Pecador... Tu és o relógio atrasado do santo ofício. —Nosso idílio morreu. — Não gostaria que fosse verdade, mas negar uma verdade é mentir. — Então, por favor! Afasta-te também de Chanana. Talvez te pareça fácil dizer saia de cena, mas, a maquiagem penetrou minha alma como óleo dos catecúmenos. — Chanana tem idade de ser minha mãe! — É por isso mesmo! Ela se parece muito com dona Leide. — Ela parece com minha mãe ou eu me pareço com teu pai? — Não respondo por Freud. — Tens vocação ao sacerdócio, mas esbarras na carne. É preciso que corpo e espírito formem um todo, único e indivisível com os olhos voltados para o céu. — Tenho um pé no céu e outro no mundo. Desejo ter tua carne em minha carne, pele na minha pele. Neste caso, não tenho livre-arbítrio. Alguma coisa superior à minha liberdade de escolha, domina meu ser. Não consigo controlar. — Podemos ser apenas amigos. — Impossível! Preciso repetir que não posso vê-la sem desejar? Não consigo desejar sem tocar?... Fez uma pausa. Enxugou uma lágrima, e disse com lábios trêmulos: — Quando estás comigo, e eu contigo, Deus também aí está. — Deus não está no abismo, mas é capaz de mergulhar nas profundezas do abismo para resgatar uma alma. Não vês que o anjo da guarda vira as costas, quando me acaricias o rosto?... quando sorve os cristais derretidos que banham minha face? — As próprias trevas não são escuras para Deus. Se eu subir até os céus, ali o Senhor estará; se descer à região dos mortos, lá O encontrarei também. — Pecador, pecador! Não vives o que pregas. Por favor, não me chame mais para trabalhar. Não me convide para tuas festas. És carne, simplesmente carnal. — Isto é a realidade da ficção. Não compreendes? — E como vou saber, quando atua Ravenala ou Chanana? — Nunca se sabe. É impossível separar o espírito da carne. Se a carne morre, vivifica o espírito. E o espírito que é imortal passa a habitar esfera superior. Quando isso acontece, só haverá reencontro no juízo final. — Não te verei mais? — É preciso evitar situações que favorecem o pecado. “A ocasião não faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável.” Claro que Ravenala não se esqueceu de que foi ela quem convidou Robert para escrever um livro a duas mãos. — Não insistas comigo para te deixar. Posso ir para as mais longínquas paragens, mas meu coração estará sempre próximo ao teu. — Estou em conflito com o nono mandamento. Sinto que Androceu procura o momento certo para disparar sua flexa no calcanhar de Aquiles. — Falas como se estivesses com Chanana. Ela é casada. Fica com ela, então! Mas, deixo-te um conselho: “Troque os bens do tempo pelos da eternidade. Ajunte tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não os consomem. — Desculpe-me por despertar o psicanalista que dorme: “O homem que está livre da religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais normal e completa.” — Viver no pecado não é ter uma vida normal. Também disse a alma que há pouco evocaste: “Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.” — Não sou Nietzsche nem tu és Freud, mas haveremos de concordar com quem tenha dito: “ A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” — Sinto-me mais forte quando sou amada. — Não decides se quer e não pode, ou se pode e não quer. Deixas-me confuso. — Quero tua amizade. –— Não posso ter as duas coisas? — Não! Ou amarás a Deus e odiarás o mundo, ou terás o mundo e perderás a salvação. — Mas ainda estou no mundo! O próprio Jesus orou pelos pecadores pedindo que o Pai não tirasse do mundo, mas os preservasse do mal. — Também oro por ti. Não posso deixar perder-se um homem tão bom. Faça alguma coisa por ti mesmo. Salve tua alma! Quero te ver no céu. — É para lá que iremos, mas é necessário mortificar a carne. Portanto, não poderemos mais nos encontrar. — Nesta quadra da vida, sair de cena é doloroso. — Et finita trinus. — O quê? — Agora é a vez do leitor criar seu enredo, conforme lhe convém. — Nem tanto! Quero ser lida por clérigos e leigos, crianças, velhos...Meu desejo é que todos: personagens e leitores, estejam presentes na vaquejada do céu. — Continuar a história no céu? — Quero ser a velhinha da carimbamba, passar de geração para geração. — É difícil viver ao mesmo tempo duas personagens. Ravenala deve sair de cena. Lembras que manchaste a parede de minha casa com tinta guache? — Sim! Quando transformava tua garagem em local de festa. — Pois é. A tinta saiu com esponja e água. Como na vida, tudo que não tem consistência passa. — Gravei teu pensamento, no mais profundo de minha alma: “ Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.” — Que adianta ensinar a voar, se tu não voas? Ensinar a sonhar, se não sonha. Curas a ferida alheia com a mão esquerda, e com a direita, guarda tuas dores na gaveta. — Amarás uma pessoa, quando conheceres seu coração. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: Internet