Quando se tem muito dinheiro e uma fachada de grandes negócios, como Gouveia e, mesmo, Leandro, não se teme o fisco. Baltazar, contudo, era simples balconista, sem lastro financeiro. Isabel não podia declarar que obtivera, com a prostituição, o suficiente para as compras dos prédios e a montagem da loja.
Um belo dia, eis que adentra o estabelecimento um sujeitinho engravatado, de óculos escuros, levando uma pasta preta debaixo do braço.
— Meu nome é Gumercindo Saraiva de Castro. Sou Fiscal da Fazenda do Estado. Respondo por este setor da cidade. Quero ver os livros da contabilidade.
— Perfeitamente, Senhor. Posso ver as tuas credenciais?
O indivíduo sacou do bolso interno do paletó uma carteira de couro, de onde retirou cartão plastificado com o emblema do Governo do Estado de São Paulo, que passou para as mãos do dono do estabelecimento.
Baltazar era suficientemente esperto para avaliar a situação. Desconfiou, de pronto, que havia mais esperteza no olhar arguto da pessoa à sua frente do que honestidade. Mas estava preparado para enfrentar todo tipo de pressão oficial, tendo escriturado ele mesmo os registros do dever e do haver. Classificara e arquivara todas as faturas e canhotos das notas fiscais.
— Quem faz a escrituração?
— Eu mesmo faço.
— Tem registro profissional?
— Não.
— E como pode afirmar que está tudo certo?
— Se não estiver, você me diz como é que devo corrigir.
— Estas coisas não podem ser corrigidas. Ou está certo ou está errado. Se estiver certo, muito bem. Lavro o termo da visita e pronto. Se estiver errado, sou obrigado a multar.
— À vontade!
Começaram o trabalho com muita lentidão. A cada fatura deveriam corresponder várias notas de venda ou o material deveria estar estocado. A pesquisa começava a enervar o vendedor. Era um senta e levanta para a marcação e verificação do material. Do jeito que as coisas iam, seria preferível fechar a loja e colocar todos os empregados à disposição do exigente servidor público. Passaram a manhã nesse extenuante serviço, sem dar mostras o fiscal de entediar-se ou cansar-se. Conhecia proficientemente cada peça, enquanto tomava notas minuciosíssimas em caderno que abrira para a finalidade.
À tarde, despediu-se, prometendo voltar na manhã seguinte.
E assim foi, durante a semana inteira. O movimento da loja estava sendo controlado por Gumercindo, dado que toda entrada e saída de material passava pela sua mão. Terminadas as faturas, restaram, nas notas de venda, inúmeros produtos.
— Qual a origem destas peças?
— Constam da relação de compra do ponto. O antigo dono me deixou o estoque devidamente arrolado, com as faturas correspondentes.
— Vamos avaliar.
Estavam no pequeno cofre. Enquanto Baltazar buscava encontrar o que lhe fora solicitado, Gumercindo tamborilava os dedos com tranqüilidade.
Havia muita miudeza. O que não se encontrava vendido, era procurado na loja. E anotado devidamente no caderno. Esse procedimento levou mais três dias, sempre interrompido pelos negócios, que o trabalho não podia parar.
Ao final, restava conferir todo o estoque em exposição mais o que se guardava no almoxarifado. Era preciso verificar se não havia mercadoria a mais, além da que constava das faturas. De fato, foram encontradas peças muito antigas, fora de linha, que se guardavam para a eventualidade de pedidos de emergência. Fora o presente que o antigo dono havia dado a Baltazar, com a recomendação de passar adiante com o valor das novas, que as raridades poderiam até custar bem mais.
— Senhor Baltazar, existem vinte e duas mercadorias cuja origem não está assinalada. Vou proceder à autuação e confiscar as peças. Enquanto a multa não for paga e as mercadorias recolhidas, o estabelecimento vai permanecer lacrado, devendo o Senhor providenciar advogado, já que vou denunciá-lo como receptador de produtos furtados.
A um sinal, dois supostos fregueses mostraram insígnias de inspetores da polícia civil e avisaram os fregueses que não poderiam concluir as compras.
O inesperado da atitude pôs Baltazar afogueado. Mas manteve a aparência calma. Não poderia acreditar em que aquilo pudesse ir muito longe. Obteve autorização para telefonar e ligou para casa, pedindo socorro a Isabel. Precisava urgente de um advogado.
Uma hora depois, detido na Delegacia, prestava depoimento sobre a acusação de receptação de mercadoria roubada. O jovem advogado contratado por Isabel dava andamento ao pedido de soltura, entretanto, não havia meio de quebrar o flagrante. Baltazar iria ser recolhido ao xadrez.
Enquanto essas coisas ocorriam, Isabel ligava para o Rio de Janeiro. Buscava falar com Sandra, para o contato com os padrinhos desconhecidos. Era o poderio das forças ocultas que desejava ver em ação. De fato, duas horas depois, quando Baltazar ainda se encontrava na ante-sala do Delegado, esperando o resultado das providências das autoridades, sentindo o movimento dos jornalistas em busca de notícias, foi chamado pelo próprio titular e, a portas fechadas, ouviu solene pedido de desculpas pelo erro dos investigadores. Perdoasse o comerciante a tropelia e aguardasse mais um pouco, que precisava anular os registros.
Quando saiu para o ar viciado do corredor, lá estava o advogado com cara de tremendo espanto, porque, de uma hora para outra, viu o cliente, preso inafiançável, solto e sem queixa formulada. Nem um nem outro entendia o que poderia ter feito tudo voltar à estaca zero.
Meia hora depois, pelas sete da noite, entrava na sala do Delegado o Gumercindo, espavorido, olhando de soslaio para o negro que o observava muito curioso. Saiu em seguida, rapidinho, enquanto o Delegado se aproximava do comerciante e seu advogado, com uns papéis e um caderno na mão.
— Aqui estão as anotações do fiscal. Estou devolvendo para que usem o material da forma que melhor lhes aprouver. É bom guardar, pelo menos, pois, se aparecer outro representante da Fazenda, é só contar o que houve que ele não insistirá na mesma linha de procedimento. Espero que tenham compreendido que tudo fiz para desfazer o mal-entendido. O Senhor Baltazar está instalando-se agora em São Paulo. Não pode fazer idéia errada da polícia paulista. Conte comigo para o que precisar.
Baltazar apertou a mão que lhe fora estendida, tendo sentido que estava bastante fria.
O advogado, à vista das expressões fisionômicas do policial e das palavras de extrema gentileza, tendo concluído que nenhum mérito da soltura lhe era devido, ponderou que o melhor seria oferecer os préstimos para futura demanda judicial, deixando seu cartão na mão do atoleimado umbandista, desaparecendo em seguida.
Quando Baltazar ia saindo, vieram-lhe ao encontro os inspetores, com mesuras de mil desculpas, oferecendo-se para conduzi-lo em segurança de volta para a loja ou para casa. Precisavam ir mesmo para lá, para retirarem o lacre da porta e rasgarem o aviso que o fiscal havia afixado.
Naquela noite, Isabel e Baltazar tiveram razões para concluir que havia incompreensível poder oculto a protegê-los. E esse poder não era simplesmente espiritual, como poderiam acreditar pela promessa dos orixás. Havia uma força terrena muito poderosa a olhar por eles. Quem lhes dera o dinheiro também lhes resguardava o patrimônio.