"... no princípio o Criador
os fez macho e fêmea."
(Mateus, 19:4)
Não cometerás somente adultério
Confessionário da Igreja de Santa Cecília:
“São estas paredes escurecidas pela fumaça de muitas preces minhas únicas confidentes. Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros . E Vós bem sabeis que jamais, nunca, nem uma só vez, revelei meus santos segredos...”.
Um homem de batina marrom, ajoelhado lendo uma bíblia, fita a imagem de uma santa.
“Julgar-te-ei como são julgadas as adúlteras e as que derramam sangue.; entregar-te-ei ao sangue de furor e de ciúme. ”.
Fecha o livro sagrado e o atira no banco da capela.
“Chegar-me-ei a Vós para juízo, e serei uma testemunha veloz contra as feiticeiras e contras os adúlteros . Vós sois meu mundo, meus ouvidos, meus olhos e meus lábios. E estes estarão selados para todo o sempre. Não só meus, mas de muitos que até Vós vêm, através de mim, trazer e confessar seus temores, egoísmos e traições”.
O santo homem por vezes gesticula e outra deixa as mãos postas em posição de oração. Seus olhos estão vermelhos, resultado de muitas horas de pranto. Sua voz está rouca e soluçante.
“A todos ouvimos, a tudo aturamos e a todos perdoamos. A terra está cheia de adúlteros . As rachaduras dos antigos mosaicos e os velhos castiçais do altar são juntos de mim, os mais pacientes habitantes desta capela”.
A santa alucinação e seu atormentado algoz chegam ao auge:
“Ultimamente notei que nenhum de nós três agüenta mais ouvir as ladainhas das beatas e as choramingas das viúvas e dos desesperados. Mas o que mais nos atormenta e aflige são as ladainhas, estórias e choramingas da maior libertina que já pisou nesta cidade e neste solo sagrado (Oh, que Deus-Todo-Poderoso nos perdoe!)... por causa de seus adultérios... ela se foi, e também se prostituiu ”.
O homem ajoelhado pinga de suor e abre a parte de cima da batina, expondo o peito ao altar.
“Sim, ela mesma, Carmela, sim Carmela... a bela devassa. A musa adúltera, a vaca, a fêmea magnífica, a meretriz. A linda Carmela, a promíscua, Carmela a mulher, a puta. Deus, por que me traístes?”.
Ele salta e coloca-se em pé, agora de costas para o altar, gesticula em prantos:
“Uma geração má e adúltera pede um sinal . Por que colocastes sobre a terra o demônio em forma tão sensual, atraente, tão mulher e tão vadia? Senhor, por que me abandonastes?”.
O homem atormentado caminha em direção a porta da Igreja, quase se arrastando, com as mãos cobrindo e disfarçando o rosto:
“Não me verá olho nenhum! Por que fizestes criatura tão linda quanto as Vossas escrituras.; tão meiga quanto a Tua palavra e tão cruel quanto a Tua apocalíptica ira?”.
O homem entra na cabine de confissão e fecha a porta.
“Como pode uma criatura, uma mulher, trair e amar a tantos ao mesmo tempo? Desvie ela as suas prostituições da sua face, e os seus adultérios de entre os seus peitos . Como uma cria Tua pode ser mais atraente e poderosa que Vós, meu Deus?”.
Termina de tirar toda a batina ficando apenas com a roupa de baixo, no escuro do confessionário:
“Não, perdoai-me, oh Pai, perdoa-me... rezarei. Irei orar pela princesa que reluz no cortiço de número cinco. Se um homem cometer adultério com a mulher de seu próximo... Rezarei pelo corpo e pela alma da deusa cujo templo são os corações dos homens possuídos desta cidade”.
Arranca a roupa de baixo, ficando completamente nu. Está excitado. Ajoelha-se.
“Qualquer um que olhar para uma mulher com intenção impura já cometeu adultério . Penso nos amargurados, nos esquecidos...”.
Começa a se masturbar, freneticamente:
“... penso nos traídos e nos não amados”.
Aumenta o ritmo e começa a gemer, cerrando os dentes:
“E penso... nas ingratas... nas orgulhosas... nas infiéis. Perdoe-as... Ah! Perdoe-as... Arh!”.
O homem nu e de joelhos, ejacula abundantemente, caindo sentado nos calcanhares.
“Não! Penso em mim, confesso! Desejo-a! Mais que tudo, eu a quero. O caminho dos adúlteros é a maldade . Perdoa-me! Eu quero comer aquela vagabunda. Farei cessar o seu meretrício . Perdoa-me! Quero gozar com aquela mulher!”.
Limpa o gozo com as roupas de baixo e começa a vestir a batina.
“Mas, quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos adúlteros e as feiticeiras, e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago de arde com fogo e enxofre “.
Ajoelha-se novamente e bate com os punhos na cadeira do minúsculo cubículo.
“Todas as chamas do inferno não são piores que as chamas de tesão e desejo que sinto! Quero foder aquela vadia. Quero morder seus peitos, comer seu cu e lamber sua boceta. Ou não sabeis que o que se une à puta, faz-se um corpo com ela? Pois serão, como se diz, dois numa só carne. ”.
O homem suado senta-se e encosta-se na parede escura do confessionário.
“Maldito amor que vem de Deus sob a forma de uma assombração. Maldito tesão de mulher que ao confessar seus pecados arrasa-me a alma e estilhaça-me a veia. Pois do coração procedem maus pensamentos... adultério, prostituição... blasfêmia. ”.
Leva as mãos ao rosto começando novamente a chorar e soluçar.
“Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo, e adúltera . Perdoe-a, pois ela rouba-me de Ti. Nem os impuros nem os devassos nem os adúlteros irão herdar o reino que Deus há de julgar. Não... perdoe-me, na verdade perdoe a mim, per...”.
Entra assustada uma moça que se ajoelha em frente à janela em tela do confessionário.
“Sua benção, padre...”.
“Ah, sim, digo, Deus a abençoe, minha filha. Que Deus esteja... conosco”.
“Padre, gostaria de confessar, acho que pequei”.
“Sim Carmela, com certeza filha, vamos...”.
Antes de iniciar, o homem de batina limpou as lágrimas, perdôou-se e esboçou até um pequeno sorriso, lembrando-se das palavras de um grande mestre: Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra .