Tendo chegado a véspera de mais uma aula, Adonias precisou mudar o foco das preocupações, a bem da verdade, preocupações muito atenuadas, para formular o plano da exposição e dos trabalhos que demandaria de sua turma. Recordou-se dos conselhos dos amigos para que falasse sobre os milagres e as curas realizadas por Jesus, de modo que precisou mergulhar fundo no texto de Kardec, “A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo”, a partir do qual começaria a discutir os pressupostos espíritas a respeito do tema.
O que primeiro lhe chamou a atenção na obra do Codificador foi o enfoque científico dado aos temas, todas as explicações girando em torno dos fenômenos naturais, a partir do princípio fundamental de que os milagres, propriamente ditos, seriam meras contravenções e suspensões das leis de Deus, o que Kardec assevera, raciocinando logicamente, pois nem o próprio autor teria qualquer razão para abjurar a perfeição primitiva para lhe dar outra feição menor, para o efeito do espetáculo para a gentinha encarnada, nem poderia mais ninguém revogar uma lei universal. Seriam sinais simplesmente de um poder maior e eterno, que qualquer observação a se extrair da própria criação, através da natureza, conduziria à mesma conclusão.
“Se eu me ativesse às noções do sacerdote católico que fui, teria de sofrer o impacto das contradições inerentes ao fato de que, do lado de cá, muito da força de demonstração de um poder superior ou transcendental ao humano não nos causa qualquer bulício na alma, mesmo porque várias religiões cristãs ainda utilizam o maravilhoso evangélico para submeterem as vontades à condição de fantoches dos dogmas que não se discutem.”
A bem da verdade, o prisma evangélico estava virando fumaça na mente do professor, a partir do momento em que pôs seriamente em dúvida a autenticidade dos relatos, atribuindo-lhes um valor positivo para a formação da igreja primitiva, porque as mentalidades necessitavam crer em que Jesus não era um ser ou espírito comum, mas que era, como lá se assinala numerosas vezes, o próprio filho de Deus, portanto, de mesma natureza que o Pai celeste, ou seja, Deus ele mesmo. Ora, a visão kardequiana, extraída dos depoimentos dos espíritos superiores que lhe ditaram as respostas às questões de toda natureza que ele lhes ofereceu, diziam que Jesus era um espírito de muito adiantamento, um administrador espiritual com a responsabilidade do destino de bilhões de seres humanos e de muitíssimos mais desencarnados, que desceu à Terra, num momento oportuno, entre um povo selecionado por razões culturais e históricas, para trazer aos homens mais um aspecto da verdade, no estrito limite da compreensão deles.
“Vamos dizer que os homens agiam intuitivamente em matéria religiosa ou de crença ou de culto, mas seguiam uma legislação deturpada por interesses materiais, forçados às práticas de caráter exterior, sem se deixarem impregnar pelos reais valores morais que os elevariam no plano da espiritualidade. Jesus veio, então, para demonstrar que a prática do bem, por amor a Deus e aos homens, é essencial para a vida de além-túmulo. Era como eu estava agindo em relação a limpar o que me parecia absolutamente limpo. Depois, eis aí a presença de Kardec, precisei elaborar cientificamente, pragmaticamente, um pensamento que me fizesse compenetrar da necessidade do trabalho que estava executando. Muito bem, agora é chegado o ponto crucial em que a porca torce o rabo, qual seja, aquele em que a minha filosofia há de perecer, porque, em seus aspectos empíricos, eu peco contra a verdade, diante de classe formada por uma quase totalidade de irmãos dedicados aos diversos ramos das ciências. Se eu lhes for contar como é que Jesus transformou água em vinho, como é que multiplicou peixes e pães, como é que andou sobre as águas, como é que curou cegos de nascença, como é que fez paralíticos andarem, como é que ressuscitou mortos e expulsou demônios, com certeza irão querer saber que recursos naturais ele utilizou, o que redundará, da minha parte, em mera indicação bibliográfica, empenhando-me para citar algum texto de nossa esfera, para não lhes indicar que as soluções têm de caber em cérebros sujeitos a uma carapaça dura de matéria corpórea terrestre.”
Parou para respirar, que o fluxo das idéias era velocíssimo e os problemas se superpunham, sem que se definissem soluções para eles. Deixou-se levar pela imaginação, muito desejoso de descobrir onde se encontrava ao tempo de Jesus e como lhe haviam chegado as boas novas de sua pregação.
