O número de veículos a trafegar pelas ruas despertou, desde logo, a atenção. Roberto foi protestando:
— Não se pode crer em que uma cidade civilizada, onde os mais poderosos recursos da inteligência se impregnaram em todos os setores da vida, esteja vilipendiando a divina criação, envenenando o ar, com o despejo de tanta fumaça, sem qualquer consideração pela saúde de ninguém, nem mesmo a própria.
Iria mais longe nas recriminações, quando observou que muitos dos companheiros se contristavam. Percebeu que oferecera dramático tópico para as reflexões das consciências, dada a natural participação deles na criação e desenvolvimento do problema.
— Quero desculpar-me por ter lembrado...
Fortunato apressou-se a discordar:
— Roberto, se você vivenciou as nossas existências, deve ter visto que superamos a condição da culpa. O que nos afeta particularmente é o descortinar do futuro, tendo em vista a magnitude do desastre. Supomos que o mesmo panorama vai apresentar-se nos outros centros de grande incidência populacional. O mal do século XX foi não haver tratado com mais precaução os avanços do cientificismo aplicado à tecnologia. As guerras impulsionaram as invenções, no sentido do armamento fundamental para o ataque e a defesa. O emprego dos subprodutos das descobertas na industrialização de artefatos para o bem-estar individual, tendo em vista o crescente poderio econômico das massas de trabalhadores, gerou o círculo vicioso do desejo de possuir cada vez mais, o que exigia que mais se trabalhasse. Enfim, estamos diante de espíritos empreendedores e, sob tal aspecto, infelizes, já que perdem de vista os valores humanitários das diretrizes evangélicas, limitando a atividade afetiva a círculos sociais cada vez menores. Os vizinhos desconhecem-se ou ignoram-se, porque o tempo se transformou em dinheiro. Mesmo assim, se observarmos a paisagem humana, iremos encontrar núcleos iluminados pelos estudos kardecistas, templos em que as pessoas reclamam a paz do Senhor e centros de estudos humanísticos de interesse cultural, como as universidades. Há muita gente altamente cônscia da necessidade do progresso comunitário, conquanto se vejam impedidas de agir mais proficuamente. Se penetrarmos nas escolas primárias e secundárias, iremos encontrar abnegados educadores a serviço do esclarecimento ecológico de caráter científico e até emocional, porque conhecem a extensão crescente das lamentáveis perdas. A maioria, contudo, se interrogada a respeito, não vai abrir mão do veículo individual, entregando às gerações vindouras a responsabilidade de sustar a destruição. Serão essas pessoas contraditórias? Nem sempre. Ao chegarem ao plano da espiritualidade, imediatamente desejam retornar ao orbe, porque a carga de aflições não foi suficiente para o despertar do amor, “lato sensu”. Peço a Felícia que não reproduza o meu discurso, porque me sinto tremendamente defasado em relação aos deveres tomados em seus aspectos práticos. Sei que qualquer leitor, ao tempo da publicação, estará capacitado a discorrer com mais profundidade e mais conhecimento específico a respeito do tema. Obrigado.
Epaminondas se satisfez com a colcha de retalhos do desabafo do aluno e esclareceu:
— Não vejo razão para ignorar-lhe a exposição. Está eivada de problemas sentimentais? Desequilibrou-se, por natural tendência ao receio de ofender os colegas ou os leitores? Então servirá à proficiência para pôr os encarnados a par das dificuldades dos amigos que se envolvem, de peito aberto, nos intrincados meandros dos dispositivos culturais que produziram o atual estado de coisas. Terão eles melhor discernimento? Que ofereçam as soluções que buscamos. Felícia, você está com a gravação da fala de Fortunato?
— Sem dúvida.
— Providencie para que não falte em seu livro.
Fortunato, coitado, se pôs a analisar as razões que o levaram para a frente dos colegas. Mas não prometeu deixar de fazê-lo novamente, caso viesse a sentir o mesmo impulso. Sabia que todas as vibrações que emitira eram o resultado de honesta predisposição para o socorrismo.
