Não foi sem grande emoção que Rosalinda se ajoelhou no confessionário, levada por um conjunto de dúvidas e incertezas e pela pressão da mãe, que não se conformava com o fato de que Laura ainda não tinha sido batizada. Mas a moça não quis confessar-se com o padre da paróquia e foi em busca de um desconhecido na catedral.
Após a recepção cordial da voz que vinha do escuro, Rosalinda informou:
— Padre, faz muitos anos que não me confesso, por isso o senhor vai ter de ter paciência comigo.
— Eu a conheço?
— Não, padre.
— Por que não procurou um sacerdote conhecido?
— Tenho medo de que ele possa fazer confidências ou dar indiretas para minha mãe.
— O segredo do confessionário é inviolável. Não será por que você tem vergonha dos próprios pecados?
— O meu nome é Rosalinda. E o seu?
— João.
— Padre João, quanto tempo eu posso ficar conversando com o senhor?
— Quanto os seus joelhos agüentarem.
— É para as pessoas ficarem pouco tempo que este estrado é de madeira?
— Faz parte da penitência. Mas eu estou aqui para ouvi-la dizer que se arrependeu de haver pecado.
— Eu sei que ofendi as leis da igreja, mas não matei nem roubei. A verdade é que tive uma filha com um homem casado, mas eu não achei que cometi nenhum pecado, desejando o marido de minha próxima.
— Veja bem, Rosalinda. Só o fato de você não ter freqüentado a missa todo domingo, pelo que me parece que aconteceu...
— Não freqüentei mesmo.
— Só isso bastava para justificar sua presença no confessionário. Em todo o caso, a Igreja permite que os fiéis se entendam diretamente com Deus, desde que ofereçam a ele a intenção sincera de se arrependerem. Aí, por iniciativa própria, rezam um ato de contrição e outras orações, conforme sintam necessidade, e podem considerar-se livres dos pecados. É bem diferente quando apresentam problemas de rebeldia e dificuldades de aceitação dos princípios básicos do cristianismo, o que caracteriza falta de fé, e isto constitui motivo para não receber o perdão eclesiástico. Recomenda-se, neste caso, que a pessoa estude um pouco de teologia, voltando às aulas de catecismo, e se disponha a reafirmar sua convicção católica. Não será este o seu caso?
— Eu gostaria de ter a fé que minha mãe me recomenda, embora eu ache que ela mesma não acredite em tudo que a Igreja ensina.
— Vamos restringir-nos ao seu ponto de vista. Deixe a sua mãe entender-se com o confessor dela. O que está preocupando tanto você que resolveu procurar um sacerdote?
— Eu estou com vinte e um anos completos e moro sozinha, com minha filha, faz seis meses. Mas estou sempre na casa de minha mãe e ela está insistindo para que eu batize a menina. Eu não vejo nenhuma necessidade disso. Se fosse tão importante, nenhum chinês, indiano, japonês ou pessoas de outras religiões deixariam de batizar os filhos. Para ela, porém, parece que o mundo vai acabar.
— Você acha que está cometendo um pecado não batizando sua filha?
— Sinceramente, eu acho que não.
— Então, por que veio procurar-me? Está querendo que eu diga para não batizar? Isso eu não posso dizer, porque o sacramento do batismo, como você deve saber, foi instituído a partir do batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo e serve para tornar o pagão um membro da comunidade católica, mesmo que, mais tarde, a própria Igreja exija que haja uma confirmação desse ato, através da crisma. Você está parecendo-me bem mais instruída para ter de ouvir as coisas básicas da religião. Que mais você gostaria de me contar?
— Meu avô está freqüentando um centro espírita. Ele acredita que os espíritos podem vir conversar com os vivos.
— O que é que você acha? Posso deduzir que você andou lendo alguma obra de Allan Kardec?
— Já me passaram alguns livros dele, mas eu não me atrevi a ler nada. É verdade.
