Estavam casados havia
coisa de cinco anos, Rômulo e Cristiane. Como no clima romântico dos filmes, os
dois se conheceram ainda jovens e, como se fossem feitos um para o outro,
demorou pouco tempo até que começassem a sair juntos. Era visível que se amavam,
podia-se notar pela forma como estavam sempre felizes juntos e pareciam não se
cansar da presença um do outro. Estudavam de manhã, quando estavam juntos nos
intervalos das aulas, e à noite, após os cursos que cada um desenvolvia na
parte da tarde. Era o típico namoro na sala de casa, que mostrou com o tempo
ter a benção dos pais, e só mudavam de rotina nos finais de semana, quando
saíam sós ou com amigos. Shoppings, cinemas, festas, os mais variados programas
faziam juntos. Alegrias e sofrimentos eram mútuos, conjuntos, nada felicitava
um sem que despertasse a felicidade do outro, o mesmo ocorrendo com as
tristezas. Um caso de amor tão raro quanto belo de se testemunhar.
O tempo deixou cada vez
mais claro que os dois continuariam juntos, que não era simplesmente um namoro
de colégio, uma fase temporária como viam acontecer com muitos amigos. Rômulo
fazia planos para o futuro, queria fazer faculdade de Direito, ser um advogado
famoso, promotor ou juiz. Não apenas por gostar da profissão, mas pelo fato de
que queria ter dinheiro para dar uma boa condição de vida à esposa e aos filhos
que viriam a ter. Os olhos dela brilhavam ao ouvir as palavras do namorado,
vê-lo como homem empenhado em fazer com que o lar prosperasse e disposto a
cuidar de sua família de modo que nada faltasse a eles. Ela ainda não sabia o
que fazer e ele deixava claro que, independente do que decidisse, ele cuidaria
de tudo e não deixaria que nenhum tipo de privação tomasse conta de seu lar.
Esses comentários sempre eram seguidos de abraços caloroso e beijos que
deixavam evidente uma paixão que o tempo não apagaria.
Entre pequenas brigas,
períodos de mágoa, algumas maiores e outras menores, o perdão que não tardava e
o tempo que passou mostravam que o que os dois tinham não iria desaparecer com
os anos, mas, sim, que estes iriam reafirmar a união. Formaram-se, aconteceu a
festa de formatura, quando viajaram juntos pela primeira vez, passando uma
semana fora. Depois de comemorarem, novos planos. Veio o vestibular e ele ingressou na
faculdade. Ela, ainda sem decidir o que iria fazer, arrumou trabalho. O namoro
continuava, mas o tempo que tinham um para o outro diminuiu devido aos estudos
contínuos e o estágio dele, que logo chegaram e, como se não bastasse, havia o
serviço dela, no qual, à sua maneira, parecia estar indo bem. Viam-se à noite
nos primeiros anos, mas não demorou muito para que ele passasse a estagiar
durante o dia e estudar à noite. Ela dava escapadas até a faculdade à noite e
conseguiam se ver, mas os encontros, cada vez mais, se limitavam aos finais de
semana, exceto nas férias, quando voltavam a se ver todos os dias.
No quarto ano de
faculdade de Rômulo, começaram os planos para o casamento, pelo qual ambos
ansiavam. Cristiane não demonstrou estar tão ansiosa quanto ele pelo fato, mas
o futuro noivo não deu atenção a isso, praticamente esquecendo-se deste detalhe
logo depois. O noivado foi comemorado com um churrasco na casa dos pais do
rapaz, todos muito felizes e a noiva já demonstrando uma alegria levemente
maior que a manifestada quando o noivo falou sobre o assunto pela primeira vez.
Apreensão pela novidade, talvez, pensou ele. Fase nova, um passo importante a
ser dado, talvez fosse normal que estivesse mais nervosa que ele, que sempre
deu o primeiro passo em tudo.
Veio, então, a formatura
e, logo em seguida, o casamento. Junto a ele, um presente do pai de Rômulo, seu
Jarbas, que entregou ao jovem a chave de seu apartamento, onde ele iria morar
com a esposa. A alegria dos dois não conhecia limite, deixando a entender que aquele
seria o melhor dia de suas vidas. Comemoraram, brincaram e se divertiram junto
aos demais convidados, passando boa parte da festa afastados até o final,
quando partiram em viagem de Lua de Mel para Porto Seguro por uma semana. Ao
voltarem, providenciaram suas mudanças e logo já dividiam o mesmo teto.
A felicidade virou
rotina. O que antes era sonho havia se tornado realidade, o casal de
adolescentes havia atingido a idade adulta, estavam dividindo
responsabilidades, cuidando do lar, Rômulo havia aberto seu escritório de
advocacia com a ajuda do pai e a clientela era formada por pessoas de classe
média e alta. Muito trabalho para fazer, muitas vezes trazendo trabalho para
casa e, quando não o trazia, havia cansaço de sobra para que o advogado
procurasse ir cedo para a cama quando não ia assistir o futebol com os amigos
na quarta-feira. Cristiane era compreensiva, havia deixado o emprego há um
tempo, segundo ela, porque queria passar mais tempo cuidando da casa e estava
se desentendendo com alguns funcionários da empresa. Sendo assim, achou mais
decente pedir as contas, mesmo porque, anos depois, poderia resgatar o que
havia deixado de fundo de garantia, não tendo pressa devido ao bom padrão de
vida que tinha com o marido, que concordou com a decisão.
