Teotônio não quis deixar-se abater pelas recriminações do bandido. No íntimo, julgava de extremo mau gosto ficar a atormentá-lo quem estava com o queijo e a faca na mão. No máximo, poderia responder-lhe de modo cordial, para não perder a assistência de cada hora. Com a promessa de melhor iluminação, poderia aspirar a dar-se aparência mais saudável, escanhoando a barba e aparando os cabelos, quando crescessem. Mal se via no espelho pouco cristalino do banheiro. Era apenas um vulto, olhos encovados, pele macilenta. Quando se apalpava no escuro ou se desnudava para o banho, via os ossos agredindo a pele, tão magro estava, apesar de alimentar-se a contento. Nunca fora bem nutrido de gordurinhas, porque se esmerava na aplicação das técnicas da moderna ginástica. A aparência era fundamental para a profissão, principalmente porque era o porta-voz primeiro de sua criatividade, vestindo-se com apuro e elegância.
— Vou querer dar-me um trato. Pelo menos, vou representar de cadáver bem cuidado, no caixão que meus pais irão depositar no cemitério.
Passou a examinar as pessoas que acorreriam para o enterro. Os familiares todos, muitos dos quais interessadíssimos em sobras de caixa, pois, sempre, do total apurado com a venda das propriedades, a irmã iria fazer a doação de boa parte, mesmo porque ela não precisava, conforme afirmara diversas vezes, contentando-se com minguado salário que somava ao do marido para efeito da criação e educação dos filhos.
— Minha querida irmãzinha!
Lembrava-se dos tempos infantis, quando brincavam juntos, ele mais velho sete anos, vigiado constantemente pela mãe, especialmente depois da desagradável surpresa...
— Se me desse a liberdade que tive com a loira Maria, acabaria incestuoso, tanto ímpeto dispunha nos atrevimentos sexuais das primeiras idades.
O tema do sexo, definitivamente, se lhe instalava na mente perturbada. Não sentia necessidade nenhuma de se aliviar, conquanto, freqüentemente, lhe assaltassem a memória as recordações lúbricas. Assustara-se com a possibilidade de aceitar o estupro pelos marginais. Via-se, agora, mais conformado com a idéia de permanecer casto todo o tempo do rapto.
— Quem sabe devesse começar os escritos por essa página estúpida da gravidez da garota. As conseqüências lógicas da ocorrência amarguraram-me a existência, inclusive pela divulgação, o que não poderia deixar de acontecer, de que me interessava também (e principalmente) por pessoas de meu sexo.
Evitava a terminologia escabrosa que conhecia em minúcias, tantos foram os amantes de baixa extração social.
— Se esses pecados são purgados em outra vida, vou ter de me contentar em encontrar-me no reino de Deus somente depois de alguns séculos...
Atinou com a demência do raciocínio.
— Se Deus é justo conforme creio, não irá permitir que o simples gozar, mesmo não sendo o mais natural, tendo em vista a procriação, é para ser motivo de queda nos infernos do judaísmo cristão mais grosseiro.
Lembrou-se de que rejeitara os princípios elementares da religião católica, desde a época em que se viu enleado com as tremendas raspanças dos confessionários, sempre seguidas de terços e mais terços de penitência. Não demorou para compreender que toda reação orgânica fora fornecida aos homens e demais seres da natureza pelo Criador. Foi mais além, considerando os excessos autopuníveis, uma vez que existe a lei da cobrança dos abusos pela natureza. Tanto era assim que não se deixou jamais impregnar dos vícios oriundos dos psicotrópicos e dos alucinógenos, os quais via estimulados por muitos companheiros de orgias.
