Rosalinda conheceu Paulo num dos muitos desfiles de moda íntima que vinha patrocinando. Lançou o nome de sua casa no mercado exterior, onde lhe foram exigidas certas condições de marketing de massa, com o devido apoio da mídia. Para isso, precisou lançar mão do recurso dos desfiles, já que há algum tempo abrira uma fábrica de confecções. Contratou, então, os serviços de agência de modelos e entrou em contato com organizadores de eventos de moda.
Foram tantos os trabalhos e preocupações que, no dia de primeiro aniversário do sobrinho mais novo, estava envolvida na organização dos planos para levar o que ela denominava de enxoval, para mostrar ao público nova-iorquino.
Mandou um presente através da filha e a promessa de que o próximo final de semana estaria passando com toda a família, desejosa de comemorar o sucesso dos empreendimentos.
Paulo era editor de modas em importante revista local. Acompanhava de perto cada evento no setor, destacando as novidades e as qualidades dos jovens empresários.
Foi assim que se apresentou a Rosalinda, propondo-lhe uma entrevista para reportagem ilustrada, logo após haver percorrido todas as instalações da confecção e duas das principais lojas da rede.
Duas semanas depois, estavam ambos viajando juntos para Nova Iorque, ela para prevenir que tudo corresse a contento e para se fazer conhecida.; ele para cobrir o evento.
No hotel, de volta da cansativa jornada, ambos muito satisfeitos com o andamento dos negócios fechados em dólares, antes de se despedirem, combinaram um encontro para a manhã seguinte, em que comemorariam a vitoriosa realização.
Assim que trocaram beijos protocolares, buscaram assento à sombra de frondosa árvore no Central Park, ignorando o grande número de freqüentadores.
Coube a Paulo a iniciativa da conversa:
— Rosalinda, você é uma mulher maravilhosa. Por que se tem esquivado de todas as minhas tentativas de aproximação?
— Gato escaldado, meu filho, tem medo de água fria.
— Eu já lhe abri de par em par a minha vida. Tenho um passado, mas quem não tem? Você deveria, mais que qualquer outra, compreender isso. Não é verdade?
— Em nome deste meu passado, que você conhece apenas em parte, é que estou me resguardando de entregar-lhe meu coração.
— Comigo, minha querida, é pão, pão, queijo, queijo. Sou muito positivo nas coisas que pretendo conseguir.
— Pois eu estou num beco sem saída: gostaria de acreditar que você é sincero e que me faria feliz. Mas também tenho muito medo de perdê-lo para sempre, porque me simpatizei com sua figura, com sua inteligência e com sua cultura. Além do mais, nossos papos giram em torno de interesses comuns, com exceção dos temas religiosos.
— Fui criado na fé católica e me satisfazem os preceitos do Cristo. Não estou precisando dos espíritos nem dos conselhos deles. Aliás, se eu estivesse mal intencionado, não diria estas coisas. Não é verdade?
— E qual é o alcance de suas intenções?
— Quero viver com você, enquanto durar a nossa afeição.
Rosalinda desejou redargüir de imediato, refletiu, porém, uns instantes para dar resposta mais completa. Finalmente, levantou os olhos encarando o jovem senhor à sua frente, e disse-lhe com a voz mais doce que pôde:
— Você fala em afeição mas não disse uma única vez que me ama. Por certo, Paulo querido, você está com medo de repetir alguma confissão amorosa que acabou não dando certo. Sei que você é solteiro e que se apaixonou por uma mulher casada que não quis abandonar o marido...
— O dinheiro falou muito mais alto.
— Pois bem, meu caro, eu não estou no mesmo caso. Falando bem francamente, estou querendo gerar mais um ou dois filhos mas, para estes, gostaria de dar um pai. A minha experiência com a Beatriz foi maravilhosa e não poderia querer como filha uma pessoa mais bonita externa e interiormente. Ela já está criada e tem muito mais juízo que eu, ao menos, até estes três últimos anos, quando ela me forçou a pensar muito mais na vida como...