O clima entre os dois já
não era mais tão romântico quanto era anos, atrás mesmo porque a companhia de
um já não era mais novidade alguma para o outro. O romantismo adolescente
havia, finalmente, dado lugar a uma convivência mais madura, mais prática, na
qual as ações se tornaram mais importantes que as palavras. Assumiram a postura
típica de toda família de classe média, mas ainda não tinham filhos. Cristiane
não se animava muito com a ideia e Rômulo não se preocupava com isso, achando
que viriam quando fosse a hora certa. E os anos passavam, sem olhar para trás
ou sentir qualquer remorso, enquanto ambos se dedicavam às tarefas do dia a
dia, fosse aquilo tempo investido ou perdido, como só viriam a descobrir no
final.
Um dia, então, durante o
jantar, ela chama o assunto à mesa; após tanto tempo ouvindo o marido conversar
sobre o trabalho, decidiu voltar a estudar e também fazer Direito. A decisão o
deixou contente, mas, ao mesmo tempo, apreensivo, financeiramente falando. Mas
conhecia a dedicação da mulher e sabia que ela faria jus ao investimento que
ele aplicaria nela. Concordou com a decisão e, no segundo semestre do ano que
corria, ela prestou o vestibular e, então, voltou aos estudos na parte da
noite. A princípio, Rômulo não gostou nada da ideia de chegar em casa após o
trabalho e não encontrar a mulher, mas, em parte, devia isso ao fato de ter se
acostumado a ter um lar à moda antiga, do tipo em que a o marido chegava em
casa após o serviço e encontrava tudo pronto, feito por uma esposa dedicada. Agora,
chegaria em casa, o jantar estaria pronto, a casa arrumada, mas nem por isso
teria a companhia da mulher. Como marido dedicado que era, tratava de levar a
esposa às aulas e busca-la logo depois, ritual que seguia todos os dias, pelo
menos nos três primeiros meses. Depois disso, Cristiane utilizava o transporte
público, alegando ter de chegar mais cedo para estudar com colegas de faculdade
e Rômulo, lembrando-se de seu próprio tempo como universitário, não teve
dificuldade em entender os motivos da mulher, concordando com a decisão.
Passaram-se os meses.
Tudo era comum e normal, ou ao menos os olhos de um marido ocupado demais com o
trabalho e a rotina de cuidados e diversões que giram em torno de um lar viam
dessa forma. Ou assim parecia ser, até o dia em que o zelador do prédio deixou
para entregar as correspondências no final do dia, alegando ter passado várias
horas resolvendo o problema da bomba d’água para que os moradores não ficassem
sem ter como tomar banho à noite. Recebendo as cartas, como normalmente não faz,
já que Cristiane passa o dia em casa, ele notou um envelope da faculdade,
acreditando tratar de uma mensalidade. Como apenas transferia o dinheiro para a
conta da esposa e deixava que ela cuidasse dos pagamentos, não conhecia
necessariamente o envelope em que são mandadas as prestações, se perguntando por
que não chegam por e-mail. Resolveu, então, pegar o celular e fazer o pagamento
pelo aplicativo do banco, uma vez que não queria atrasos nas contas e não teria
como usar o dinheiro que deixou com a esposa. Porém, tão logo abiu a carta, não
viu qualquer código de barra ou indício de que se trataria de um boleto
bancário, mas apenas um aviso da instituição que, ao ser lido, pareceu fazer
com que o mundo do chefe de família começasse a desabar.
A carta deixava claro que
Cristiane seria reprovada por faltas se não comparecesse às aulas, pois já
havia ultrapassado os limites de faltas. A notícia deixou o marido sem fôlego,
não sabia o que pensar da situação e como seria possível que a esposa estivesse
para ser reprovada por falta na faculdade se ele a levava todos os dias e a
deixava na porta? E quando ela utilizava o transporte público ele a via sair e
acompanhava sua caminhada até o ponto de ônibus pela janela. O que estaria
acontecendo que ela não teria ido frequentar as aulas, aonde estaria indo senão
ao curso? Pensamentos que nunca havia tido com relação à esposa, sua namorada
desde a adolescência, agora tomavam forma rapidamente, como se uma versão psicológica
da lei da gravidade tomasse conta de sua mente e o levassem a uma queda tão
livre quanto vertiginosa. E o que ela estaria fazendo agora, fora de casa,
enquanto deveria estar estudando? É no que pensa neste momento, sentado ao sofá
da sala, olhando o vazio, os cotovelos apoiados sobre os joelhos, sem conseguir
prestar atenção em nada mais ao seu redor.
As horas se passam e ele
permanece apático, sem saber o que fazer, que decisão tomar, só conseguindo
pensar no que a mulher estaria fazendo naquele momento. O celular só atende em
caixa postal, como já seria de se esperar, uma vez que está ou ao menos deveria
estar na sala de aula. Ele pensa no rumo que as coisas tomaram não apenas
agora, que tomou consciência de que algo está errado, mas também no fato de que
essas mudanças já começaram a ocorrer meses atrás, provavelmente, tão logo ela
ingressou no curso ou, quem sabe, até mesmo antes disso, razão que a teria
motivado a voltar a estudar tão de repente. Com a mente tumultuada demais para
chegar a uma conclusão ele respira fundo, deita-se no sofá e acende um cigarro,
perdido numa escuridão que se forma dentro de sua alma e que é ainda mais densa
que a da sala de estar.
Finalmente, após uma
série de sons e barulhos típicos no hall do elevador, ele ouve a porta deste se
abrir e, como se reconhecesse os passos e o som do salto alto, sabe que a
esposa chegou. Ouve uma estranha e contida risada, como se algo que ouve de
alguém a deixasse muito contente, talvez um pensamento, talvez uma mensagem no
celular. Então, ela coloca a chave na porta, finalmente entrando no
apartamento.