Ficou Dráusio com Isabel e Alfredo partiu para avaliar o perigo que a moça enfrentaria.
No hotel, não havia obsessor conhecido. Os infelizes que por lá se encontravam morrinhavam o cansaço da noite, juntamente com as vivalmas. O porteiro era o único desperto, por assim dizer, que rendera o da noite pela manhã, mas sentia pesados os olhos, pela cachacinha do aperitivo.
Na rua, as primeiras mulheres apareciam para a matinê dos maridos infiéis. Nenhuma arruaça, porque duas viaturas policiais quedavam estacionadas na esquina, enquanto havia claridade. Desapareceriam com o Sol.
Isabel tomou um táxi, para levar a efeito todos os objetivos da excursão. No caminho, foi estabelecendo de memória o rol das roupas que poderia mostrar para Joana, sem escândalo. Sobravam apenas três conjuntos mais discretos, mesmo assim bastante ousados para os padrões burgueses da família do médico. Além do mais, não tinha qualquer roupa que pudesse fazer passar como uniforme do antigo emprego. Mas aí se perdia em conjecturas, porque pouco entendia desse figurino.
Quando o carro estacionou, pediu ao motorista que aguardasse. Não demoraria.
Dráusio recebeu os informes de Alfredo com reservas. Não descartava a possibilidade de as vibrações de Isabel despertarem os que a seguiam, a partir das trevas umbráticas. Fez o que pôde para isolá-la com seus pobres recursos magnéticos, coadjuvado pelo amigo, preparado para invocar a ajuda de colegas socorristas.
— A Sandra está lá em cima?
— Não vi descer.
Isabel queria fazê-la herdeira das roupas. Era onde estava concentrada boa parte de seus haveres.
Bateu no quarto da amiga, que abriu com cara de quem ainda estava dormindo.
— Vem comigo! Calada!
Entraram no quarto de Isabel. Esta convocou a amiga para sentar-se ao seu lado na cama:
— Vou deixar esta vida por uns tempos. Não me pergunta nada. Você fica com as roupas e os sapatos. Me ajuda a encher as sacolas com tudo que encontrares, alfinetes, pentes, cremes...
— Para onde tu vais?
— É segredo.
— E o Vivaldo? Ele vai atrás. Vai querer a parte dele da proteção. O malandro não faz nada, mas nos livrou da cadeia algumas vezes.
— Vou escrever um bilhete e você entrega a ele. ‘Tá legal?
— Eu não quero problemas do meu lado.
— Não te preocupes. Eu já te dei motivos...
— Tu não, mas ele sim.
— Espera aí.
Havia papel e caneta. E envelopes. Isabel não sabia escrever muito bem, mas garatujou umas frases contundentes:
“Vivaldo, querido, a AIDS me pegou. Levo todo o dinheiro e deixo os clientes para a Sandra. Vá à merda!”
Não deixou a amiga ler e lambeu a cola do envelope. Pôs o nome do cafetão e recomendou que só entregasse ao filho da mãe.
Sandra conhecia o guarda-roupa de Isabel e se torcia no desejo de se apoderar das peças.
— Não vais querer nada de volta?
— De jeito nenhum. Podes ficar até com o quarto, se achares melhor do que aquele malcheiroso do fundo do corredor. Aqui o guarda-roupa tem um fundo falso. Queres ver?
Afastou uma tábua por detrás das gavetas e de lá retirou uma bolsa. Examinou o conteúdo e viu que não faltava nada. Havia jóias, talão de cheques, documentos, fotos e pequenas lembranças infantis.
Em vinte minutos, dava sumiço no principal e deixava as sobras em evidência.
— Mostra ao Vivaldo que estou deixando tudo, para que não pense que vou pras garras de outro sem-vergonha. Não ganhei na loteria nem vou ter vida regalada. Mas não quero voltar mais para este pardieiro. Se tu criares juízo, vais querer também fazer vida de outro jeito. Vinte e três anos e já conheço muito bem o mundo.
— Me deixa teu endereço. Um número de telefone.
— Se quiseres conversar comigo, liga pro meu irmão. O número é este.
Escreveu na parede mesmo.
