto em alguma profissão de valor social elevado. Tornou-se juiz togado. Deu no que deu e você sabe bem em quê. O mais que você se aproximou de uma condição miserável na carne foi aí. Perde-se no tempo uma época em que esteve numa região paupérrima, mesmo assim sob a mais intensa revolta, tanto que se tornou líder comunitário, usufruindo bens a que ninguém mais tinha acesso. Esse seu itinerário de gente bem postada redundou, como você está sentindo, em uma necessidade de equiparação por baixo com os seus irmãos. Recomendo-lhe a lição de Jesus do camelo a passar pelo fundo da agulha, porque a riqueza também consigna aspectos basicamente morais, sem que se possa acusar o sujeito de usura ou de malversação dos recursos. É uma questão que se instala no íntimo da personalidade, terminando por lhe atribuir uma característica palpável. Mas a este resultado o interessado só chega no momento em que tem de definir com segurança se deseja, verdadeiramente, melhorar-se, sendo capaz, então, de reconhecer aqueles defeitos todos que você assinalou. No entanto, você deve evitar de correr o risco dos exageros porque, ainda que não queira, se ultrapassar certos limites de segurança impressos em seu rol de qualidades psíquicas, irá desfalecer, para que se impeçam desvios de procedimento rigorosamente prejudiciais à pessoa, principalmente por remetê-la no vórtice dos sofrimentos a que estaria sujeita não fossem os amigos estarem sustentando-a em equilíbrio ou estabilidade mais ou menos precária. Saia dessa configuração psicológica deletéria e se predisponha a servir aos irmãos, na certeza de que estará a serviço do Pai, para a bem-aventurança de todos. Ou você acha que só você é imperfeito? Os mais espertos fazem que todos os que os rodeiam com estima ajudem na recomposição mental ou emocional, o que penso estar fazendo em seu proveito, com algum sacrifício moral, porque vejo que meu amigo terá de passar por fases doloridas, assim que ganhar uma envergadura mais coerente com os reais problemas que tem de resolver. Mas eu peço ao Senhor que nos ampare a todos e nos ilumine e nos oriente e nos envie quem possa induzir-nos a nos decidir pelo melhor caminho. Você tem um excelente cabedal de preces e já evidenciou que coloca toda sua sinceridade emocional nos pedidos que realiza pelos seres que o põem comovido. Faça o mesmo em seu próprio nome, consignando em seu requerimento afetivo todas as leis, em seus diversos artigos, incisos e itens, os quais deverá respeitar para que possa receber deferimento. Fique com Deus! E, se não desejar perder-se de novo em filigranas racionais, dirija-se (pode ser através de seu terminal de computador) ao setor de colocações, deixando ao sistema programado que o inclua entre aqueles com quem você manteria uma convivência de equivalência vibratória e energética, para que possam, permita-me uma reminiscência terrena, “trocar figurinhas”. Quem sabe algumas estampas carimbadas ou consideradas difíceis estejam em seu poder, você que tanto conhece as Escrituras Sagradas, podendo trocá-las pelas que lhe faltam para completar seu álbum. Perdoe-me a linguagem “figurinhada” e o péssimo trocadilho, mas não é bom esforçar-se para readquirir o seu bom humor, o qual, conforme você me informa, tem estado há algum tempo de férias?!...
Adonias esboçou um sorriso, desligou o aparelho e dispôs-se a adormecer, sabendo que a consulta ao banco de dados iria intrigá-lo mais do que a expectativa que manteria, já percebendo o intuito disfarçado de se distanciar o mais possível dessa suprema decisão. No entanto, ainda chegou a obtemperar, antes de adormecer:
— No mínimo tenho de estar na companhia de Alice na hora de conferir o resultado de minha inquirição para o voluntariado caritativo.