Assim que se instalou na nova residência, de modo simples mas confortável, Alfredo, agora Jesualdo, iniciou os contactos para cercar-se de serviçais honestos e prontos para o atendimento de suas necessidades. Precisava de serviço de administração, pois planejara tornar-se agricultor e pecuarista, costume antigo de manter atividades de fachada.
Antes de precipitar-se na vida política da região, foi conhecer o prefeito, apresentou-se como aposentado e dono de herança e solicitou atenção oficial para realizar pelo município algo de proveito. Fez tilintar as moedas e as portas se abriram familiarmente. Declarou-se espírita e adquiriu a confiança de todos, uma vez que, no burgo, havia centro kardecista, que reunia as pessoas mais saudáveis quanto à moralidade.
Jesualdo manifestou o desejo de conhecer a entidade e ficou marcado um dia em que ali seria introduzido. Arriscava-se a ser reconhecido espiritualmente, mas, pelas leituras a que procedera, sabia que estaria garantido até pelos protetores do centro, que impediriam a permanência no local de obsessores, havendo, ainda, a possibilidade de tratamento do obsidiado. Sabia onde pisava.
Como administrador da fazenda, escolheu profissional apontado pelo prefeito como pessoa de integral e ilibado procedimento. Perguntando a respeito dos salários, não desejou despertar suspeitas, mas ofereceu cinqüenta por cento a mais se o coadjutor lhe propiciasse meios de livrá-lo de se imiscuir diretamente nos negócios. Queria descansar. Ao mesmo tempo, pediu-lhe que visse quantos empregados seriam necessários para o serviço e determinou-lhe que contratasse também duas ou três mulheres para tomarem conta da casa.
Enfim, instalou-se, procurando fazê-lo sem alarde, uma vez que todas as tratativas com o pessoal subalterno se deram por meio do capataz.
Que faria Jesualdo? Cuidaria dos fundos financeiros, providenciaria a transformação das moedas estrangeiras em nacional, transferiria parte pequena do dinheiro para contas em bancos brasileiros e viajaria, para não criar raízes no lugarejo. A cidade seria mero refúgio e centro irradiador das atividades financeiras.
Acostumado, contudo, ao alto padrão tecnológico da vida moderna, programou instalar na fazenda o que de melhor poderia ser trazido por meio de importação lícita. Disso trataria pessoalmente.
Assim, fez instalar poderosa antena parabólica para a captação das transmissões televisivas por meio dos satélites. Providenciou a instalação de completa aparelhagem de som, em sala especialmente montada. Aqueceu a água da piscina, precisando fazer construir cobertura adequada.
Porque não queria chamar a atenção, tudo fez da maneira mais sigilosa, tendo até os trabalhadores vindo de centro distante, por meio da contratação dos serviços de companhias especializadas.
Quando Jesualdo pensou em instalar moderno sistema de alarme contra roubos e invasão de propriedade, viu-se diante de sério dilema: ou transformaria tudo em fortaleza semelhante à do morro, correndo o risco de se revelar importante para o pessoal da região, ou deixaria tudo ao encargo do administrador, ficando à mercê de ataques imprevisíveis. Optou pela segunda hipótese, não sem tomar o cuidado de garantir-se junto à delegacia, que mantivesse viatura destacada para a vigilância da estrada vicinal que levava à sua propriedade. Com a desculpa de que o gado poderia ser roubado, estabeleceu contacto radiofônico em freqüência particular, para a eventualidade de algum chamado. Prevenia-se, o que, de resto, não era novidade, havendo outros fazendeiros com o mesmo dispositivo.
Como se vê, Alfredo ainda apresentava todas as reações de quem vivera sob a constante presença do imprevisto, do subitâneo, do insólito.
Através do centro espírita, modesto nas acomodações, conseguiu obter as obras mais importantes, que o ajudariam a compreender os mistérios do pós-túmulo. Intentou atrair para sua vivenda algum dos mais destacados conhecedores da doutrina, mas o máximo que conseguiu foram promessas. Estava a casa de atendimento espiritual aberta para recebê-lo.
No etéreo, Jesualdo era seguido passo a passo. À vista do retrospecto de vida, a situação agora parecia aos socorristas muito mais propícia ao auxílio e à recomposição dos elementos que lhe haviam sido ofertados na primeira juventude.
Incomodava, entretanto, o fato de o socorrido não se desprender, desde logo, da desconfiança de que tudo se realizava conforme a vontade dos mais fortes. Naquela comunidade, aparentemente perdida do mundo, Alfredo encontrou o mesmo espírito de fraude e de aproveitamento que vira no Rio. Havia, certamente, pessoas mais simples, com aspirações menores, mas não achava ninguém em posto de comando que fosse realmente simplório, com exceção dos que conheceu no centro espírita e que fizera questão de acompanhar nas atividades profissionais. Poucos, contudo, transferiam para a vida mundana os conhecimentos que viam impressos no Evangelho e que pregavam nas reuniões. Caso específico era o do dono da imobiliária, que freqüentava o centro e que era um leão a abocanhar a presa em seus negócios, como verificou ao adquirir residência na cidade, com a desculpa de que precisaria receber muitos hóspedes.
Nepomuceno e parceiros se regozijaram com o fato de se ter o pupilo resolvido a ampliar as leituras. Entretanto, a sua influenciação por via intuitiva praticamente era nula, não conseguindo jamais fazer com que determinados tópicos se lhe vissem debaixo dos olhos. Era totalmente independente.
Por outro lado, dos célebres guardiães que o “protegiam” na fortaleza, só dois o acompanharam, com a clara intenção de perturbá-lo. Eram ferozes adversários de pretéritos encarnes, que mais queriam vê-lo na rua da amargura a freqüentar o sagrado ambiente do centro. Eram os alvos primeiros a que deveriam destinar as atenções para liberação de seu protegido.
Para Ângela, a mudança para o interior do país significou desafogo completo da pressão que se exercia sobre ela, por via das vibrações hostis das mães dos filhos de Alfredo, que clamavam contra a inoperância do progenitor, em função do descaso em lhes proporcionar amparo afetivo. Com o reconhecimento da paternidade e com o muito dinheiro e poder que lhes foi passado, as infelizes deixaram de contaminar o ambiente espiritual, aliviando a carga que coubera à amorosa criatura contrabalançar. Talvez, através dela, conseguissem os socorristas aproximar-se da mente do assistido.
Nessa vida de acomodações sociais, psicológicas e morais, Jesualdo deixou transcorrer um ano inteiro. Tudo lhe era novidade e as sensações desagradáveis lhe haviam desaparecido de vez. Em duas oportunidades, empreendeu longas viagens, de modo que as condições da nova vida não lhe pareciam insuportáveis. Ao contrário, sentia-se bem e pronto para novas realizações. A idéia da aposentadoria foi sendo esquecida e o trato dos animais da fazenda lhe dava grande satisfação.
Alfredo, apesar dos exercícios programados, tinha certas adiposidades, que perdeu na condição de Jesualdo, transformando até o aspecto físico. As longas cavalgadas e o cabo da enxada, que fazia questão de puxar, além das calosidades, lhe deram o tônus muscular de rígido vaqueiro. A tez bronzeada e os cuidados com os cabelos, com nova coloração para o efeito do disfarce, rejuvenesceram-no, dando-lhe até idéias de constituir família. Era bem tempo.