Viu-se, então, metido numa veste militar, espécie de uniforme de guerreiro a pé, falando um latim deturpado com sotaque gaulês, altamente interessado nos espólios das batalhas. Ouviu, sim, falar do Nazareno, mas não lhe pareceu que nada do que ouvira tinha substância.; eram ondas de superstição que ameaçavam depor os deuses do Olimpo.
Adonias se aborreceu com isso, porque queria era ter presenciado alguma exposição ao vivo do divino mestre.
“Será que não existem registros mnemônicos arquivados que possamos reproduzir por meio digital, com as imagens masterizadas e reconstruídas por computação gráfica?”
Percebeu imediatamente que a pergunta incidia numa pesquisa substanciosa para sua aula, pois, se conseguisse recuperar algumas passagens públicas da vida de Jesus, poderia ilustrar a palestra com assertivas incontroversas, sem aquelas suspeitas de fraude nos textos evangélicos.
Percorreu todos os índices da grande biblioteca da Igreja Cristã e assinalou várias obras que tratavam do tema, principalmente do ponto de vista dos processos técnicos para restauração não apenas da época de Jesus mas de todos os tempos, colhendo-se das testemunhas os depoimentos mnemônicos, transformando-os, após serem escoimados das interferências subjetivas, numa fita límpida dos fatos em foco. No entanto, não havia, na biblioteca, uma única fita assim preparada, porque, segundo uma informação repetida diversas vezes, não era conveniente que espíritos ainda tão imperfeitos dominassem essa matéria, podendo prestar-se ela a desvios importantes da personalidade, pelo alto estímulo ao orgulho e à vaidade, perante os irmãos atrasados, incapazes de analisar objetivamente os fatos ou como agente de poder. Numa das obras, o autor aventava a hipótese de que somente quando a entidade espiritual perdesse totalmente o interesse pessoal pelo valor das informações é que teria acesso ao conhecimento integral de toda a verdade histórica, para uso superior quanto às definições próprias da lei de ação e reação, conjugadas com as demais, com a finalidade de tornar previsíveis os acontecimentos, por mais complexos pudessem ser. Mas, lá se assinalava também, que a consciência mesma desses seres mais adiantados os impedia de trazer para as camadas espirituais mais atrasadas os conhecimentos por eles adquiridos. Às vezes, dizia o autor, uma ou outra notícia desse tipo se abria, em circunstâncias especialíssimas, para mentes predispostas a aceitar as limitações de seus pares, a fim de não causar-lhes distúrbios emocionais que poderiam redundar em prejuízo para eles ou para quem estivesse em condições de vaticinar qualquer coisa.
Adonias não incluíra em seu projeto inicial a discussão das predições, conforme lera em Kardec, mas percebeu que o tópico poderia preencher mais alguns minutos de sua exposição, ajudando-o a levar a turma interessada até dar o sinal. Sendo assim, resolveu que o título de sua palestra seria “Os Milagres, as Curas e as Predições de Jesus”.
Nesta altura, estava quase emendando a noite ao dia, de sorte que resolveu deixar que as idéias repousassem, dando trégua também ao corpo, a fim de que se energizasse de novo, para as tarefas do quarto dia de voluntariado.
De manhã, acordou como se não tivesse dormido, ou melhor, como se houvesse deitado absolutamente descansado, sem nenhuma necessidade de propiciar-se um hiato nas atividades.
“Esta sensação é tão plena de bem-aventurança física, que até posso imaginar como as criaturas mais avançadas permanecem sem pausa em suas ocupações durante milênios, como se dormissem de pé. ‘Mutatis mutandis’, é como eu posso realizar as minhas funções mecânicas, enquanto o meu cérebro se dedica a organizar a conferência. Acho que vou tentar permanecer lúcido em relação ao meu empenho intelectual e desperto também para os problemas a serem resolvidos instante a instante, durante a jornada.”
De fato, o ponto de concentração no desempenho das tarefas simples e mecânicas foi alcançado simultaneamente à estruturação que foi elaborando alternativamente, mas com uma velocidade mental surpreendente, nunca antes alcançada.