João desejou oferecer sua contribuição:
— Amigos, não estou preparado para universalizar minha mentalidade, perante tantas inflexões e tendências que sou capaz de discernir, neste emaranhado de vibrações advindas dos sentimentos e intenções da multidão dos encarnados. Foi assim que vi o discurso de Fortunato, porque recebeu, ao mesmo tempo, tantas informações psíquicas. Mas sou capaz de uniformizar tão distintas características pela tragédia comum, percebida ou não pelos mortais. Temos tido problemas para aceitar como necessários os estudos aprofundados de todos os ramos do saber. Julgamos, muitas vezes, que falhamos em vidas anteriores, por não recordar os dispositivos a nós projetados pelos benfeitores espirituais. Esse temor se formalizou na tentativa dos mestres de nos oferecer o conhecimento concreto dos eventos, com perdão da má palavra, apocalípticos. Considero oportuno que suspendamos a viagem, para, de imediato, nos enfronharmos nos conhecimentos curriculares, os únicos que nos darão a certeza de estarmos no rumo certo para a consecução do planejamento de auxílio aos homens. Se for preciso, disponho-me a cooperar para o incentivo das deliberações das presentes gerações de reformar o que quer que se lhes tenha deteriorado nas personalidades, por injunções sociais sem perspectiva histórica, seja pelo desconhecimento do passado, seja pela falência nas previsões dos cataclismos.
A proposta era claríssima e deveria ser apreciada coletivamente. Entretanto, ninguém assumiu a palavra, aproveitando para manifestações apenas telepáticas, a fim de propiciar a Epaminondas o apanhado estatístico que, no caso, significava a mais lídima democracia.
Após alguns minutos de expectativa, o mentor definiu seu pensamento:
— Acredito que a maioria decidiu apoiar a moção do retorno às bases educacionais da colônia, embora não tenha sentido completa firmeza em ninguém, porque todos aguardam o resultado, predispondo-se a aceitá-lo, qualquer que seja. Muitos consideraram a necessidade de consulta aos irmãos postados acima, na hierarquia do departamento. Eu mesmo não adquiri a certeza de que a sugestão tenha sido dada com convicção, porque o autor demonstra muita curiosidade, de cunho eminentemente intelectual, a respeito das características humanas em descompasso com o gerenciar das atividades de restauro do ambiente vital. Sendo assim, sou forçado a impregnar-lhes a mente de suspeitas quanto à capacidade que têm os professores de oferecer as soluções mais eficazes para cada aspecto emocional promovido pelo impacto da realidade em foco. Não terá havido riqueza de observações nestes três dias de visita? Não subsidiarão perspectivas mais objetivas para absorção mais rápida e completa dos tópicos programáticos? Novas observações não ampliariam o campo de visão, que, em tão pouco tempo, lhes formou na mente o desejo de aceitar na íntegra o projeto socorrista? Vamos, pois, prosseguir visitando a terra, segundo o itinerário primitivo, sempre abrindo espaço para as propostas de regresso.
Aí, houve unanimidade quanto à aceitação.
Felícia, porém, solicitou e recebeu permissão para formar o grupo de redação. Imediatamente, quis que se desse a primeira reunião dos voluntários, porque não via os acontecimentos avançando para definições claras e insofismáveis. Começou a sessão de instalação falando longamente a respeito de seus temores, solicitando dos parceiros que não titubeassem em contribuir com idéias iluminadas pelas virtudes literárias mais adequadas para tornar o texto o mais favorável possível para a finalidade estabelecida.
Rogério foi quem deu a primeira sugestão, de pronto acatada por todos:
— Não vamos reproduzir o inteiro teor das discussões deste grupo. Elas só interessam à economia que se alcançará com o despojamento dos resíduos psicológicos que sedimentam os temores do insucesso. Adotemos atitude otimista, porque é certo que o Senhor haverá de reunir em torno de si todas as criaturas, por mais tenhamos de sofrer durante a peregrinação.