Conhecido de Rosalinda desde os tempos dos primeiros desfiles, Claudionor, um dia, voltou dos Estados Unidos, cheio de projetos para lançamento de coleções de lingerie.
Após instalar-se com a família em belo palacete, procurou os empresários do setor, oferecendo-lhes os seus serviços.
Rosalinda interessou-se, combinando com ele que, caso os contatos com a mídia se demonstrassem efetivos, poderia fechar um contrato por três meses, dando-lhe exclusividade para a divulgação de uma nova marca que consignava vários produtos, incluindo, no catálogo, jóias, bijuterias, perfumes e prêt-à-porter.
Claudionor surpreendeu-se com o dinamismo da empresária, quando realizou a obrigatória pesquisa de seu nome no mercado. Aos quarenta e nove anos de idade, detinha ela para mais de quarenta por cento dos negócios, enfrentando de igual para igual os produtos estrangeiros, sem contar as exportações. A nova marca era a ponta do iceberg que escondia quatro parques fabris e dois laboratórios.
À vista dos primeiros resultados positivos, Claudionor ofereceu-lhe uma recepção em sua residência, convidando ou patrocinando, conforme o caso, cobertura completa dos órgãos de comunicação, recepção que teve o brilho das grandes festas particulares dos milionários empenhados em ampliar o lucro das empresas.
Naquela madrugada, ambos exaustos, saíram ao pátio a espairecer, desejosos de olvidar um pouco os aspectos comerciais de seu relacionamento.
— Patroa, espero que tenha ficado satisfeita com o meu desempenho.
— Você está valendo cada centavo que estou aplicando.
— Posso dizer de minha admiração pelo seu faro industrial? Tudo em que você tem tocado transforma-se em ouro. Sinto-me lisonjeado por colaborar...
— Você tem um jardim maravilhoso. Assim todo iluminado, os matizes de coloração das árvores e das flores se destacam...
Coincidentemente, as lâmpadas se apagaram, permanecendo acesas apenas as que ladeavam a alameda por onde caminhavam.
Riram os dois e se calaram por algum tempo, até que Claudionor se atreveu a perguntar:
— Você está vendo algum espírito ao nosso redor?
— Eu não. Por quê? Você está vendo?
— Às vezes, eu tenho a impressão de estar sendo observado.
— São as câmaras da equipe da segurança. Aposto que todos os muros estão sob vigilância e que ninguém entra sem que a presença seja notada.
— É verdade. Aliás, nem nos Estados Unidos eu via tanto cuidado com os ladrões.
— Nesta cidade, o controle das quadrilhas é regulamentado em lei.
— Não entendi.
— As cidades estão divididas entre bandos de malfeitores, em equilíbrio cada vez mais estável. Eles exercem o domínio de sua área a poder das armas. Houve um tempo em que havia uma polícia corrupta participando dos lucros e de algumas perdas, até que os chefões do crime organizado resolveram, lá pelos idos de dois mil e vinte, que seria bem melhor se demarcassem cada território, respeitando o comércio da droga, do sexo e das armas, estabelecendo taxas para permitirem o tráfico em seus domínios. Cada vez mais essas verdadeiras aduanas foram ganhando personalidade, de modo que, apesar de não haver contrato lavrado em cartório, também não se tentava um contrabando que só teria péssimas conseqüências para todos. O povo aceitou essa forma de governo, tirando proveito da paz reinante entre as gangues, desprovendo o poder público de autoridade sobre a região. A juventude é que tem sofrido os piores reveses, porque são muitos os que se intoxicam, muito embora o poder dos psicotrópicos tenha sido diminuído no próprio interesse de quem vende. É bem diferente dos Estados Unidos, que precisaram cercar todas as fronteiras, abatendo os aviões e afundando os navios que se aproximavam clandestinamente.
— Rosalinda, lá existe uma verdadeira ditadura do dinheiro. Neste segundo quartel do século, os testes de odor não só determinam a existência de qualquer droga, como sua densidade e pureza. Eles não colocam nos jornais, mas todos sabem que pequenos consumidores são deixados livres. Está se passando como no tempo em que o cigarro começava a ser combatido. Primeiro, foi a exigência de cada vez mais baixos teores de nicotina e de alcatrão, até que houve a inclusão obrigatória dos produtos de eliminação orgânica dos ingredientes prejudiciais à saúde. Hoje, qualquer um pode comprar cigarros e até maconha, mas não vai obter prazer nem vai aliviar a depressão. Aliás, o tratamento dos estressados vem apresentando crescente queda, já que os campos de júbilo e de recreação estão por toda a parte, podendo até os que trabalham dezoito horas por semana, que é o máximo, reservar para todos os dias sessões com psicoterapeutas e instrutores de condicionamento físico, sempre com acompanhamento médico.
— Por que você fugiu de lá?
— Porque lá a riqueza não pode concentrar-se nas mãos das pessoas, como aqui. Se todos vivem bem, pouquíssimos alcançam possuir uma residência como esta.
— Mas você falou em ditadura do dinheiro.
— Com certeza, a ditadura é de quem emite as moedas, ou seja, o poder público. Como o povo está satisfeito com o sistema, faz trinta anos que mantém no governo o mesmo partido.
— Aqui também!
— Como?!...
— As pessoas mudam mas o espírito é sempre o mesmo.
— Rosalinda, isto me lembra a minha pergunta. Não é esse o espírito a que eu me referia.
— Eu não sou vidente como médium. Eu sou escrevente. Que base doutrinária espírita é a sua?
— Eu li um dos seus romances. Pela metade.
— Não ficou curioso como terminaria?
— Li do meio para o fim. A minha experiência diz que ler desde o início é perda de tempo.
— Mas, ao menos, não folheou o começo para obter informações?
— Duas ou três vezes. Não mais que isso.
— De qualquer modo, seus conhecimentos são precários. A doutrina dos espíritos é por demais complexa, tanto que o povo que comparece aos centros espíritas para lá vai atrás dos fenômenos, em pleno terceiro milênio. De resto, século vinte e um, vinte ou dezenove, tudo depende do nível de educação das pessoas, porque os escritos da codificação passaram pelo crivo da inteligência, da sensibilidade, dos conhecimentos e das intuições superiores de um homem (Allan Kardec) orientado por espíritos evoluidíssimos.
— Se eles realizassem sua obra hoje, a fariam diferente?
— Nenhuma chance. Os fundamentos são imperecíveis. Mas não pense que eles estejam dormindo em berço esplêndido, como se registrava no antigo hino. Eles prosseguem orientando os encarnados, tanto que as obras mediúnicas editadas passam de cinqüenta mil títulos.
— Quais as que você me recomenda?
— Existem alguns extratos do chamado pentateuco kardequiano. Se você não consegue ler sequer um romance...
— Diga um título, por favor.
— Eu vou mandar-lhe um exemplar de O Livro dos Espíritos. Se você gostar e se interessar, mando-lhe O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo.
Dois meses depois, Claudionor foi assassinado dentro de casa por invasores pertencentes a uma quadrilha que buscava fixar seu território naquele local. A polícia apurou que havia gravações de conversas na Internet nas quais a vítima se recusava a ser extorquido.