“Se eu continuar praticando este tipo de exercício, em breve poderei dividir meu campo de atenção e de prontidão em duas ou mais áreas de aplicação efetiva de meu poder intelectual. Na Terra, diria estar utilizando uns cinqüenta por cento de minha capacidade mental, ou melhor, que estaria desenvolvendo um processo físico de utilização dos dois hemisférios do cérebro, abrindo, para o mesmo canal de consciência, as informações colhidas em cada um deles e subsidiando-as, em forma de raciocínios e também de sensações advindas do mundo externo, sem estabelecer nenhuma confusão, cada uma em correlação perfeita com a fonte de elaboração das idéias e pensamentos.”
Adonias alegrou-se com o rumo em que iam as coisas mas refreou o entusiasmo, reconduzindo sua atenção para o trabalho e para a esquematização de seu plano de aula.
Tudo fez para logo enviar aos alunos o roteiro, definindo como trabalho prévio que lessem a obra de Kardec relativa ao tema. Imaginou um rol de questões, mas preferiu deixar as perguntas para serem respondidas de forma lúdica, durante a aula, caso contrário, era possível que a motivação diminuísse por causa de certas fixações e teimosias oriundas de alguns possíveis preconceitos decorrentes dos pontos de vista adotados sem a supervisão do orientador.
No dia seguinte, devidamente dispensado das tarefas voluntárias, dirigiu-se à ala dos cursos, exatamente no corredor em que atuava como faxineiro, meditando que havia uma boa razão para que os colegas e os alunos não topassem com ele, no momento da limpeza, porque poderia haver conclusões apressadas, como a de sua necessidade de humilhar-se fisicamente, ou porque ele mesmo pudesse sofrer o impacto de uma idéia infeliz, qual seja, a de que a sua atividade o remetesse para uma condição de humildade acima da humildade dos outros, consignando-se, então, uma demonstração involuntária de superioridade dele ou de inferioridade alheia. No mínimo, quem fosse mais ingênuo poderia concluir que o professor não estava totalmente equilibrado, em condições, portanto, de assumir um posto de responsabilidade intelectual, estando com débitos em área que deveria estar completamente sob controle, e isso seria um ponto negativo que, para ser transformado em positivo, iria demandar um esforço inútil, dado que o problema seria de quem elaborasse a hipótese.
Teria refletido sobre outros aspectos que lhe afloravam no cérebro, mas se viu cumprimentando a classe e examinando as presenças assinaladas na tela de seu computador, verificando que havia cem por cento de freqüência e mais vinte alunos novos, devidamente registrados e confortavelmente instalados.
Ao derredor, nos painéis do fundo, outra paisagem se desenhava, conforme recomendação expressa de Adonias. Viam-se ali as imagens de uma floresta fechada em toda a volta, sem som e quase sem cor, apagadas figuras de vegetais, como verdadeiros borrões impressionistas. Mas o clima da turma nem por isso se diferenciava daquele da palestra anterior, não havendo registro de estranheza da parte de nenhum dos estudantes.
Adonias agradeceu a presença de todos, cumprimentou os novatos e estabeleceu uma regra básica para aquela aula:
— Somente vou atender e solicitar a participação, durante o período de exposição inicial, dos que declararem que prepararam a lição segundo a orientação publicada. Os que não se dispuseram ao exercício preliminar queiram registrar o fato em sua ficha.
Para surpresa do exigente mestre, nenhum nome demonstrou haver desinteresse.
— Parabéns, todos os meus amigos, inclusive os que comparecem hoje pela primeira vez, estão habilitados para a minha argüição. Neste caso, fico muito feliz e peço que dediquem dois minutos para refletirem a respeito da seguinte proposta de trabalho: Quando Jesus realizou os seus chamados “milagres”, estava ciente de que as conseqüências deles iriam repercutir num futuro distante dois mil anos de sua época? Que milagres ele realizaria de novo, se estivesse reencarnado na Terra, na condição de messias?
Ao professor o silêncio da classe não iludiu, porque sabia que os alunos se comunicavam entre si por via eletrônica, quando não telepática. Sorrindo interiormente, pensou:
“Se eu prestar atenção, vou ouvir um burburinho metafísico!”
Mas o tempo passou rapidamente, tendo em vista seu interesse em avaliar as expressões faciais de um por um. Deduziu que se concentravam nas questões e ficou muito sossegado por não receber, direta ou indiretamente, através de alguma esquisitice referida por escrito, nenhuma estranheza quanto à sua perquirição.
— Muito bem, queridos. Quem deseja responder primeiro? Devo avisar que tem que estar disposto a compreender que sua resposta é provisória.
