Quando Marlene avisou Isabel a respeito do que se passara no hospital, desejava que ficasse tranqüila quanto ao filho. Não haveria o que temer, que, se os bandidos quisessem matá-lo, já o teriam feito.
— Mas quem teria colocado as orelhas debaixo do travesseiro?
— Não sei dizer, querida. Tudo leva a crer que Leandro quisesse atormentar a gente e acabou sendo vítima da própria ameaça.
— Se não foi vingança do Doutor, quem poderia querer assustar tanto o menino?
— Mário disse que Leandrinho nem ficou sabendo. Para a polícia, o menino não soube dizer nada. Raimunda é quem fez o maior escândalo do mundo.
Isabel não acreditava no que dizia Marlene. Achava que tinha sido o médico e fim. Mas não podia bater o pé. Teimosia não iria adiantar. Iria esperar o patrão para perguntar diretamente a ele. Se mentisse, talvez fosse possível perceber. Pelo menos, nunca antes surpreendera qualquer deslize. Depois que as crianças foram seqüestradas, o Doutor nunca brincava e Marlene falava sempre com mágoa no coração, não admitindo que Deus tivesse permitido que...
Isabel não gostava de refletir por esse lado. Era muito mais prática. Por ela, teriam mudado para outra cidade, levando Leandrinho. O médico poderia deixá-la a viver sua vida sozinha, podendo se ver de vez em quando, porque gostava dos meninos, especialmente do Joãozinho. Mas, como não poderia decidir sozinha, nem ao menos quanto ao rapto do filho, já que não estava ele em condições de enfrentar o mundo cá fora, dependente dos remédios, resignou-se, não sem antes decidir consultar os orixás. Aguardaria a sexta-feira com impaciência.
À noite, Baltazar a convidou para ir ao Centro Espírita, para sessão reservada. Pedira permissão ao “padrinho”.
— Ele faz questão de apreciar o que se passa.
— Mas, quando foi que você conversou com ele?
— Hoje de tarde.
— Onde?
— Em casa.
— Em casa?
— Sim. Ele foi me procurar. Achou que querias falar com ele. Disse mesmo: “A tua namorada está precisando de conselhos. Se não me contarem o que está acontecendo, não terei o que dizer aos orixás. É preciso limpar a casa e isso eles só farão se ela der permissão. É preciso pedir e se submeter, com pureza de alma.” Ele disse isso, mais ou menos, e outras coisas, mas não dá tempo de te contar. Vamos?
— E a proibição de sair sozinha?
— Eu não acho que, depois do caso das orelhas...
— Que é que você está sabendo?
— Só o que me contaste. E o que saiu no jornal. Mas acho que ninguém vai querer se pôr com o Doutor...
— Quem lhe disse que foi o Doutor?
— Só pode ser. Quem mais teria possibilidade de...
— Qualquer pessoa interessada... Deixa pra lá! Vamos embora.
— Será que Dona Marlene empresta o carro?
— Espera aí que vou pedir.
Instantes depois, voltava com a patroa.
— O Mário está interessado em ir junto. Será que ele pode assistir aos trabalhos?
— Se não puder, eu fico com ele no carro, até que Isabel volte.
Dessa feita, o vigilante da noite viu que o médico saiu com o casal. Não havia o que fazer. Pôs-se a dirigir a distância, com a certeza de que iriam ao Centro Espírita. Notou que o carro parou por duas vezes. Estariam desconfiados de que os seguiam? Atrevido, avançou e ultrapassou o carro do médico e foi estacionar na rua do terreiro. Poucos minutos depois, chegavam os três.
Ao ingressarem no portãozinho lateral, viram que havia só umas seis ou sete pessoas.
O senhor que chamavam por “padrinho”, o mesmo do sermãozinho da sessão da sexta-feira, fez questão de cumprimentar a nova personagem:
— Sejas bem-vindo, Doutor Mário.
— Com que, então, o Senhor me conhece?
— Baltazar me tem falado muito bem do Senhor. E outras fontes também. A que devemos a honra da visita?
— A bem da verdade, além de estar curioso de conhecer este ambiente, estou recebendo ameaças...
— Baltazar me pôs a par de tudo. Os bandidos estão tomando conta da cidade. Às vezes, aparece um aqui querendo despacho contra esse ou aquele. Ou vêm para “fechar o corpo”. Fazem confusão. Os Santos que nos atendem são os melhores da Nação Nagô. Por isso, não aceitam que se contem mentiras para eles. A pessoa tem de ser purinha de intenções. O Babalaô manifestou o desejo de ajudar Isabel. Parece que ela está recebendo vibrações muito positivas. Mas precisa desimpedir um “entrebucho” que está obstruindo o sucesso dos trabalhos. Vamos entrar
Só três médiuns iriam incorporar. Isabel foi colocada perto do altar encoberto pelo véu. Baltazar, Mário e as outras pessoas ficaram fora do círculo pintado no soalho. Descalços, o padrinho lhes pediu que fizessem silêncio e que orassem. Mário se viu atrapalhado. Não queria ferir os preceitos da instituição mas não sabia como dizer que era muito pobre no campo religioso. Quando saiu de casa, estava pensando em assembléia grande, com público heterogêneo, tipo de casa evangélica, onde os pastores fazem aclamações de curas e pedem dinheiro. A intimidade do tratamento e a simpatia do pessoal o dispuseram mal perante si mesmo. Lamentava-se por ter vindo, quando a cerimônia teve início.