— Está com medo de ver fantasmas?
— Eu sei que a Igreja afirma que algumas crianças viram e conversaram com Nossa Senhora. Isso não constitui um fenômeno mediúnico?
— Com a bênção de Deus, esse tipo de milagre pode realizar-se. Contudo, veja bem, é muito mais comum que haja uma possessão demoníaca, pela fraqueza da fé das criaturas e sua falta de vigilância. Eu estou dizendo isso porque é o que acontece nas casas espíritas e nos terreiros de umbanda e de candomblé.
— Minha mãe disse que isso é suficiente para o sujeito ser expulso da Igreja.
— A Igreja só excomunga quem faz declaração pública contra ela. O que se passa no íntimo das pessoas é algo que deve ser resolvido entre ela e o Criador. Eu sei que você pode lembrar-se da Inquisição. Mas, graças a Deus, o nosso Papa já se penitenciou perante a humanidade dos erros de interpretação de certas épocas obscuras, em que o clero não discernia bem os valores espirituais e morais, misturando o poder temporal com o poder espiritual.
— Posso confiar-lhe um problema meu?
— Eu fiz todos os votos, inclusive o da obediência aos cânones sagrados da confissão. O que eu ouvir será como que ouvido pelo Senhor. Se eu perdoar os seus pecados, será em nome dele.
— Eu, Padre João, não me considero uma pecadora, por mais que o senhor possa citar-me as leis de Deus, da Igreja ou os pecados capitais. Eu acho que a natureza impõe às pessoas uma cobrança física e mental. Eu sou uma trabalhadora, mas, às vezes, me deixo ficar em casa sem fazer nada. Nem por isso acho que cometi o pecado da preguiça. E assim por diante. Mas eu não sei o que pensar a respeito de uma certa pessoa que eu abandonei à própria sorte. Vou resumir porque meu joelho já está doendo.
— Quer ir à sacristia? Lá você vai poder ficar sentada.
— Estou bem. O que aconteceu é que conheci um rapaz que não valia nada e que desejava acomodar-se ao meu lado. Era um viciado e tinha o vírus da AIDS. Eu soube que ele desenvolveu a doença, acabando por falecer. Mas eu nunca fui visitá-lo, com muita raiva do que ele quase fez comigo. O senhor acha que eu pequei?
— Se a sua consciência está incomodada, trata-se de um problema a ser resolvido. Eu agradeço que você tenha vindo conversar com um padre, apesar de todas as suas indagações íntimas. Na verdade, você não devia nada a ele, pelo que entendi. Como não é possível voltar atrás para restabelecer o vínculo rompido, sugiro-lhe que se apegue ao santo de sua predileção, rogando para amenizar os sofrimentos daquela criatura, porque, com certeza, deve estar no purgatório, uma vez que, em tais casos, as pessoas, em geral, têm recebido a extrema-unção, arrependendo-se dos pecados na hora da morte. Isto é que caracteriza a benevolência de Deus, que é pai de todos nós e que nos perdoa, conforme nos ensinou Jesus, Filho de Deus e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
— Muito obrigado, Padre João.
— Se você não está lembrada do ato de contrição, leia aí do lado. Enquanto isso, eu vou dar-lhe o perdão de Deus para todos os seus pecados, porque compreendi que você não pretende viver com remorsos a vida toda. Como penitência, exijo que reze três terços e mande rezar três missas pelas almas do purgatório, às quais você deverá assistir.
Rosalinda ficou com vontade de discutir o castigo que lhe estava sendo imposto, mas limitou-se a uma leitura fria do texto, cuja lembrança estava totalmente esmaecida em sua memória. Mal percebeu que a portinhola se fechava, escondendo aquela sombra que a recebera com tanta consideração.
Já em casa, a moça considerou que não havia outra coisa a fazer senão orar pela alma do defunto, misturando as chamas do purgatório às correrias nas trevas, segundo uma explicação que lhe dera Lavínia.