Adonias pensou que toda a classe iria requerer a primazia, mas apenas dez alunos se habilitaram.
— Vejo que entre os que se propõem a falar estão alguns meus conhecidos. Então, sem que isto vá constituir-se em regra, vou chamar o novato Silas, para que fique em evidência para os colegas.
Levantou-se um rapaz mas, imediatamente, foi avisado que deveria permanecer sentado. Então, disse:
— Prezado professor, muito prazer. Saúdo também os meus colegas e vou logo afirmando que, se acertar a resposta, haverá de ser por puro e imenso milagre. Pois eu acho que Jesus nem sabia que suas proezas nesse campo iriam merecer tanto destaque. Não me censurem a ousadia: ouçam as minhas ponderações. Desde logo, devo afiançar que o principal não era deixar o povo impressionado com atos que poderiam passar por meras prestidigitações. Acho que Kardec foi incisivo quanto a isto. O principal era o ensino moral, era a ênfase à mudança de hábitos, para a aquisição dos valores mais importantes, uma vez que, se a inferioridade física fosse fator de limitação para o adiantamento espiritual, o mundo da carne não consignaria esse fato como recurso para a aplicação de diversas das leis naturais. Sendo assim, mesmo que Jesus houvesse solicitado aos apóstolos e discípulos que obrassem segundo o seu exemplo, essa parte estaria restrita aos atos concernentes à principal das virtudes, ou seja, à caridade, porque a pregação do amor, sem a correspondente prática, não teria qualquer efeito junto aos homens e mulheres a quem deveriam chegar os conceitos superiores do evangelho. Eu acho, por exemplo, que, se Jesus soubesse que a anunciação do anjo à sua mãe, preparando-a para excelsa gestação, fosse ficar registrada, daria um jeito de impedir o fato, determinando que Maria calasse a informação. Mas os evangelistas estavam empolgados com as notícias que redigiam, de sorte que, em havendo, nas velhas escrituras, o chamado Antigo Testamento, o relato de muitos fatos miraculosos, não iriam querer que os seus escritos, nesse aspecto, quedassem em segundo plano. Dada a semelhança de alguns milagres entre os registros anteriores e os modernos, posso até suspeitar de que alguns foram introduzidos na vida de Jesus por conta de torná-lo verdadeiramente o redentor prometido ao povo judeu. Se o meu caro professor tivesse insistido, neste início, sobre o tópico das previsões, eu faria referência a essas promessas e citaria algumas passagens elucidativas de como os textos bíblicos se refletiram na vida de Jesus, para uma comprovação sagrada de que era ele mesmo o filho de Deus enviado para a salvação dos hebreus. Neste ponto, quero deixar bem claro que sei da existência, em planos mais elevados, de cópias das recordações dos que presenciaram os fatos da vida de Jesus, de maneira que levantar hipóteses a respeito da veracidade dos relatos passa a ser mera especulação precipitada. Sendo assim, respondo pela negativa, ressalvando a condição meramente material do Mestre, que teria impressos no cérebro (se quiserem poderemos outro dia estudar como se dá essa aquisição em seus aspectos técnicos) o que ele mesmo, na condição de puro espírito, ali teria deixado em estado latente, ou seja, o conhecimento prévio das conseqüências de suas atividades benemerentes. Ainda agora correm as notícias entre os mortais de vários médicos de plantão na espiritualidade agindo através de diferentes médiuns. Sei que a pergunta não trata das curas, mas gostaria de incluir esse elemento para enfatizar que não foi Jesus quem fez a distinção de suas providências em milagres, curas e predições, porque, para ele, certamente, o que tinha real valor era a sua presença a se infiltrar coração e mente adentro de todos os que nele viam um pastor divino, cuja única ameaça se concentrava no perdão dos pecados com a exigência de que o pecador não mais pecasse. Por tudo quanto disse, devo ter deixado claro que, vindo de novo à Terra, Jesus repetiria tudo o que fez, ainda que reconhecido fosse como o mesmo que, apesar de sua bondade, terminou a vida no madeiro vil dos criminosos.