Nada de atabaques. O “padrinho” fez curto discurso em língua estranha, após o que abriu o cortinado, dando acesso ao altar, onde se viam diversos objetos do culto, como zarabatanas cruzadas, arcos e flechas, potes, diversas imagens de índios e outros objetos que Mário não soube nomear. No meio do altar, a figura de guerreiro negro, braço direito erguido, em atitude de clamor ao Céu, ao mesmo tempo que apontava, com a outra mão, a lança para a frente, como a impedir que o inimigo avançasse.
Isabel estava absolutamente consciente. Não se perturbara, que não havia ruído algum nem os cheiros dos incensos, dos charutos ou da aguardente.
O padrinho incorporara o Babalaô, mas não dirigiu a palavra a nenhum dos presentes. Deu lenta volta em torno do círculo, sem sair dele, tocando a cabeça de cada um dos presentes. Levava na mão um galho de louros, com outras ervas. Ao se achegar ao Doutor, parou um instante e lhe fez uma pergunta em idioma desconhecido. Sentiu-se o médico atrapalhado, mas uma das senhoras se aproximou e traduziu:
— O Babalaô quer saber qual seu interesse em se vingar do bandido.
Não sabia bem o que dizer, mas se lembrou do telefonema das orelhas:
— Estou sendo ameaçado. Gostaria de me livrar do sufoco, para poder dar paz à minha família.
Novamente, o “padrinho”, incorporando a entidade, o interrogou. A mulher traduziu:
— Se fores chamado para as virtudes, saberias perdoar?
Era questão que não lhe passara pela mente. Disse o que sentia no momento:
— Eu queria acordar deste pesadelo. Para isso, recorro a qualquer coisa. O medo está transtornando a minha vida, da minha mulher e dos meus filhos. Quando eu subia o morro para cuidar dos feridos e dos doentes, sabia que estava pisando em terreno perigoso, mas tinha a garantia de estar prestando serviço muito útil. Agora, parece que o bandido sou eu, porque...
O Babalaô fez um gesto, como quem já estivesse satisfeito.
Só aí Mário se apercebeu que havia contado o maior segredo de sua vida. Pensou um pouco e deu de barato que aquele pessoal não iria dedá-lo à polícia.
Baltazar ouviu tudo e ficou admirado com a revelação. Sabia que os bandidos eram poderosos, mas a ponto de serem tratados pelo Doutor... Não quis estabelecer julgamento, porém, poderia ser que corresse muito dinheiro. Em todo caso, ficou a cismar a respeito do poder do plano espiritual, que fez que abrisse a boca numa boa.
Isabel estava de pé no meio do círculo. O Babalaô se aproximou dela e a cumprimentou, cruzando os ombros.
— Saravá, Zunfia!
— Saravá!
— Zunfia vem com o coração bem sujo.
Isabel pensou em protestar, mas sabia que não era hora de falar nada.
— Zunfia quer recuperar criança?
— Quero.
— De verdade?
— De verdade.
— É pra deixar antigo companheiro triste?
— Estou arrependida de ter abandonado o Leandrinho.
— Zunfia perdoa o pai da criança?
Isabel queria dizer que sim. Mas não sentia legítimo alvoroço de bondade no coração. Não pensava que as perguntas seriam tão diretas.
— Enquanto Zunfia não perdoar, não vai poder ser ajudada. Precisa filtrar a dor. Vais ter de pensar muito em tua vida, até saber que as pessoas também sofreram por tua causa. Desde pequena. Pai e mãe de Zunfia estão muito tristes.
Isabel nunca pensava neles. A palavra da entidade a comovia muito. Começava a chorar.
— Vai, com a proteção de Deus!
Acrescentou outros nomes de entidades mas a longa lista se perdeu para o rebuliço moral de sua alma atiçada com tanto vigor ao perdão.
Isabel foi convidada a ficar do lado de fora do círculo e Baltazar a entrar.
O Babalaô falou em voz muito baixa, de modo que só o assistido pôde ouvir. Ficaram no colóquio íntimo por dez minutos. Isabel e Mário já se impacientavam, quando Baltazar regressou para o seu lado. Vinha com ar extremamente preocupado. Mas se concentrou em oração, apoderando-se da mão de Isabel, que apertava com força, como a transmitir-lhe afeto e segurança. Pensava no que lhe fora dito pelo orixá. Que deveria seguir o médico naquela noite, quando fosse ao morro. Talvez deixasse lá a vida, talvez não. Mas era obrigação de amor e fidelidade à Nação Nagô. Teria a seu lado os maiores da casa e não estaria sozinho, no plano material, que três dos médiuns presentes o acompanhariam. Mas não poderia levar o trinta-e-oito.
Baltazar não tinha medo de enfrentar a escuridão, com seus perigos terríveis, mas pensava na possibilidade de afastar-se de Isabel, logo agora que começava a querê-la para esposa.
Às três da madrugada, Mário saía de casa precedido por negrinho de treze anos. Se tivesse reparado no policial de prontidão, talvez parasse para acudi-lo, que lhe escorria sangue do alto da cabeça. Se não estivesse tão tenso, carregando a pesada maleta e outra pasta, talvez suspeitasse de que outras pessoas se esgueiravam na escuridão, atrás dele. As próximas horas seriam de medo e expectativa. Estava indo encontrar-se com o leão que fustigara com vara demasiado curta.