Isabel não se apertou. Com tanto dinheiro disponível, adquiriu bela casa na Zona Norte, grande o suficiente para abrigar Baltazar e família. Previdente, deixou dois cômodos preparados para hospedar quem viesse, especialmente Mário e família, de quem se considerava devedora. Sandra ficara com ela no primeiro mês, até a chegada do futuro marido, tendo voltado para o Rio, com a incumbência de solicitar o prometido dinheiro para a instalação de ponto de comércio.
Quando Baltazar se conscientizou da possibilidade de levar seu negócio, animou-se sobremaneira, ainda mais porque se viu incentivado pelas entidades do Centro Espírita, as quais lhe prognosticaram muito trabalho e, também, muita alegria. Com a vinda de mais cinqüenta mil reais, pôde montar moderna loja de autopeças, ponto que adquiriu de antigo comerciante em vias de se aposentar.
O bom de se estar bem equipado de dinheiro vivo é que tudo pode ser ajeitado da melhor maneira. Sendo assim, a loja se situava na mesma quadra da residência, para comodidade de todos.
Ao pai, Baltazar encarregou do importante setor de controle de estoque, tendo reservado para si as compras e a contabilidade. As vendas foram mantidas nas mãos de antigo funcionário, que assim se pensava prender a clientela. De fato, os balconistas se viram prestigiados, principalmente os “coloreds”, aumentando consideravelmente o movimento. Não demoraria, se os negócios prosseguissem no mesmo ritmo, a ser considerada a expansão para outros bairros.
Essa era a perspectiva de felicidade material. Quanto à espiritual, não foi difícil de encontrar novo centro espírita, onde os trabalhos se pautavam pelo rigor da orientação dos orixás da Nação Nagô.
Quando desceram no aeroporto, Baltazar e Isabel lá estavam para recebê-los, com festas e carinhos.
Após as afetuosas palavras de agrado, Isabel fez questão de, ali mesmo, anunciar o próximo casamento:
— Assim que correrem os proclamas, vamos casar-nos. E vocês vão ser os nossos padrinhos. Disso fazemos questão absoluta.
Marlene desconfiou de outra “novidade”:
— Será que temos gente nova pintando no pedaço?
Foi Baltazar quem negou, veemente:
— Estamos tendo o cuidado de nos instruir, para podermos enfrentar a responsabilidade. Toda quarta-feira, freqüentamos um curso de orientação conjugal. Sem realizarmos todos os exames clínicos, não estaremos sossegados. Nesta época de graves doenças sexualmente transmissíveis, todo cuidado é pouco.
Mário sentia a reprodução dos dizeres do palestrante e se admirou da desenvoltura do antigo balconista. Fizera-lhe muito bem o dinheiro.
Enquanto isso, Marlene se entendia com Isabel:
— Viemos passar uma semana em tua casa. Escreveste que nos tinhas acomodações, mas, se julgar que vamos dar trabalho...
— Que nada! Vocês vão ver que belo sobrado deu para comprar.
De fato, quando o carro do ano estacionou na garagem aberta com dispositivo eletrônico, puderam os recém-chegados avaliar que o dinheiro fora muitíssimo bem aplicado.
Era uma sexta-feira. Dia de reunião obrigatória com os orixás. Mário, convidado, aceitou comparecer ao Centro Espírita. Desde que fora ao “Barnabé de Rezende”, naquela importante reunião particular, nunca mais pusera os pés lá de novo. Queria obter novas impressões, pois, conforme lhe expunha Baltazar, as reuniões públicas eram muito mais movimentadas.
Na hora aprazada, estava o médico sentadinho no banco da frente, para onde o encaminhara o amigo, ávido pelas novidades. Viu, ouviu, cheirou e se desiludiu dos trabalhos. O barulho ensurdecer dos atabaques e do canto, a dança frenética dos médiuns, a fumaça dos charutos e, principalmente, a grande possibilidade de se falsear a verdade das comunicações, quase todas em função de solicitações materiais (dinheiro, saúde, casamento e emprego), aliadas a pedidos suspeitos de afastamento de adversários encarnados ou não, lhe deram muito mal-estar. Chegou mesmo a perguntar o que estaria fazendo no meio de tanta gente inculta, incapaz de análises das reações elementares do sistema... Viu-se a analisar a conduta do povo simples pelas luzes da ciência. Não gostou e disse francamente a Baltazar, assim que os trabalhos se encerraram, lá mesmo, correndo conscientemente o risco de ofender aos espíritos benfeitores da casa. Pensava que, se houvesse entidades esclarecidas, iriam encontrar um meio de orientá-lo no que estivesse errado. Fazia a proposta com lealdade. Pensava que seria muito pior do que estar desagradado e falar o contrário. Em seu modo de entender, as pessoas e seres superiores devem examinar as propostas pelo que elas significam para o progresso de todos, sem susceptibilidades à flor da pele. Julgando que deveria oferecer todos os pensamentos ao escrutínio dos guias, fez questão de assinalar que a aversão poderia ter origem na negritude das pessoas reunidas, apesar de haver muitas de pele clara. Isso não disse a Baltazar, porque não sentia pelo amigo qualquer repulsa. Era questão de caráter social, culturalmente transmitida.