Silas fez menção de respirar e Adonias aproveitou aquele instante para assumir o controle da aula:
— Não sei como é que atinar com a resposta exata pudesse ser um “puro e imenso milagre” para o nosso Silas. Mas como esta fase da aula não dá abertura aos debates, vamos a outra questão, a ser respondida segundo o mesmo sistema de reflexão por dois minutos e o mais. Ei-la: Se Jesus escrevesse a sua própria história e, por uma cadeia mediúnica, desde a esfera mais elevada até chegar a um médium encarnado, a transmitisse aos homens, mereceria a confiança dos leitores? Devo alertar que existe uma obra cujo título registra: “A vida de Jesus ditada por ele mesmo”. Nesse caso, que importância daria ele aos efeitos que, na mente do povo, repercutiram miraculosos?
Neste ponto, Adonias se ensimesmou, voltou no tempo, vestiu de novo as roupas de soldado adido ao exército romano e se pôs em peregrinação bélica, a ver se conseguia um espólio moral da época em que Jesus fazia sua pregação. Nesse exercício, gastou alguns átomos de segundo e logo percebeu que os valores do dia-a-dia do militar tinham por princípio rígida e ameaçadora disciplina, o castigo do erro a pairar sobre as cabeças dos desavisados, alcançando algumas vítimas inocentes, segundo as fórmulas do cortar o mal pela raiz e do lavar as mãos, neste caso jogando a responsabilidade sobre quem desejasse assumi-la. Percebeu que, então, concordava com tudo aquilo, porque a força estava de seu lado, de modo que os povos conquistados, submetidos e escravizados, se não anuíssem com a dominação do mais poderoso, também não tinham que reclamar de tratamento injusto, uma vez que os inimigos, ainda que conquistadores, se impunham. Mas o povo romano era arguto e muito mais civilizado que a maioria dos estrangeiros, dos “bárbaros”, como diziam, copiando a expressão de outro povo conquistado, o povo grego, de sorte que, muitas vezes, o dominador também era um benfeitor. Não no tocante aos hebreus, que esses eram altivos e só se dispuseram a aceitar a administração romana quando perceberam que tinham o que lucrar com ela. Tanto fizeram que Jesus foi transformado em inimigo, porque abalara alguns dos fundamentos teóricos da religião mosaica em voga para sustentar no poder os fariseus, os saduceus, os doutores da lei, os escribas e caterva, que se mantinham incólumes quanto aos bens temporais, justamente os de que Jesus mandava dispor, caso quisessem ter mérito perante o Pai.
Iria mais além o professor, não tivesse transcorrido o tempo determinado para a resposta.
— Vamos ver, agora, quem deseja manifestar-se. Vou dar prioridade para quem tenha lido “A vida de Jesus ditada por ele mesmo”.
Ninguém.
— Ainda bem que, dentre os meus queridíssimos alunos, nenhum leu essa obra, porque também eu não me dei a esse trabalho. Será que alguém responderia à questão proposta, englobando essa condição de quase nenhuma repercussão da autobiografia, à vista de um desinteresse incompreensível, já que se trata de um testemunho autêntico, a se dar crédito ao título, sabendo-se que é obra mediúnica e, portanto, perfeitamente passível de realização superior?
Desta feita, três alunos assinalaram seus nomes: Silas, André e Renato.
Adonias gostaria de dar oportunidade a alguém que não tivesse ouvido ainda, mas, para não demonstrar preferência, deixou que os três decidissem quem responderia. Resultou que Renato foi escolhido, com um certo alívio para Adonias, pois lhe parecia que André ou Silas iriam desfechar algumas ponderações com certos aspectos eruditos e negativistas.
— Vamos lá, Renatinho, coragem!