Hesitou em enunciar um conceito de caráter doutrinário espírita. Paulo aproveitou a deixa para expor seus sentimentos:
— Quer saber a verdade? As mulheres todas que conheci, sem exceção, também queriam as mesmas coisas. Infelizmente ou felizmente, não sei, não tive por nenhuma delas a mesma atração que tenho por você, com certeza porque você expõe as idéias com muita clareza, demonstrando ser uma pessoa reflexiva, dotada de muito bom senso. Como jornalista, são qualidades essas que admiro e que exalto.
— Homem de Deus, por que você não me propõe casamento?
— Porque sou casado.
— Você me disse que era solteiro.
— Não foi uma mentira, verdadeiramente. Acontece que a mulher com quem troquei alianças está entrevada, vítima que foi de um acidente tremendo, tendo uma vida vegetativa. Seria desumano desampará-la com um divórcio que a minha religião condena. Mas também é profundamente desumano ficar preso a um molambo de gente, deixando de viver uma vida de relacionamentos.
— Para você, sexo fora do casamento não é pecado?
— Tenho recebido penitências sempre maiores, mas o meu confessor sabe das condições de minha esposa e já pensou até em entrar com pedido para separação perante a Igreja. Eu é que não permiti, pensando que não irá demorar para ela morrer.
— Ao menos, você não demonstra por ela um amor infeliz, como também não está condoído com o desenlace próximo. Há quanto tempo vocês vivem esse drama?
— Há um pouco mais de cinco anos. Por isso é que estou calejado. O que eu tinha de chorar, já chorei. Agora estou na fase de rezar para que Deus alivie a dor daquela criatura.
— Quanto tempo vocês ficaram casados até suceder o acidente?
— Ficamos oito anos.
— E não tiveram filhos?
— Dois.
— E onde estão escondidos?
— Deixei-os com os meus sogros. Eles me acusam de ter provocado o acidente, porque era eu quem dirigia o carro. Os dois meninos se feriram sem gravidade e eu saí completamente ileso.
— Eu gostaria de ter ouvido essa história no nosso primeiro momento juntos.
— Mas nós nos conhecemos há tão pouco tempo...
— Menos de três semanas, contudo, temos batido papo quase todos estes dias e você me fez crer que estava totalmente livre.
— E não estou?
— Não, você está comprometido com uma pessoa, a quem deve respeito e, talvez, toda consideração. E está comprometido com a sua religião.
— Que vamos fazer daqui para a frente, sabendo que gostamos um do outro?
— Vamos dar tempo ao tempo. Trate de sua mulher com muito carinho. Quando ocorrer o desenlace, se nossos sentimentos estiverem acesos, voltaremos a nos encontrar com a esperança de vivermos um amor mais maduro e responsável.
— E se ela sobreviver por mais dez anos?
— Quer dizer que não era para nós criarmos um laço importante no sentido amoroso.
— Você está dizendo que não vai esperar por mim?
— Não vou mesmo, a menos que sua filosofia de vida mude e você passe a admitir certos valores que atualmente rejeita, entre os quais, como você mesmo afirmou, os da doutrina dos espíritos. Você não percebe que está vivendo uma vida dupla? Com sua personalidade dividida, quem me garante que você venha a ser o melhor pai para os meus filhos? Quem me garante que você esteja sendo o melhor pai para os seus próprios filhos, que você deixa aos cuidados dos avós? Não me diga. Deixe-me adivinhar. Não é verdade que você não os vê há mais de ano?
Paulo não se atreveu a responder. Avaliou que não estava à altura daquela mulher adulta e vivida, entendendo que muitas de suas próprias razões de existir não passavam de sofismas, de escamoteações da verdade.
Voltaram para o Brasil em vôos diferentes e Rosalinda pôde apreciar soberba reportagem do desfile, onde se destacava elogiosa referência ao seu tino comercial. Nunca mais se encontraram.