— Até outra hora.
Sandra queria mesmo ver Isabel pelas costas e nem a acompanhou até a portaria.
— Vou deixar tudo pago. Depois, vê se te entende com o gerente.
Não era grande o volume que levava.
Na portaria, perguntou se devia alguma coisa, já que pagava adiantado. O sujeitinho quis extorqui-la, dizendo que não deveria sair sem que vistoriasse as acomodações.
— Estou levando só o que é meu, ou você acha que neste pacote estão as riquezas dos tapetes, toalhas e cortinas?
Virou as costas e deu de cara com Vivaldo que entrava.
— Onde vais com tanta pressa?
— Estou fora!
— Que fora, que nada!
O motorista a esperava encostado à porta do carro. Quis ajudar:
— Moça, preciso ir andando. Quer pagar o que me deves?
— Tu não vais escapar assim fácil. Ontem não trabalhou. ‘Tá pensando que é gente?
Agarrou-a pela blusa, ameaçando sentar-lhe a mão. Isabel não hesitou. Deu-lhe um pontapé e correu para o carro. Mal deu tempo para trancar a porta. O motorista se atracou com o rufião mas a movimentação havia chamado a atenção dos policiais. Um trilar estridente arrefeceu a exaltação dos ânimos e ambos se separaram, aproveitando-se o taxista para ir embora.
— Moça, você me deve uma.
— Não vais te arrepender.
Só aí Isabel notou que estava com a unha cheia de sangue. Rasgara a pele do malandro.
— Que se dane!
Três quarteirões adiante, estava tranqüila, pensando no que deveria fazer. O Banco em que tinha conta ficava no Centro. Pediu ao motorista que fosse para lá. O trânsito estava favorável. Em pouco mais de dez minutos, descia e dava polpuda gorjeta ao protetor caído do Céu.
Aguardou que a pequena fila se desfizesse à sua frente e solicitou do caixa que encerrasse a conta, retirando todas as economias.
— A senhorita quer levar em dinheiro ou aceita cheque administrativo?
— Me dá um tanto em dinheiro e o restante em cheque.
— Quanto?
— Três mil em dinheiro.
— Vou preencher o cheque. Queira aguardar.
Daí a pouco, aproximou-se um senhor engravatado. Queria saber se a cliente estava aborrecida com o tratamento.
— Estou mudando-me para São Paulo. Lá abrirei conta no mesmo Banco.
— Podemos efetuar a transferência, em momento oportuno. Não é melhor do que carregar essa importância contigo?
— Não. Prefiro correr o risco. Está bem?
Impacientava-se, que suas mentiras pareciam ter pernas bem curtas.
Livre do gerente, teve de esperar mais dez minutos até receber o cheque devidamente registrado.
Com o dinheiro na bolsa, percorreu as lojas de armarinhos, não levando mais que quarenta minutos para adquirir roupas adequadas para mostrar a Joana e a Marlene. Tomou o cuidado de retirar as etiquetas e de não deixar nada embrulhado com os papéis das lojas. Colocou junto com as calcinhas, sutiãs, meias e demais roupa antiga, tendo tido necessidade de comprar outra sacola maior. Agora parecia estar de mudança.
Eram três horas. Daria tempo para depositar o cheque em outro Banco. Não tinha certeza se Vivaldo sabia das posses, mas poderia ter interceptado a correspondência bancária. Assim estaria mais sossegada. Tinha anotado o endereço do médico e o telefone. Ficaria um tempo sem talão de cheques, mas o dinheiro vivo resistiria.
Quando preencheu o local relativo à profissão, assinalou estudante. À vista do valor do cheque, não puseram embargos à abertura da conta.
Chegou de volta, sem mais atropelos, às quatro e meia. Foi diretamente para seu quarto, que estava desimpedido, e dispôs as roupas no armário e na pequena cômoda. O mais deixou embrulhado para arrumar depois. Apresentou-se em seguida a Marlene, para o relato conveniente. Mário, contudo, estava presente e Isabel não pôde desenrolar o pergaminho das mentiras.
Dráusio e Alfredo confiavam em que tudo havia dado certo.