— Mestre querido, bons companheiros, na verdade a coragem de que preciso é a de enfrentar posteriores acusações da consciência, por me haver atrevido a acatar a determinação dos meus dois colegas, ambos, conforme já demonstraram, muito mais aptos a analisar a hipótese levantada por nosso mentor. Entretanto, dispus-me, é bom que todos saibam, a receber o influxo de informações dos dois colegas e de outros que também se prontificaram a ajudar-me, de sorte que a minha exposição tenderá a fazer confluir para uma única opinião a versão de vários e ilustres companheiros. Quero assinalar que este enorme intróito visa a dar-me um pouco mais de tempo para estruturar uma resposta sintética e o mais próxima possível do máximo que temos capacidade de concluir. Sendo assim, passo a desenvolver a seguinte tese: Se Jesus escrevesse a sua própria história e, por uma cadeia mediúnica, desde a esfera mais elevada até chegar a um médium encarnado, a transmitisse aos homens, não mereceria a confiança dos leitores. A bem da verdade, não mereceria nem a nossa confiança, pelo simples fato de que não nos parece nem lógico nem plausível que o Mestre se preocupasse em recuperar uma vida antiga, para um povo que necessita desenvolver seu senso moral, através da realidade das comunicações que recebe do plano da espiritualidade, incentivando-se para a captação de mensagens mais simples, destinadas a comentar as noções mais elementares das leis de causa e efeito, de ação e reação, de trabalho, de amor e de caridade. Qualquer informação no sentido de elucidar os anos obscuros do Senhor esbarraria em sérios percalços científicos, porque logo os estudiosos iriam realizar questões de caráter paleontológico, antropológico, histórico e geográfico, desejando descobrir em sítios arqueológicos as novidades assinaladas, porque, sem a comprovação material dos feitos narrados, tudo quedará no plano das possibilidades, das probabilidades, das hipóteses mais ou menos racionais, tudo isto a demandar verbas de bom quilate, estas muito mais do interesse dos pesquisadores, haja vista o que ocorreu aos manuscritos encontrados perto do Mar Morto, os quais verteram dos cofres públicos para algumas burras particulares uns bons trocados. Em que pese a importância da vida de Jesus, hoje em dia, consoante deixei subentendido, o espiritismo, em suas diferentes formas, é que deve assumir a bandeira das virtudes, levando adiante o ideal cristão. No mínimo, caríssimos colegas, é essa a tarefa sagrada que nos caberá, em um futuro não muito remoto (aqui falha a minha capacidade de previsão), porque a volta de Jesus, apesar de pleiteada por muitos, não terá um significado diverso daquele que se encontra assinalado nos evangelhos e que já mereceu ser comentado de maneira assaz ilustre e profunda pelo codificador da doutrina, Alan Kardec. Pegando a presa pelo rabo, para quem evoluir e, um dia, estiver isento de sentido crítico, quanto aos comentaristas terrenos e etéreos da vida e da obra de Jesus, sempre haverá o recurso de colocar a fita mnemônica citada pelo colega Silas, para presenciar Jesus infante, jovenzinho, adolescente, maduro, a fazer isso e aquilo, sem, contudo, se deparar (ou deparando-se, conforme o nível de elucidação intelectual e domínio emocional da pessoa) com Jesus imerso em seus pensamentos mais sutis e sublimes, tratando de temas cujo teor não temos condições de avaliar, com seus assessores diretos no campo da espiritualidade, já que seus apóstolos, ao menos naquela encarnação, tinham a mentalidade muito pouco acurada filosófica e religiosamente. Tenho dito.
— “Benedictu, carissime!” — exclamou, em arremedo de mau latim, o professor, desfazendo-se de sua espada e de seu escudo. — Para a próxima aula, deixo a seguinte proposta de trabalho: Se, sob certo aspecto, os feitos de Jesus se acham ultrapassados, porque a ciência espírita definiu claros parâmetros para a explicação natural daqueles fenômenos que, aparentemente, suspendiam os efeitos da legislação divina, o que terá sobrado da pregação do Cristo, além da confirmação das principais normas mosaicas e de seus exemplos superiores de vida? Advirto-os sobre o fato de que os evangelhos desempenharam papel importantíssimo para a fixação do cristianismo como critério de fundo religioso. Também devo sugerir-lhes que me respondam por escrito os que desejarem encerrar o curso, já que a nossa meditação nos levou a raciocínios que extravasaram dos limites dos simples conhecimentos dos textos, acreditando eu que, nesta altura, todos vocês estejam aptos a repetir, autor por autor, cada um dos evangelhos. Aos que estão despedindo-se destas aulas, meu abraço particular e a minha mais subida emoção por verificar que dei um impulso efetivo para um aprendizado substancioso dos ensinos de Jesus. A próxima aula se dará na próxima semana, mesmo dia e mesma hora, nesta sala, agora com decoração mais festiva, já que a floresta inexpugnável se tornou um jardim colorido, com suas flores, e alegre, com o gorjear dos pássaros, a indicar que tudo que nos é desconhecido se assemelha aos mistérios impenetráveis contidos na escuridão da mata fechada, ao passo que, quando deciframos os enigmas, as coisas vão assentando-se de forma aprazível e feliz. Até mais ver, queridos.