Não teve todas as idéias definidas nem o pensamento se organizou para a finalidade das conclusões. Condensara o que vinha interessando-o desde que Isabel entrara em sua vida. Joana fora o capacho sobre que se pisa, inconscientemente. Isabel levara-lhe a perspectiva do ser humano. Leandrinho penetrava-lhe fundo no coração. E o mundo espiritual despertara-o para a necessidade de visualizar as entidades de forma diferente dos padrões terrenos. Que cores teriam os espíritos, se é que teriam alguma? Era a pergunta que deixava sem resposta. Pela observação das entidades incorporadas, diria que a linguagem, o pensamento, a postura corporal, tendiam para a fixação das mesmas personalidades dos encarnados. Mas que influenciação teriam os “cavalos”, no desempenho delas? Observara que os médiuns brancos faziam os mesmos trejeitos dos negros. Teriam assimilado por imitação ou eram, mesmo, comandados pelos espíritos?
Baltazar não se impressionou com a observação do médico. Simplesmente, foi atrás do “padrinho” da instituição, a ver se teria algo a dizer-lhe, no sentido de orientar o amigo. Mas calou o que lhe tinha dito Mário.
— Este é o Doutor Mário, o meu grande amigo do Rio de Janeiro.
— Muito prazer! Tenório.
— Satisfação!
A conversa girou em torno da especialidade do médico. Depois, Tenório informou que era aposentado do serviço público, onde exercera as funções de contínuo-porteiro. A seguir, quis saber do interesse de Mário em acompanhar os trabalhos da Umbanda.
— Não tenho conhecimento algum. Para falar francamente, esta é a primeira sessão pública a que assisto.
— Gostou?
A pergunta era direta.
— Fiquei sem entender muita coisa. O barulho...
— Não precisa dizer. As entidades têm feito restrições a este tipo de desenvolvimento. Elas pedem mais estudo, mais devotamento aos cultos como norma superior de procedimento. Mas a ignorância é própria do povo que nos procura. Eu mesmo sinto muita falta de base doutrinária. Conheço os pontos, pela iniciação que tive na Bahia. Sei o valor de cada Orixá e sua força no controle das vontades humanas e espirituais. Posso indicar muitas fórmulas para desencosto e para a felicidade, como se faz na religião dos brancos. Desculpe, Doutor, mas a Igreja Católica só introduziu santos negros... Não interessa. A Padroeira do Brasil, com sua imagem lá em Aparecida do Norte, é negra. Pois bem, eu também não me sinto muito seguro da filosofia que existe por detrás das palavras de amor e de incentivo que os espíritos trazem para os mortais. Ouvi dizer que os centros de mesa branca estudam todos esses tópicos à luz da ciência. Quem sabe, um dia, possamos unir as nossas casas numa única religião de muito amor pela humanidade.
Tenório falava como que inspirado. Mário desconfiou de que estivesse sonegando a informação de profundos conhecimentos e de imensa sabedoria. De qualquer forma, falava com fluência. Admirantíssimo, para simples contínuo-porteiro do serviço público.
Baltazar sorvia com deleite a facilidade do companheiro e mestre. Via que o Doutor se regozijava com os dizeres e mal esperava sair para perguntar-lhe sobre as impressões.
— Continuo não gostando. Contudo, o “padrinho” é homem muito inteligente e perspicaz. E me fez ver que as coisas não são fáceis nem para ele. Quando me formei, saí da faculdade com a impressão de que sabia mais que todo o mundo. Hoje, quando leio as revistas médicas, vejo que os cientistas avançam em todos os setores e meu saber vai diminuindo. Se quiser evoluir na Medicina, tenho de voltar aos bancos escolares. Foi essa a impressão que me deixou o seu...
Não sabia como designar Tenório, em função da recente amizade de Baltazar. Diante da hesitação, este emendou:
— Podes dizer orientador, mentor, professor, mestre. Vem exercendo sobre mim o mesmo poder que o “padrinho” lá do Rio.
Mário guardou para si as outras impressões concernentes à orientação espiritual e religiosa que recebera. Acostumado a ver desabrocharem as idéias depositadas no inconsciente, buscou interessar-se pela vida noturna da metrópole paulistana.
Na viagem de regresso ao Rio, formulava planos para melhorar o entendimento da “filosofia” e da “religião” umbandista. E ansiava por reencontrar o doentinho, que iria visitar por cortesia, antes do final das férias. Não morria de amores pelo traficante, mas precisava reconhecer que fora muito além do que poderia esperar na instalação de Isabel. Ficou com vontade de dizer-lhe isso pessoalmente, mas a lembrança da saraivada de balas dissuadiu-o do intento. Pessoa tão poderosa, deve ter conhecimento do que se passa com a ex-amante. E comparava o chefe do tráfico com o babalaô do terreiro, que tudo dominava pela extensa rede de entidades sob seu comando. Será que Leandro, quando morresse, iria exercer funções de chefia junto às hostes dos anjos decaídos? Intrigava-o o papel das pessoas no plano espiritual. Realmente, precisava enfronhar-se nesses mistérios.