À medida que ia refletindo, ia escrevendo sem peias para que o discurso não se desse sob a pureza vernácula que sempre prezou. Não castigava a linguagem e a tornava o mais favorável possível para que alguém que fosse ler pudesse admirar-lhe as sábias decisões, primeiro em ser fiel aos acontecimentos, segundo em se postar como vitorioso sobre todas as tentações. Rebaixava-se quanto à época dos desvarios, entretanto, denunciava o erro, contornava-o à sua maneira e saía vencedor das provações, como se a vida pudesse considerar-se perene disputa entre o mal e o bem. A tempo, conseguiu observar o fato, renegando o texto.
— Disto aqui, Severino não vai gostar. Não me pediu que me retratasse perante os pobres e desvalidos? Tudo o que estou escrevendo só foi possível porque o dinheiro me sobrava.
Tentou distender os músculos mas estes não responderam a contento. Estava “enferrujado”.
— Não tem que ver: vou precisar internar-me em clínica de recuperação fisiológica, sob cuidados médicos especializados, se quiser restabelecer a antiga forma física de que me gloriava.
Parou para pensar sobre a deliberação.
— Se não me sobrar dinheiro algum, como é que vou conseguir pagar dispendioso instituto de reeducação física e psíquica? Não posso crer que minha irmã vá ser tão irrefletida a respeito dos bens que me pertencem. Irá fazer alguma reserva substanciosa, com certeza, porque sabe como sou no que se refere às conquistas empresariais.
A imaginação levava-o por descaminhos na busca do desamparo pincelado pelo coator.
— Não é possível que não se contentem com o dinheiro e queiram desforrar em mim todas as angústias pela pobreza do país.
Bateu com a palma da mão na testa. Descobrira, finalmente, o que se passava:
— Esses elementos estão vinculados à guerrilha internacional. Não haverei de ser o primeiro prisioneiro ideológico. Não houve um grupo de seqüestradores internacionais preso em flagrante com poderoso chefe de indústria paulista? Estavam arrecadando fundos para organizações internacionais de revolucionários. Eis a razão pela qual Severino é tão culto e tão pungente na defesa dos menos providos de recursos.
Notou Teotônio que escrevera quase tudo o que dissera em voz alta.
— Devo estar ficando louco em revelar aos assassinos a desconfiança de sua identificação. Não entendi por que me deram permissão para ouvir aquela musiqueta pornográfica, assim que cheguei. Agora já sei: era para me enganar quanto aos objetivos do seqüestro. Gente miserável, desqualificada, marginal, a desejar aproveitar-se dos ganhos volumosos mas justos das pessoas bem postadas na sociedade.
Rasgou todas as folhas ao meio. A rubrica, no entanto, obrigava-o a manter o papel intacto quanto ao volume.
— Se desconfiarem de que está faltando alguma folha, não vão me deixar escrever mais nada.
— E que importância tem isso? — interceptou-lhe os pensamentos uma voz que vinha do outro lado da porta. — Você não está sendo capaz de redigir uma simples página de caderno. Grande escritor!
Na semi-obscuridade do cômodo, Teotônio pôde ver os contornos do capuz que o espionava pelo visor da porta.
— Não se acanhe. Se você precisar, vou fornecer quantos cadernos forem necessários. Só não me apresente nada que não signifique a verdadeira deliberação de sua vontade de se regenerar.
A vontade de Teotônio era de saltar sobre o algoz, asfixiando-o pela incoerência da solicitação descabida. Não fora a coação que sofria e iriam passar ao largo um do outro, sem que notasse sequer a existência de ser tão mesquinho. Tomou a precaução de nada revelar em voz alta. Meditava sobre a imagem moral que construíra do Severino. Era um mostrengo, cujo nome fora inspirado pelas recordações dos capangas de Virgulino Ferreira da Silva, o terrível cangaceiro Lampião, que aprendera a detestar.
— Com certeza, falou em voz alta, você é bem capaz de defender as atividades de gente como o célebre Capitão do Nordeste, aquele que matava e roubava...
Voltou a observar o vidro da porta. Não havia ninguém ali. Mas a luz do abajur enfraqueceu-se consideravelmente. Estavam sutilmente ameaçando-o.