No dia do encontro, Marcos chegou atrasado. Carlos começava a preocupar-se com o irmão, quando este adentrou o escritório inteiramente transtornado. Envelhecera naquele curto mês mais que nos últimos quinze anos. Os cabelos esbranquiçaram e as rugas se acentuaram. Estava bem mais magro e o porte atlético cedia, vergado pelo peso dos sofrimentos.
Era verdade o que Carlos ouvira em casa. Corria que o médico se havia metido com certa artista da voga, que, suspeitava-se, portava o vírus da AIDS, terrível flagelo para a humanidade promíscua.
O doutor não percebeu a armadilha em que estava enrascando-se. As exigências da cantora haviam feito com que hesitasse longamente a aceitá-la em seu círculo de conquistas. Mas a vaidade masculina acabou vencendo as fracas resistências da moral, ao tempo em que conheceu, tragicamente, que a filha, de somente quinze anos, vivia em promiscuidade sexual com os colegas de zorra. Isto era comum de ocorrer e até seria compreensível e suportável não fora a circunstância de que engravidara e praticara aborto, sem conhecimento seu. Só certa complicação posterior, com sangramentos e hemorragias, fez que a esposa lhe revelasse o ocorrido, para que providenciasse socorro de urgência. Essa desvinculação com a família, esse jogo de esconde-esconde, a impossibilidade de reclamação à vista de seu telhado de vidro e das pedras de que estava de posse a esposa, tudo o levou a desconsiderar os liames afetivos que deveria manter com os seres que pelo carma e pelo sangue lhe diziam íntimo respeito.
Enceguecido, atirou-se aos braços daquela que, pensava, seria a mulher fatal de sua vida, a definitiva, o amor transbordante e derradeiro. O que os aproximara fora a necessidade de certa correção plástica dos seios. Marcos avaliou o problema no paroxismo da paixão e prometeu à sílfide que a transformaria na mulher mais desejável do universo.
Realizados os exames preliminares, configurou-se a atroz doença. Imediatamente, Marcos estabeleceu a necessidade de testar-se. Igualmente, o resultado foi positivo. Lembrou-se da época em que se atirara aos braços da amante e percebeu que, desde então, não mantivera contactos sexuais com a esposa. Estava salva. Mas houve sério problema relativamente à jovem enfermeira com quem sofregamente se aventurara. Como fazer chegar a ela a enunciação do problema?
Essa foi a séria situação que apresentou ao irmão.
— Mas que louco amor foi esse pela artista que, apesar dele, você ainda se meteu com outra?...
Carlos, que sempre se mantivera fiel à esposa, não atinava com os vezos donjuanescos do mano.
— Eu não sei. Quando percebi, estava “transando” com as duas.
— Mas isso é pura libertinagem!...
— Foi o que eu pensei, por isso desfiz logo a enfermeira de qualquer ilusão. Juro que estive com ela só por duas vezes.
— Eu não acredito...
Carlos queria dizer que não admitia semelhante atitude, desolado. Marcos entendeu que punha desconfiança em sua palavra e explodiu:
— Pois fique sabendo que a vida é minha e eu é que estou sofrendo as conseqüências...
— Acalme-se que eu não estou acusando ninguém. Como você pensa fazer para avisar a moça?
— Eu queria que você fosse falar com ela.
— Eu! Mas...
— Escute! Se você não for, quem poderá fazer-me esse favor? Se eu aparecer lá com esse problema, ela irá até querer me processar. Ela é adulta mas é livre e não tem nada a perder.
— Quer dizer que seu medo é a fama? Pois fique sabendo que, em casa, a minha mulher me disse que você estava metido com uma artista que sabidamente teve relacionamento com famoso aidético...
— Santo Deus!
— Pois é. Daqui a pouco, vai sair em tudo quanto é revista. O melhor que você faz é ir direto conversar com a pobre moça...
— Não vou, não! Prefiro dar um tiro na cabeça.
— Pois faça isso! Quem sabe você resolva o problema de todo o mundo.
Podia parecer que Carlos gracejava, mas, na verdade, falava magoado, com o coração na mão, incerto do que dizer e do que pensar. Não estava acostumado a conselhos.
— Escute aqui! Eu posso acompanhá-lo para protegê-lo de algum ataque pessoal, mas acho que você não pode deixar de ir.
— Eu vou avisá-la por telefone.
— Se você fizer isso, vai despertar-lhe o furor. É bom você ter conversa bem franca com ela.
Marcos abaixou a cabeça até tocar nos joelhos. Retirou lenço do bolso e começou a soluçar forte.
— Mãe, mãezinha... — repetia baixinho, como em prece compungida.
Carlos condoeu-se da situação do irmão. Sabia que a doença não tinha cura, mas sua manifestação poderia demorar muitos anos. Marcos era médico, saberia cuidar de si. Se fosse ele, estava perdido.
Levantou-se de trás da escrivaninha e foi colocar-se ao lado do irmão, abraçando-o ternamente.
Naquela tarde, procurariam a enfermeira. A respeito de divórcio, nem trataram. Parecia evidente que a separação se daria de qualquer jeito. Alfredo também tivera o segredo de suas atividades inviolado.
Naquela noite, no etéreo, o casal de protetores, de novo sem voz, em lágrimas de muita dor, orava com intensa fé para receber do Alto novos influxos de coragem para enfrentamento da dura luta que os aguardava. Não se julgavam responsáveis pelos fatos e isso os desobrigava do arrependimento, mas se viam coagidos ao auxílio, como obrigação de amor. As revelações do filho mais velho apanharam-nos de surpresa. Não sabiam o que pensar para arquitetar algum plano de salvação. Pediam aos céus que a enfermeira não estivesse contaminada. Seria de suma importância para a delimitação dos problemas.